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Artigo de Pesquisa

http://dx.doi.org/10.5935/2446-4775.20180005

Levantamento etnobotânico da família Cactaceae no estado de Sergipe

Ethnobotanical survey of the Cactaceae family in the state of Sergipe

Autores:
Bravo Filho, Eronides Soares1*;
Santana, Marlucia Cruz2;
Santos, Paulo Augusto Almeida2;
Ribeiro, Adauto de Souza.3*.
Instituições
1Universidade Federal de Sergipe – UFS, Doutorado em Desenvolvimento e Meio Ambiente. Av. Marechal Rondon s/n, CEP 49100-000, São Cristóvão, Sergipe, Brasil.
2Universidade Federal de Sergipe – UFS, Departamento de Biologia. Av. Marechal Rondon s/n, CEP 49100-000, São Cristóvão, Sergipe, Brasil.
3Universidade Federal de Sergipe – UFS, Departamento de Ecologia. Av. Marechal Rondon s/n, CEP 49100-000, São Cristóvão, Sergipe, Brasil.
*Correspondência:
esbravof@gmail.com

Resumo

As Cactaceae ocorrem em uma ampla diversidade de clima, mas predominam em ambientes semiáridos e de solos rochoso-pedregosos. Família monofilética, distribuída em 127 gêneros e 1500 espécies. No APG III, foi subdividida em quatro Subfamílias: Maihuenoideae, Pereskeoideae, Opuntioideae e Cactoideae e integra o segundo grupo botânico mais numeroso da região neotropical. No estado de Sergipe ocorrem 11 gêneros e 26 espécies. O objetivo dessa pesquisa foi realizar um levantamento etnobotânico da família Cactaceae no estado de Sergipe. As cactáceas apresentaram uma grande variedade de usos, a exemplo da ornamentação, medicinal tradicional, alimentícia e manifestações culturais como inspiração místico-religiosa, produção de poesias, cordéis e canções populares. Os resultados foram obtidos por meio de questionário semiestruturado, padronizado e aplicado a 36 indivíduos moradores de 11 localidades distribuídas nas regiões Leste, Agreste e Alto Sertão. Foram registradas, no período de 2013 – 2015, 11 espécies de cactos aplicadas em 55 usos pelas comunidades locais, as quais foram agrupadas em quatro categorias: medicinal; alimentação humana e animal; construção e produção de objetos; ornamental e místico-cultural. Os cactos cabeça-de-frade, mandacaru, facheiro e palma forrageira tiveram a maior frequência de citações de usos.

Palavras-chave:
Botânica.
Cactos.
Conhecimento tradicional.
Usos.

Abstract

Cactaceae occur in a wide variety of climates, but predominate in semi-arid and rocky-stony soils. Monophyletic family, distributed in 127 genera and 1500 species. In APG III, it was subdivided into four subfamilies: Maihuenoideae, Pereskeoideae, Opuntioideae and Cactoideae and is the second largest botanical group in the neotropical region. In the state of Sergipe there are 11 species and 26 species. The objective of this research was to conduct an ethnobotanical survey of the Cactaceae family in the state of Sergipe. The cacti presented a wide variety of uses, such as ornamentation, traditional medicinal, food and cultural manifestations such as mystic-religious inspiration, production of poetry, folk songs and songs. The results were obtained through a semi-structured questionnaire, standardized and applied to 36 individuals living in 11 locations distributed in the East, Agreste and Alto Sertão regions. In the period 2013-2015, 11 species of cactus were used in 55 uses by local communities, which were grouped into four categories: medicinal; food and feed; construction and production of objects; ornamental and mystical-cultural. Head-of-monarch cacti, mandacaru, manta and forage palm had the highest frequency of citations of uses.

Keywords:
Botany.
Cacti.
Traditional knowledge.
Uses.

Introdução

Todo processo de evolução humana está estruturado na relação indissociável entre o homem e o meio ambiente, relação em que o homem extrai da natureza os recursos necessários para saciar suas necessidades alimentares, medicinais, para ornamentação, construção de objetos, abrigos e para expressar a sua cultura. As plantas estão entre os recursos naturais mais explorados para essas finalidades(1).

A Família Cactaceae faz parte das Angiospermas e representa o segundo grupo mais numeroso da região neotropical. São encontradas em uma diversidade de clima, solo e ecossistemas com maior ocorrência da Caatinga, Florestas Tropicais, Cerrado, Campos rupestres e Restingas(2-3). Botanicamente é distribuída em aproximadamente 127 gêneros e 1500 espécies(4) e subdivididas em quatro Subfamílias que são: Maihuenoideae, Pereskeoideae, Opuntioideae e Cactoideae(5,3,6,7). O Brasil é considerado o terceiro centro mundial de diversidade de cactáceas, com registro de 39 gêneros e mais de 260 espécimes(8).

As cactáceas encontram-se entre os vegetais mais utilizados pelo homem, principalmente nas regiões castigadas pela seca no Brasil(9). Desta forma, observa-se uma relação estreita entre o povo brasileiro e os cactos, especialmente no Nordeste, e essa relação apresenta-se em diversas manifestações culturais como nas canções "Xote das Meninas", de Luiz Gonzaga, "Flor de Cactos", de Chico Cesar, e dando nome à banda sergipana, "Cabeça de Frade". Na literatura as cactáceas têm sido fonte de inspiração para a criação de cordéis, poemas como "O Cacto", de Manuel Bandeira e destaque nos romances "Vidas Secas", de Graciliano Ramos, "A Pedra do Reino e o Príncipe do Sangue do vai-e-volta" de Ariano Suassuna e na lenda de Pissorê, cacique protetor da Cidade de Palmeiras dos Índios (AL) que retrata a origem das Cactaceae do gênero Melocactus spp.

No Nordeste brasileiro, são ainda utilizadas como bioindicadores de chuvas, usos místico-culturais, na ornamentação de residências, praças e jardins, componentes de telhados verdes, na produção artesanal de canos para cachimbos, na fabricação de portas, janelas, caibros e ripas, como enchimento para almofadas e cangalhas (10, 4, 11,12). Também são utilizados para a fabricação de cosméticos e tintas, na produção de alimentos como bolos e doces. A utilização como forragem é muito comum e responsável pela redução na mortandade dos ruminantes no período de estiagem no Nordeste do Brasil (1, 13, 9, 7, 11, 12).

Apesar dos benefícios oriundos das cactáceas, observa-se uma grande deficiência de trabalhos voltados ao estudo etnobotânico deste recurso genético, principalmente no Estado de Sergipe, local onde ocorrem três subfamílias de Cactaceae dentre as quatro existentes, totalizando 11 gêneros e 26 espécies (14-15).

Diante do exposto, o objetivo desta pesquisa foi realizar um levantamento etnobotânico da família Cactaceae no Estado de Sergipe.

Material e métodos

As áreas de estudo situam-se no estado de Sergipe-Nordeste-Brasil. Formação vegetal composta por Campos de dunas, Matas de Restinga, Manguezais, Mata Atlântica, Mata do Agreste, Caatinga e Cerrado (16). O estudo foi desenvolvido entre os meses de setembro de 2013 a dezembro de 2015, nos Municípios sergipanos de Aracaju, Aquidabã, Gararu, Itaporanga D'Ajuda, Japoatã, Macambira, Pacatuba, Pirambu, Porto da Folha, Poço Verde e Simão Dias. Essas localidades foram escolhidas em virtude da ocorrência de cactos do gênero Melocactus, com exceção de Aquidabã, pois é a única cidade dentre as pesquisadas, onde não foi encontrado espécies desse gênero. Contudo, foi inclusa pelo fato de os Melocactus e outros cactos serem utilizados com muita frequência.

A investigação foi realizada por meio de entrevistas semiestruturadas com aplicação de questionário padronizado a 36 moradores de11 municípios localizados nas regiões Leste, Agreste e Alto Sertão sergipano. As entrevistas foram distribuídas da seguinte forma: cinco em Aracaju, cinco em Aquidabã, cinco em Gararu, uma em Itaporanga D' Ajuda, uma em Japoatã, duas em Macambira, quatro em Pacatuba, cinco em Pirambu, quatro em Porto da Folha, uma em Poço Verde e três em Simão Dias. Os entrevistados foram escolhidos por meio da técnica bola-de-neve, ou seja, cada entrevistado indicava o subsequente.

As espécies citadas foram fotografadas em campo e nos locais onde foram observados os usos. Exemplares das espécies citadas foram coletados e encaminhados para o Herbário da Universidade Federal de Sergipe (ASE), local onde ocorreu a herborização, identificação e registro. O perfil socioeconômico dos entrevistados, como o grau de instrução, fonte de renda, renda média familiar, tempo em que residem na localidade e idade, também foi avaliado. Os dados obtidos através dos depoimentos foram registrados e posteriormente tabulados e analisados.

Em relação às cactáceas investigaram-se os usos e saberes populares vinculados às espécies que ocorrem no Estado. As informações foram obtidas mediante as seguintes indagações: Quantos tipos de cactos ocorrem na região? Quais as principais utilidades dessas plantas na região? Quais são os tipos utilizados na medicina tradicional? Quais enfermidades são combatidas por meio dessas plantas? Quais são usadas na culinária? Quais espécies são utilizadas na fabricação de produtos? Quais são utilizadas na ornamentação, no misticismo, na produção de alimento para animais ruminantes e na confecção de objetos?

Para facilitar a análise do estudo, foram definidas as seguintes categorias de uso: medicinal, alimentação humana e animal, construção e fabricação de objetos diversos, ornamentação e místico-cultural.

Resultados e discussão

Aspectos socioeconômicos dos entrevistados

Foram entrevistados agricultores ativos e aposentadas (55,55%), donas de casa (25%), comerciantes de cactos e outras plantas (8,33%), pecuaristas (8,33%) e funcionários públicos (5,55%). A renda predominante dos entrevistados é equivalente a um salário mínimo e oriunda, principalmente, da aposentadoria (40%), autônomo (50%) (pecuarista, comerciante e diaristas) e 10% do setor público (funcionário público e bolsa família). Em relação à escolaridade constatou-se que 41,66% dos entrevistados possuíam o ensino fundamental menor incompleto, 47,22% possuíam o 2º grau incompleto, 8,33% não eram alfabetizados e 2,77% possuíam formação superior.

Com referência ao tempo em que cada entrevistado residia na localidade, constatou-se que a maioria nasceu e cresceu na localidade estudada. A idade média dos entrevistados foi de 45 anos, sendo o mais jovem com 20 anos e o mais velho com 82 anos.

Usos dasCactaceae

Foi identificada a utilização de 11 espécies de Cactaceae, sendo uma endêmica (cabeça-de-frade - Melocactus sergipensis N.P. Taylor & M.V. Meiado), três exóticas (pitaia - Hylocereus undatus Haw., palma doce - Nopalea cochenillifera (L.) Salm-Dyck,palma santa - Opuntia dillenii (Ker-Gawler) Haw.], e sete nativas [palma miúda - Brasiliopuntia brasiliensis (Willd.) Berger, mandacaru - Cereus jamacaru DC. subsp. jamacaru, cabeça-de-frade - Melocactus zehntneri (Britton & Rose) Luetzelb. ecabeça-de-frade - Melocactus violaceus Pfeiff., facheiro - Pilosocereus catingicola (Guerke) Byles & G. D. Rowley subsp. salvadorensis (Werderm.) Zappi, Xique-xique - Pilosocereus gounellei (F.A.C. Weber) Byles & G. D. Rowley subsp. gounellei e quipá - Tacinga inamoena (K. Schum.) N. P. Taylor e Stuppy] pertencentes a cinco gêneros distintos. As espécies citadas podem ser observadas (FIGURA 1).

FIGURA 1: Nomes etnobotânico e nomenclatura botânica, em A, B e C cabeças-de-frade (Melocactus sergipensis, M. zehntneri e M. violaceus respectivamente), D quipá (Tacinga inamoena), E palma doce (Nopalea cochenillifera), F palma miúda (Brasiliopuntia brasiliensis), G xique-xique (Pilosocereus gounellei), H palma santa (Opuntia dillenii), I facheiro (Pilosocereus catingicola), J mandacaru (Cereus jamacaru) e L pitaia (Hylocereus undatus).
Figura 1
Fonte: Bravo Filho, 2014.

Ao realizar levantamento etnobotânico das cactáceas em cinco municípios do semiárido baiano(1), registrou a utilização de dez espécies, sendo que, destas, seis coincidem com as utilizadas no estado de Sergipe. Já realizaram(9) levantamento nas comunidades de Besouro, Barroquinha e Lagoas todas no Estado da Paraíba, registraram o uso de seis espécies em Barroquinha e cinco em Lagoas, todas mencionadas nesta pesquisa. Em revisão(12) sobre os usos das cactáceas no Nordeste brasileiro identificou 31 espécies e destas, cinco coincidem com os resultados obtidos nesta pesquisa, que são: mandacaru, cabeça-de-frade (M. zehntneri), palma doce, palma santa e quipá.

No estado de Sergipe o mais versátil em usos e com maior número de citações foi o gênero Melocactus,mais conhecido na localidade como cabeça-de-frade, aleija-cavalo e coroinha(10), o qual foi citado em 18 tipos de usos distintos. O mandacaru, juntamente com o facheiro, a palma e o xique-xique (alastrado), tiveram três citações, já a pitaia teve apenas uma citação. A espécie palma santa, juntamente com a quipá, tiveram duas citações. Esses resultados não coincidem com os encontrados(12,9,1), pois nestes estudos as espécies que apresentaram maior número de citações foram o mandacaru e a palma forrageira respectivamente. Na FIGURA 2 é possível visualizar o quantitativo das citações por espécies ocorrentes no estado.

FIGURA 2: Frequência absoluta de citações etnobotânicas em todas as categorias de uso por espécie.
Figura 2

Diante destas informações, as espécies foram agrupadas em quatro categorias de usos, as quais são mencionadas abaixo.

Uso medicinal

Foram mencionados 12 problemas de saúde, tratáveis com cinco espécies de cactáceas, cabeça-de-frade (M. zehntneri e M. violaceus), a palma forrageira, o mandacaru e a pitaia. A espécie mais citada foi o cacto cabeça-de-frade, com sete citações de usos no combate a nove enfermidades distintas.  Para a pitaia houve uma citação, enquanto as outras duas (palma forrageira e o mandacaru) apenas duas citações de usos cada. Estes dados são convergentes com os resultados apresentados por(17), em relação à dominância de uso medicinal do cacto cabeça-de-frade, em estudo realizado sobre uso de plantas medicinais nativas do bioma Caatinga, em comunidade rural no município de Caicó, Rio Grande do Norte.

Ao realizarem(18) estudo sobre utilização medicinal de cactáceas por sertanejos baianos, mencionaram 21 problemas de saúde tratáveis com cactos, número que supera em quase 50% dos identificados no estado de Sergipe, sendo coincidentes cinco problemas, como gripe, dor de barriga, problemas renais, doenças do tempo e ressecamento intestinal.

Em Sergipe, a utilização do caule do cacto cabeça-de-frade foi mencionada nos municípios de Aracaju, Porto da Folha, Gararu (M. zehntneri) e Pirambu (M. violaceus) na produção de um suco que é utilizado para combater o diabetes, o colesterol e as hemorroidas. Foi mencionada também a utilização de um caldo extraído a partir do caule da espécie M. violaceus imerso em água, mistura utilizada para ajudar no funcionamento dos rins, melhorar a digestibilidade, evitar o derrame cerebral (AVC) e a epilepsia. A aplicação medicinal mais citada em relação ao cacto cabeça-de-frade foi o preparo de um expectorante conhecido como "lambedor", utilizado para combater gripes e tosses.  Essa planta encontra-se também entre os cactos mais citados(12), ao pesquisar a diversidade de uso das cactáceas no Nordeste do Brasil(18), em levantamento sobre cactáceas utilizadas com fins medicinais por moradores de cinco municípios do semiárido baiano (Valente, Queimadas, Santaluz, São Domingos e Canudos), e(4) em levantamento sobre a distribuição local do mandacaru e do facheiro na comunidade rural de Santa Rita, Município do Congo na Paraíba.

A senhora M.C. do povoado Aguilhadas no município de Pirambu (SE), afirmou que utiliza o cacto cabeça-de-frade (M. violaceus) como medicamento para combater parasitas intestinais de seus familiares e que para facilitar a ingestão, prepara um doce de cabeça-de-frade e serve aos familiares que o ingerem sem perceber que é um medicamento.

A palma forrageira foi citada no município de Aquidabã como excelente medicamento para combater disenteria e dor de barriga, utilizada também mencionada(18), em levantamento etnobotânico na comunidade Lagoa Coberta, no município baiano de são Domingos.

Este medicamento é preparado com as raquetes mais jovens da planta, que após terem suas aréolas removidas, são cortadas em tiras e, posteriormente, colocadas na água por aproximadamente 30 minutos. Em seguida, o caldo é coado e acrescentado um pouco de açúcar para ser ingerido. Além desta utilidade, a palma foi citada no mesmo município para combater problemas do coração e sua administração é feita através do preparo de xarope ou chá.

As citações de usos medicinais da palma forrageira em Sergipe limitam-se apenas à utilização do cladódio e da mucilagem para combater dois problemas de saúde, enquanto(1) citou o cladódio, a raiz, a mucilagem e os espinhos, que são administrados na forma de banho, chá e associado à alimentação, no combate a oito problemas de saúde.

O senhor J.E., de 54 anos, morador do município de Aquidabã, informou que o chá do caule do mandacaru é um medicamento muito eficiente no combate e alívio ao cálculo renal e problemas relacionados à próstata. Citaram (18, 9), respectivamente, sete e oito aplicações de uso medicinal para essa espécie os quais podem ser preparados com o caule e com a raiz. Além do mandacaru, o senhor J.E. afirma utilizar o cactopitaia, no preparo de um medicamente para combater o câncer de próstata.

Alimentação humana e animal

Na alimentação humana foram citadas cinco espécies que são consumidas tanto in natura como utilizados na preparação de alimentos diversos, sendo a produção de doces e o consumo de frutos, as formas de consumo mais citadas. As espécies utilizadas nesta categoria de usos foram o cacto cabeça-de-frade (M. zehntneri e M. violaceus), o mandacaru, a palma forrageira e o quipá.

O cacto cabeça-de-frade (M. zehntneri) foi citado como ingrediente na preparação do doce de cabeça-de-frade que é um dos pratos típicos do Sertão Sergipano, cuja receita é oriunda do cangaço e uma das principais atrações culinárias da cidade de Poço Redondo, em Sergipe. Além desta utilidade, a espécie M. violaceus (cabeça-de-frade) foi citada no município de Aquidabã pelo Senhor J.E. como ingrediente no preparo do ensopado de bacalhau, principalmente durante a semana santa (páscoa). No município de Simão Dias (SE) é fabricado um pão com a forma e o nome do cacto cabeça-de-frade. A utilização na produção de doce de cabeça-de-frade é confirmada por vários estudos etnobotânicos, a exemplo(1, 3, 9, 19). A palma forrageira foi mencionada como matéria-prima no preparo do bolo de palma e de saladas, já o mandacaru e o quipá foram citados no município de Gararu (SE), pelo consumo dos seus frutos in natura quando maduros.

Em relação à utilização de cactos na alimentação de animais foram mencionadas seis espécies, a palma forrageira, mandacaru, facheiro, xique-xique, quipá e cabeça-de-frade, sendo a palma forrageira a mais utilizada inclusive com produção comercial. A segunda mais utilizada foi o mandacaru, principalmente no período de estiagem, porém, em relação a esta espécie, não foi observado e tão pouco citado qualquer tipo de cultivo para abastecer este consumo. As espécies facheiro, xique-xique, quipá e cabeça-de-frade (M. zehntneri) possuem uso restrito aos períodos de seca extrema, principalmente na alimentação de pequenos ruminantes, como caprinos e ovinos, contudo, no município de Pacatuba, o uso do cacto cabeça-de-frade (M. violaceus) foi mencionado como ração para porcos o ano inteiro.

Ao realizarem(9) levantamento etnobotânico sobre as espécies da Caatinga mais utilizadas na alimentação de rebanhos no Município de São João do Cariri – PB, constataram a utilização de 16 espécies, sendo que quatro dessas pertencem à família Cactaceae, e de todas as espécies mencionadas as mais citadas foram: 1º xique-xique (P. gounellei), 2º palma fedorenta ou espinhosa (T. palmadora), 3ºmandacaru (C. jamacaru)e 15º cabeça-de-frade (Melocactus sp.). Esses resultados corroboram, parcialmente, com esta pesquisa, pois, com exceção da T. palmadora, todas as outras espécies também são utilizadas em Sergipe. Há diferença também na ordem de utilização e na quantidade de espécies utilizadas, visto que no estado de Sergipe são utilizadas seis espécies, sendo a palma forrageira a mais utilizada.

Construção e fabricação de objetos diversos

Na construção e fabricação de objetos diversos foram citadas sete espécies de cactos: o mandacaru (C. jamacaru subsp. jamacaru), facheiro(P. catingicola subsp. salvadorensis), xique-xique(P. gounellei subsp. Gounellei), palma forrageira(N. cochenillifera), palma santa(O. dillenii), cabeça-de-frade(M. sergipensis e M. zehntneri). Nesta categoria de uso a construção de cerca-viva foi a atividade que agregou o maior número de espécies e foi observado em seis municípios do Estado. Nos municípios de Maruim e Porto da Folha (mandacaru), em Barra dos Caqueiros (palma santa), em Pirambu e Itaporanga D' Ajuda (palma forrageira), sendo que no município de Gararu observou-se a maior variedade de espécies, com utilização do mandacaru, xique-xique e do facheiro.

No levantamento etnobotânico realizado(9) nas comunidades rurais de Barroquinha e Besouro, na Paraíba e por(1) nos municípios baiano de Santaluz, São Domingos e Valente, foi identificada a utilização apenas do mandacaru (C. jamacaru) com a finalidade de cerca viva. Neste trabalho, outra aplicação bastante citada pelos entrevistados foi a utilização do facheiro na produção de ripas e tábuas para a confecção de telhados e utensílios como portas e janelas, principalmente nos municípios de Porto da Folha e Gararu, resultados convergentes com os obtidos por(1) ao estudar os usos dos cactos no semiárido baiano. Além destas utilizações, o cefálio dos cactos cabeça-de-frade(M. sergipensis e M. zehntneri) foi mencionado como matéria prima para a produção de enchimento para cangalhas, instrumento utilizado no transporte de carga em mulas e jumentos no Sertão de Sergipe, aplicações também citadas por(1), em estudo sobre os cactos úteis da Bahia.

Ornamentação e usos místico-culturais

A ornamentação foi a atividades mais citada e que utiliza a maior diversidade de cactáceas no Estado. Foram mencionadas oito espécies pertencentes às subfamílias Opuntioideae e Cactoideae e a quatro gêneros. Foi identificada a utilização de cactáceas na ornamentação de praças, jardins e residências em toda a área de abrangência da pesquisa. Aracaju foi o município onde se observou a maior frequência de usos para essa finalidade. As espécies utilizadas foram a palma miúda e o cabeça-de-frade (M. sergipensis, M. zehntneri e M. violaceus) na ornamentação de residências, estabelecimentos comerciais e jardins; mandacaru, xique-xique, palma forrageira e a palma santa na ornamentação de praças e jardins.

Evidencia-se pela análise das imagens apresentadas (FIGURA 3), a utilização ornamental e mística-cultural com várias espécies.

FIGURA 3: Usos místico-culturais e ornamentais. Em A, mandacaru (Cereus jamacaru DC. subsp. jamacaru) ornamentação da Igreja Santa Luzia em Porto da Folha - SE; B palma miúda (Brasiliopuntia brasiliensis) ornamentação de residência (Aquidabã – SE); C diversos cactos utilizados na cidade de Aracaju no místico; em D, E e H Melocactus zehntneri utilizado com a finalidade místico-ornamental; F e I Melocactus sergipensis utilizado na ornamentação; em G palma forrageira (Nopalea cochenillifera) utilizada em simpatia para combater o esporão de galo (Fascite Plantar) e em J Melocactus violaceus Pfeiff.
Figura 3
Fotos: Bravo Filho, 2014.

Na categoria místico-cultural, foi citada a utilização de três espécies: o cabeça-de-frade, a palma miúda e o mandacaru. Destas, a mais citada e que teve maior número de aplicações místicas foi o cabeça-de-frade mencionada como "amuleto da sorte" e importante para evitar o mau-olhado, convergindo com resultados obtidos(9), em estudo realizado nas comunidades rurais Besouro e Barroquinha, no município de Lagoa, estado da Paraíba. A utilização do caule do mandacaru foi citada como defumador para evitar doenças do ar, e o aparecimento de suas flores atribui-se como indício de aproximação de chuvas de março, resultado encontrado também por(9) ao realizar pesquisa sobre o conhecimento local das cactáceas em comunidades rurais na mesorregião do sertão da Paraíba. Já a palma miúda foi mencionada como importante para evitar o mau-olhado.

TABELA 1: Relação das espécies de cactos citadas durante a pesquisa etnobotânica ocorrida no estado de Sergipe, contendo nome científico, nome vulgar, categorias de usos e formas de usos.
NOME CIENTÍFICO NOME VULGAR CATEGORIA DE USO UTILIDADE
Brasiliopuntia brasiliensis Palma miúda Místico Mau-olhado
Ornamentação Residências e jardins
Cereus jamacarusubsp. jamacaru Mandacaru Alimento Fruto
Bioindicador Início do florescimento indica a proximidade das chuvas  
Construção Cerca viva
Forragem Alimentação de ruminantes
Medicinal Combate e alívio de cálculo renal e problemas relacionados à próstata
Místico Combate a doenças do ar
Ornamental Jardins
Melocactus sergipensis,
Melocactus zehntneri e Melocactus violaceus
Cabeça-de-frade, coroa-de-frade, coroinha, aleija- cavalo e tamborete-de-sogra Alimento Doces e cozido de bacalhau
Forragem Alimentação de caprinos ovinos e suínos
Medicinal AVC, epilepsia, diabetes, colesterol, hemorroidas, vermes intestinais, melhora o funcionamento dos rins e da digestibilidade.
Místico Utilizado como amuleto da sorte e para evitar e mal olhado.
Ornamentação Residências e jardins
Objeto Enchimento para cangalhas

Nopalea cochenillifera
Palma forrageira e palma de engorda Alimento Bolos e saladas
Construção Cerca viva
Forragem Alimentação de ruminantes
Ornamentação Praças e jardins
Opuntia dillenii Palma Santa Construção Cerca viva
Ornamentação Praças e jardins
Pilosocereus catingicola subsp. salvadorensis Facheiro Construção Cerca viva, ripas para telhados, tabuas para feitura de janelas e portas.
Forragem Alimentação de ruminantes
Pilosocereus gounellei subsp. gounellei Xique-xique e alastrado Construção Cerca viva
Forragem Alimentação de ruminantes
Ornamentação Jardins
Tacinga inamoena Quipá Alimento Fruto
Forragem Alimentação de ruminantes

Conclusão

No estado de Sergipe, as Cactaceae têm grande expressão cultural, visto que estão relacionadas a várias práticas, a exemplo da ornamentação, medicina tradicional, usos místico-culturais, culinária, produção de forragem, como bioindicador da chuva, construção de cercas vivas e produtos diversos.

Registou-se 11 espécies úteis, as quais tiveram 55 citações de usos. Dentre as categorias de usos, a ornamental e a medicinal foram as mais citadas. Os cactos cabeça-de-frade, mandacaru e facheiro tiveram a maior frequência de citações. O cacto cabeça-de-frade, apesar do amplo número de usos a exemplo da culinária, ornamentação, forragem, medicinal, místico-cultural e das particularidades presentes no gênero, com reprodução exclusivamente sexuada e início na fase adulta aos dez anos. Infelizmente não foram observados cultivos comerciais, os espécimes são retirados diretamente da natureza, fragmentando cada vez mais as populações.

Nos municípios localizados na mesorregião do Alto Sertão sergipano, destacam-se os usos na forragem, místico-cultural, fabricação de produtos diversos e alimentos. Já nos municípios localizados no Leste e Agreste, destacam-se os usos na ornamentação e na medicina tradicional.

Apesar da importância cultural da família Cactaceae no estado de Sergipe, boa parte do conhecimento etnobotânico encontra-se vivo apenas na memória de uma parcela da população idosa, por isso fazem-se necessários estudos voltados para esta temática com o intuito de coletar e registrar mais informações relacionadas ao uso popular.

Referências