Artigo Original

Autorização de Acesso ao Conhecimento Tradicional Associado com fins de Bioprospecção: O Caso da UFRJ e da Associação de Comunidades Quilombolas de Oriximiná - ARQMO

Authorization of the Traditional Knowledge Associated Access for Bioprospecting Purposes: The case of UFRJ and the Association of the Oriximiná Quilombola Communities - ARQMO

Oliveira, D. R.13*;
Leitão, S. G.1;
O’Dwyer, E. C.2;
Leitão, G. G.3;
ARQMO4
1Faculdade de Farmácia, Universidade Federal do Rio de Janeiro, CCS, Bloco A 2o andar, sala 10, Ilha do Fundão, 21941-590, Rio de Janeiro, RJ
2Departamento de Antropologia e Programa de Pós-graduação em Antropologia, Universidade Federal Fluminense, Campus Gragoatá, Bloco O, sala 325, 24210-350, Niterói, RJ
3Núcleo de Pesquisas de Produtos Naturais, Universidade Federaldo Riode Janeiro, CCS, Bloco H, Ilha do Fundão, 21941-590, Rio de Janeiro, RJ
4Associação de Comunidades Remanescentes de Quilombos do Municipio de Oriximiná (ARQMO), Rua 24 de dezembro, n. 3068, 68.270-000, Oriximiná, PA
*Correspondência:
danilopharma@gmail.com

Resumo

Embora a discussão sobre anuência prévia e repartição de benefícios tenha ganhado projeção no Brasil em 1992, com a Convenção sobre Diversidade Biológica e a ECO-92, somente 10 anos depois foi publicada a primeira legislação para dispor sobre a proteção, o acesso ao conhecimento tradicional associado (CTA) e a repartição de benefícios (MP 2186-16 de 2001). Quinze anos mais tarde foi emitida a primeira autorização de acesso ao CTA com fins de bioprospecção no Brasil, sendo esta para o presente trabalho. Sendo assim, o objetivo deste artigo é discutir, através de um estudo de caso, envolvendo a Universidade Federal do Rio de Janeiro e a Associação de Comunidades Remanescentes de Quilombo do Município de Oriximiná, as dificuldades para se obter a autorização de acesso pelo Conselho de Gestão do Patrimônio Genético, o laudo antropológico e o contrato de repartição de benefícios. Embora seja notório o despreparo do governo para lidar com o assunto, o que muitas vezes prejudica e inviabiliza a pesquisa nacional, por outro lado há os direitos das comunidades que devem ser respeitados, buscando-se que o acesso traga benefícios aos provedores do CTA. Assim, a garantia desses benefícios deve vir através do cumprimento da legislação vigente, que ainda necessita ser aperfeiçoada.

Unitermos:
Bioprospecção.
Laudo Antropológico.
Patrimônio Genético.
Conhecimento Tradicional Associado.
Anuência Prévia.
Contrato de Repartição de Benefícios..

Abstract

Although the discussion about prior informed consent and sharing of the benefits has gained projection in Brazil in 1992, with the Convention on Biological Diversity and the ECO-92, only 10 years later the first legislation was published to dispose on the protection, the access to the traditional knowledge associate (CTA) and the sharing of benefits (MP 2186-16 of 2001). Fifteen years later the first authorization to CTA access for bioprospecting in Brazil was emitted, being this one for the present work. Thus, the aim of this article is to discuss, through a case study, involving the Federal University of Rio De Janeiro and the Association of Remaining Communities of Quilombo of the City of Oriximiná, the difficulties to get the authorization of access with the Directing Council of the Genetic Heritage, the anthropologic appraisal and the benefit sharing contract. Although it’s well-known the unpreparedness of the government to deal with the subject, many times harming and making impracticable the national research, on the other hand there are the rights of the communities that must be respected, hoping that the access to their knowledge may bring benefits to the purveyor of the CTA. Thus, the guarantee of these benefits must come through the fulfillment of the current law that still needs to be improved.

Key Words:
Bioprospection.
Anthropologic Appraisal.
Genetic Heritage.
Traditional Knowledge Associated.
Prior Informed Consent.
Benefit Sharing Contract..

Introdução

Descobertas de Novos Fármacos a partir do Conhecimento Tradicional Associado

Diversas abordagens e critérios podem ser empregados na seleção de plantas para a realização de triagens de atividades biológicas na busca por novos fármacos. Na abordagem randômica, a coleta de plantas se dá ao acaso. Pode-se randomizar uma coleta em área genérica, com diversidade taxonômica reconhecida; preferencialmente em regiões com alto grau de diversidade e endemismo . A abordagem etnofarmacológica utiliza-se de informações etnomédicas obtidas sobre os usos medicinais tradicionais ou populares das plantas em uma determinada sociedade (SOEJARTO, 1996; ELIZABETSKY; SHANLEY, 1994; ALBUQUERQUE; HANAZAKI, 2006). As estratégias etnofarmacológicas têm sido amplamente empregadas para a realização de triagens biológicas em diversas áreas terapêuticas tais como: câncer, imunomoduladores, alergia, analgésicos, contraceptivos, antimaláricos, antidiarréico, antimicrobiano, antivirais, etc. (ELIZABETSKY; SHANLEY, 1994).

Alguns estudos têm comparado os resultados obtidos pela seleção randômica de plantas com a abordagem etnofarmacológica, também chamada etnodirigida. Em Ruanda, na África, foram testadas 100 plantas medicinais para atividade antimicrobiana. Destas, 68 tinham indicação para doenças infecciosas, sendo 37% delas ativas, enquanto que para as 36 plantas medicinais que foram incluíram pela abordagem randômica apenas 22% apresentaram atividade (BOILY; VAN PUYVELDE, 1986). Em outro estudo realizado no Sinai (Egito) para plantas com atividade antimicrobiana obteve-se resultado positivo para 83,3% das espécies pela abordagem etnodirigida, contra 41,7% na abordagem randômica (KHAFAGI; DEWEDAR, 2000). No Brasil, em um estudo de atividade antimalárica realizado com 295 extratos de espécies vegetais, 273 foram testadas pela abordagem randômica tendo apenas 0,7% de resultados positivos, enquanto que para as 22 plantas medicinais com indicações para febre e malária os extratos positivos representaram um total de 18% (CARVALHO; KRETTLI, 1991). Em Belize, na América Central, coletas aleatórias de plantas enviadas para o Instituto Nacional do Câncer (NCI, EUA) para atividade anti-HIV resultaram em 6% de amostras ativas. No entanto, com amostras selecionadas etnofarmacologicamente, a partir de um curandeiro de uma pequena vila de Belize, obteve-se 25% de atividade, este um percentual quatro vezes maior (ALBUQUERQUE; HANAZAKI, 2006).

Slish e colaboradores (1999), ao avaliar extratos de plantas obtidos pelo método etnodirigido (n= 31) para o efeito relaxador da musculatura lisa da aorta de ratos, obteve um resultado de 12,9% de espécies ativas, enquanto que pelo método randômico (n = 32) nenhuma espécie foi ativa. Em um teste com 80 plantas da medicina tradicional das Ilhas Reunião para atividade inibidora da enzima conversora de angiotensina, a qual tem importante papel na regulação da pressão e da diurese, 44% das espécies indicadas pelo efeito anti-hipertensivo ou diurético mostraram-se ativas, contra 31% das espécies sem tais indicações (ADSERSEN; ADSERSEN, 1997).

Biodiversidade e Sociedades Tradicionais

Segundo Dias (2001), Biodiversidade refere-se à variedade de vida, incluindo: a variedade genética dentro das populações e espécies; a variedade de espécies da flora, da fauna, de micro-organismos; a variedade de funções ecológicas desempenhadas pelos organismos nos ecossistemas e a variedade de comunidades, habitats e ecossistemas formados pelos organismos. A biodiversidade, além de responsável pelo equilíbrio e estabilidade dos ecossistemas, é fonte de imenso potencial de uso econômico, sendo a base das atividades agrícolas, pecuárias, pesqueiras e florestais e, também, a base para a estratégica indústria da biotecnologia. A diversidade biológica possui, além de seu valor intrínseco, valores de cunho ecológico, genético, social, econômico, científico, educacional, cultural, recreativo e estético (DIAS, 2001).

O Brasil é o país com maior biodiversidade do mundo, contando com um número estimado entre 10 e 20% do número total de espécies do planeta. Conta com a mais diversa flora do mundo, com mais de 45.000 espécies descritas (perto de 20% do total mundial) (DIAS, 2001). Junto a essa biodiversidade, o Brasil possui diversas Sociedades (ou Populações) Tradicionais que são “grupos humanos diferenciados sob o ponto de vista cultural que reproduzem, historicamente, seu modo de vida, de forma mais ou menos isolada, com base na cooperação social e relações próprias com a natureza. Essa noção refere-se tanto a povos indígenas quanto a segmentos da população nacional, que desenvolveram modos particulares de existência, adaptados a nichos ecológicos específicos”(DIEGUES; ARRUDA, 2001, p.27). Essas comunidades detêm modelos históricos e imemoriais nativos de relação com a natureza; modelos estes elaborados pelos próprios agentes, pois a interação com a natureza implica em abertura de idéias para conhecê-la e concebê-la, sendo sentida e vivida experimentalmente pelas populações que a habitaram e ainda a habitam, tornando-se presentes nos seus comportamentos, expressões, crenças e tecnologias (CORRÊA et al., 1994). É evidente, portanto, que as Populações Tradicionais (seringueiros, castanheiros, ribeirinhos, quilombolas e principalmente as sociedades indígenas) desenvolveram, pela observação e experimentação, um extenso e minucioso conhecimento dos processos naturais, sendo até hoje as únicas práticas de manejo adaptadas às florestas tropicais (CORRÊA et al., 1994; DIEGUES; ARRUDA, 2001).

Segundo Dias (2001), “as Populações Tradicionais devem ser entendidas como aquelas cujos sistemas de produção e uso de recursos naturais são de baixo impacto ambiental, permitindo a reprodução dos ecossistemas”. Os conhecimentos tradicionais são produzidos e gerados de forma coletiva com base em ampla troca e circulação de idéias e informações e transmitidos de uma geração a outra (SANTILLI, 2005). A questão da oralidade é uma característica própria a elas, já que a grande maioria das comunidades detentoras do conhecimento tradicional não possui uma tradição escrita (REZENDE; RIBEIRO, 2005).

Dentro das sociedades tradicionais ainda existem subdivisões, muitas vezes heterogêneas entre si, chamadas comunidades tradicionais. Em dicionários diversos, é possível encontrar dezenas de definições para a palavra comunidade, sendo que as mais relacionadas ao campo da etnopesquisa seriam: (1) Agrupamento social que se caracteriza por acentuada coesão baseada no consenso espontâneo dos indivíduos que o constituem (AURÉLIO, 2009); (2) Agremiação de indivíduos que vivem em comum ou têm os mesmos interesses e ideais políticos, religiosos etc. (MICHAELIS, 2009). As comunidades tradicionais compreendem as comunidades tradicionais indígenas e as não indígenas. Sendo específica a uma determinada área, a comunidade tradicional também pode ser chamada de comunidade local, quando o seu modo de vida e suas inter-relações sociais e materiais são indissociáveis da diversidade biológica desse dado local e à reprodução dos conhecimentos tradicionais a ela associados.

Comunidades Quilombolas ou Remanescentes de Quilombo

O termo “remanescente de quilombo” remete à noção de resíduo de algo que já se foi e de que sobraram apenas algumas lembranças. A Associação Brasileira de Antropologia, por intermédio do grupo de trabalho “Terra de Quilombo”, contextualiza o termo da seguinte maneira (O’DWYER, 2002, p.18):

Contemporaneamente, portanto, o termo não se refere a resíduos ou resquícios arqueológicos de ocupação temporal ou de comprovação biológica. Também não se trata de grupos isolados ou de uma população estritamente homogênea. Da mesma forma, nem sempre foram constituídos a partir de movimentos insurrecionais ou rebelados, mas, sobretudo, consistem em grupos que desenvolveram práticas de resistência na manutenção e reprodução de seus modos de vida característicos num determinado lugar.

Segundo O’Dwyer (1995), os próprios grupos utilizam o termo para designar um legado, uma herança cultural e material que lhes confere uma referência presencial quanto ao sentimento de ser e pertencer a um lugar e um grupo específico.

O Decreto 4.887, de 20 de novembro de 2003, em seu artigo 2º, considera os remanescentes das comunidades dos quilombos como grupos etnicorraciais, segundo critérios de autoatribuição, com trajetória histórica própria, dotados de relações territoriais específicas, com presunção de ancestralidade negra, relacionada com a resistência à opressão histórica sofrida (FCP, 2008). O número de comunidades quilombolas no país, bem como sua dimensão em número de habitantes, é ainda incerto. Existem comunidades quilombolas em pelo menos 24 estados brasileiros. Estima-se que em todo o país existam mais de 3 mil comunidades quilombolas (INCRA, 2008; CPI-SP, 2008). No Estado do Pará, já se sabe da existência de pelo menos 240 comunidades quilombolas e acredita-se que muitas outras ainda serão identificadas (INCRA, 2008; CPI-SP, 2008). Foi no Pará, no município de Oriximiná, que, pela primeira vez uma comunidade quilombola recebeu o título coletivo das suas terras. Isso foi no ano de 1995, sendo ela a Comunidade Quilombola Boa Vista, com 1.175 hectares (INCRA, 2008; CPI-SP, 2008).

Comunidades Quilombolas do Baixo Amazonas

Os escravos foram trazidos à região do Baixo Amazonas (Santarém, Monte Alegre, Alenquer e Óbidos), para servir de mão-de-obra em atividades agrícolas, na pecuária, além de trabalhos domésticos e em construções urbanas públicas e privadas. A mão de obra escrava na região teve início por volta de 1780. Historiadores acreditam que esses escravos eram originários da região da África conhecida como Congo-angolana, sendo na sua maioria de etnia bantu (ANDRADE, 1995; ACEVEDO; CASTRO, 1998; CPI-SP, 2008).

Comunidades Quilombolas de Oriximiná

Os remanescentes de quilombo de Oriximiná tiveram suas origens no movimento de fuga e resistência dos negros escravos na região do baixo Amazonas, sendo atestado por vários documentos do século XIX, como relatos de viajantes, relatórios de autoridades e ofícios. A formação dos quilombos foi iniciada, provavelmente, no final do século XVIII e início do século XIX. Registros históricos falam de expedições punitivas enviadas para destruir os quilombos e recapturar os escravos no ano de 1812, sendo destruídos os quilombos do Inferno e Cipotema, nas cabeceiras do rio Curuá (ANDRADE, 1995; ACEVEDO; CASTRO, 1998). A cada ataque de expedição punitiva, os que conseguiam fugir subiam pelo rio Trombetas e optavam por duas rotas: uma que seguia rumo aos rios Cuminã e Erepecuru, e outra em direção ao Alto Trombetas, para trechos navegáveis, bem acima das cachoeiras. Eles iam identificando novas possibilidades de fuga, desenhando novos caminhos e descobrindo quais as barreiras naturais para impedir o trânsito das tropas e dos capitães-do-mato (ACEVEDO; CASTRO, 1998; ANDRADE, 1995). A escolha desses lugares era estratégica, pois se tratava de áreas longínquas onde a captura era difícil, mas possibilitavam o plantio de alguns produtos para a subsistência (CPI-SP, 2008). O distanciamento de Óbidos e das fazendas de colonos às vezes era tamanho que atingiam os limites com o atual Suriname, muito acima das cachoeiras do Erepecuru, comunicando-se não apenas com índios, mas também com os Bonis, marrons, grupos étnicos da então Guiana Holandesa de origem e contexto histórico semelhantes aos quilombolas brasileiros (ACEVEDO; CASTRO, 1998).

Os quilombos nunca conseguiram um isolamento total da sociedade escravista. As perseguições repressivas aos quilombos perduraram até a abolição da escravatura, em 1888. Contudo, o contato dos quilombos com a sociedade não era marcado apenas pela repressão e pela hostilidade, oscilando também com visitas de religiosos, cientistas e comerciantes (ANDRADE, 1995). Os negros dos quilombos do Erepecuru e Trombetas também organizaram redes de informações e de contatos que lhes permitiam incursionar na cidade de Óbidos, nos sítios e nas redondezas para vender madeiras, castanhas, urucum, breu, cacau, mandioca, macaxeira, jerimum, tabaco e algumas das chamadas “drogas do sertão” (salsaparrilha, óleo de copaíba, cumaru) (ACEVEDO; CASTRO, 1998; ANDRADE, 1995). A qualidade e o tamanho das castanhas coletadas pelos mocambos, bem como a qualidade do tabaco cultivado traziam grande repercussão (ACEVEDO; CASTRO, 1998).

Os negros estabelecidos acima das cachoeiras do Alto Erepecuru e Alto Trombetas começaram a descer as cachoeiras nos anos 70 do século XIX. Com o fim da escravidão, os quilombolas continuaram descendo do alto dessas cachoeiras, progressivamente, concentrando-se no trecho logo abaixo da primeira cachoeira. No caso do Trombetas, abaixo da cachoeira Porteira e, dali, criando uma série de comunidades descendo o rio e os lagos. Da mesma forma ocorreu com os quilombolas do Alto Erepecuru, que desceram para a cachoeira Pancada e foram ocupando rio abaixo e os lagos ao redor (ANDRADE, 1995).

Após o fim da escravidão, os quilombolas passaram por outros problemas. O governo e as oligarquias promoveram a incorporação dessas terras com abundância de castanhais onde os quilombolas viviam e retiravam o seu sustento. Assim, as unidades familiares dos quilombos inseriram-se nas “relações de patronagem” com os “proprietários dos castanhais”. Na medida em que permeava a prática de caráter privativista do tipo compra, venda e arrendamento, os quilombolas moviam-se entre o endividamento com os patrões, no exercício do extrativismo da castanha, e a sua existência como camponeses, até a década de 60 do século passado. Após conflitos diversos, houve um rompimento das relações de patronagem (ACEVEDO; CASTRO, 1998). Esse período coincidiu com a descoberta de gigantescas jazidas de bauxita na região, depois de estudos de prospecção dos órgãos oficiais. Essa descoberta culminou, em meados da década de 70, na incorporação da Mineração Rio do Norte (MRN) que acabou ocupando e adquirindo grandes áreas do município e dos quilombolas, gerando conflitos de interesse (ACEVEDO; CASTRO, 1998). O empreendimento de exploração mineral levantou uma grande “cidade luminosa” em meio à floresta, conforme as previsões de um grande “sacaca” e profeta quilombola, chamado Balduíno, morador da Comunidade Serrinha (O’DWYER, 2002). Começou aí uma nova relação de conflito e resistência, que se estendeu nos anos seguintes com a criação da Reserva Biológica do Trombetas (1979) e da Floresta Nacional Saracá-Taquera (1989). Em virtude da delimitação do seu território pela mineradora e pelas unidades de preservação ambiental, bem como pelo controle do IBAMA, essas comunidades que sempre viveram dos roçados, da pesca, da caça e da coleta sazonal da castanha se viram ameaçadas pela existência de um novo uso desigual de poder (O’DWYER, 1995; SANTILLI, 2005).

Três territórios quilombolas do município de Oriximiná, ocupados por 12 comunidades, passaram a coincidir com as unidades de conservação administradas pelo governo federal. Dos 811 mil hectares reservados às duas unidades de conservação, 292 mil hectares representaram uma área de jurisdição sobreposta. Portanto, a criação das unidades de conservação desconsiderou não apenas os direitos, mas a própria existência secular dos quilombolas nessas áreas, causando enormes prejuízos (CPI-SP, 2008). A partir destes conflitos de interesses as “comunidades negras” ao longo dos rios Trombetas e Erepecurú-Cuminã estabeleceram entre si uma relação associativa para a ação política comum com base na autoidentificação étnica de “remanescentes de quilombos” (O’DWYER, 1995). Assim, foi fundada em 1989 a “Associação de Comunidades Remanescentes de Quilombos do Município de Oriximiná” - ARQMO, atuando como órgão representativo em oposição aos interesses políticos e econômicos, na busca pelo reconhecimento e pelo direito às terras que ocupam por várias gerações.

Atualmente, existem 34 comunidades quilombolas no município de Oriximiná distribuídas em 8 regiões distintas: Boa Vista, Água Fria, Trombetas, Erepecuru, Alto Trombetas, Ariamba, Jamari/Último Quilombo e Moura. Muitas destas já conseguiram as titulações coletivas de suas terras, passando estas a ser um bem público de seus moradores dentro de uma organização social das próprias comunidades (OLIVEIRA, 2009). A origem africana e o relativo isolamento dos negros quilombolas dos rios Trombetas e Erepecuru-Cuminã foram evidenciados por um estudo que comprovou o baixo grau de miscigenação com índios e brancos. A pesquisa foi realizada com 201 quilombolas dessas regiões demonstrando serem 62% dos indivíduos negros, 11% miscigenados com índios e outros 27% com ancestrais brancos. Isto conclui que as comunidades mantêm ainda uma ancestralidade característica muito forte, apesar do processo de miscigenação que está ocorrendo em todo o

Brasil (SCHNEIDER et al., 1987). Em parte, isso se deve ao distanciamento, já que os escravos orientavam suas fugas para as cabeceiras dos rios, sendo locais distantes e de difícil acesso. Segundo O’Dwyer (2005), “esses grupos são constituídos por unidades domésticas reunidas por laços de consangüinidade e aliança”. Nas comunidades quilombolas do Trombetas e Erepecuru, todos se consideram parentes, reunidos por laços de ascendência comum. A etnicidade dos quilombolas, no entanto, está associada não só ao fenótipo, mas também ao modo de vida, à origem comum presumida do tempo da escravidão e das fugas para os quilombos, e igualmente pelo aspecto da religiosidade (O’DWYER, 2005).

O Problema da Biopirataria

A biodiversidade, em especial a das regiões tropicais do planeta, desperta a cobiça de países diversos desde os séculos XV e XVI. O Brasil vem sendo vítima de exploração, muitas vezes clandestina, de diversos países, no que diz respeito a sua megabiodiversidade, com seus vários biomas, bem como os conhecimentos provenientes de sua diversidade étnica.

Um caso clássico é o do inglês Henry Wickham que, em 1876, contrabandeou 70.000 sementes de seringueira do Brasil para a Malásia, então colônia inglesa, onde foi implantado um sistema diferenciado de cultivo, superando em muitas vezes a eficiência do extrativismo da borracha natural na Amazônia. A Região Norte, em especial os Municípios de Belém e Manaus, que vinham crescendo e se enriquecendo pelo comércio da borracha, entraram em decadência no inicio do século XX (HOMMA, 2005; MEDINA; ALMEIDA, 2006; CAPOZOLI, 2008).

Shiva (1997, apud KRUCKEN, 2007, p.183) destaca a pratica de biopirataria associada ao registro de patentes, como uma forma de apropriação e exploração indevida pelos países desenvolvidos, a partir do patrimônio de países em desenvolvimento. Exemplos recentes de biopirataria primam pela audácia: No Japão foi registrado o processo de fabricação do “copulate”, um chocolate fabricado a partir das sementes do cupuaçu, desenvolvido pela Embrapa no Brasil. Além disso, produtos nativos da biodiversidade brasileira tiveram os seus próprios nomes populares patenteados e registrados, como o cupuaçu (Japão) e o açaí (Alemanha). Outros produtos da flora brasileira patenteados são a castanha-do-pará (72 patentes nos Estados Unidos), andiroba, amapá-doce, piquiá, jambú, unha-de-gato, marapuama, quebrapedra e sangue de drago (MASCARENHAS, 2004; HOMMA, 2005; MEDINA; ALMEIDA, 2006; SANTILLI, 2005).

Segundo Santilli (2005, p.204), o que os vários casos de biopirataria têm em comum é o fato de espécies vegetais serem coletadas em países com megabiodiversidade, com (ou sem) o uso de conhecimento tradicional associado, e sem o consentimento prévio (e informado) dos países de origem, e levadas para o exterior, com a finalidade de identificação de princípios ativos úteis. Assim, produtos e processos são desenvolvidos e patenteados, sem repartição dos benefícios com os países de origem de tais recursos. Dessa forma, há uma apropriação indevida e injusta. Nos últimos anos, com a crescente repercussão dos benefícios dos produtos naturais da Amazônia, a facilidade de difusão de informação, a busca por uma vida saudável e o valor econômico agregado a produtos com a marca “Amazônia” aumentaram os casos de biopirataria na região. A apropriação indevida real e potencial do conhecimento das comunidades locais e das populações autóctones (que deveriam ser os legítimos detentores da propriedade intelectual) é um dos problemas mais complexos para o futuro do conhecimento tradicional e do uso sustentável dos recursos da biodiversidade (KHOR, 2002 apud KRUCKEN, 2007).

A Legislação Brasileira

A Constituição Federal de 1988 caracteriza a Amazônia, a Mata Atlântica, a Serra do Mar, o Pantanal Matogrossense e a Zona Costeira como patrimônio nacional, ou seja, como bens de Estado. Determina, ainda, que sua utilização far-se-á na forma da lei. Em seu Artigo 225, foi estabelecida a responsabilidade sobre a preservação do meio ambiente e sobre a fiscalização da pesquisa que utiliza o patrimônio genético. Com isso, verifica-se o interesse declarado do Estado em salvaguardar o patrimônio genético do país. No entanto, era clara a inexistência de uma legislação específica para o assunto e segundo Medina e Almeida (2006), o país permanecia à mercê de biopiratas e caçadores de genes, que agiam sob pretextos diversos, tais como o de prestar assistência às populações ribeirinhas, aos índios; ou mesmo travestidos de turistas ou pesquisadores idôneos.

A discussão sobre a proteção do patrimônio genético das nações em desenvolvimento detentoras de megabiodiversidade e das comunidades tradicionais teve como marco histórico do ambientalismo nacional e internacional a 2a Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento, realizada em 1992 no Rio de Janeiro (ECO-92). Nesta, foi elaborada a Convenção sobre a Diversidade Biológica (CDB), que reconheceu o direito soberano das nações sobre sua diversidade biológica, incluindo os recursos genéticos encontrados nos territórios sob sua jurisdição. Além disso, estabeleceu claramente nos seus objetivos a necessidade da conservação da diversidade biológica, utilização sustentável dos seus componentes e da partilha justa e equitativa dos benefícios provenientes da utilização dos recursos genéticos (MMA, 2000).

No Brasil, ainda havia a necessidade da criação de um regime jurídico de proteção aos conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade, que evitasse a sua apropriação e utilização indevida por terceiros, e que desse mais segurança jurídica às relações entre os interessados em acessar recursos genéticos e conhecimentos tradicionais associados (bioprospectores ou pesquisadores acadêmicos) e os detentores de tais recursos e conhecimentos, estabelecendo os parâmetros e critérios jurídicos a serem observados nessas relações e acordos (SANTILLI, 2005). No entanto, passou-se um longo período sem que o Congresso brasileiro legislasse sobre o assunto. Segundo Lavratti (2007):

Esse “vácuo legal” possibilitou um episódio de fortes repercussões negativas, que foi o acordo firmado pela Associação Brasileira para o Desenvolvimento Sustentável da Biodiversidade da Amazônia - Bioamazônia com a empresa farmacêutica suíça Novartis Pharma AG, em maio de 2000. O acordo tratava do fornecimento de linhagens e extratos de microorganismos da região amazônica à empresa, para realização de bioprospecção, sem previsão de transferência tecnológica para que esses estudos fossem realizados no Brasil.

Como reação às críticas, cerca de 10 anos após a ECO-92, o Governo editou a Medida Provisória 2.186-16 (BRASIL, 2001) para regulamentar os dispositivos da Constituição Federal e da CDB. O Artigo 10 da MP 2186-16 (Medida Provisória) instituiu o Conselho de Gestão do Patrimônio Genético (CGEN) para dispor sobre o acesso ao patrimônio genético, a proteção e o acesso ao conhecimento tradicional associado (CTA), a repartição de benefícios e o acesso à tecnologia e transferência de tecnologia para sua conservação e utilização. A MP 2.186-16 criou ainda algumas definições importantes, dentre elas a definição de Bioprospecção como “atividade exploratória que visa identificar componente do patrimônio genético e informação sobre conhecimento tradicional associado, com potencial de uso comercial”. A partir daí, para se realizar um acesso ao CTA passou a ser necessária a anuência prévia dos titulares da área (MP 2186-16, art. 14, I-b) e, no caso de haver perspectivas de uso comercial, ou seja, acesso ao CTA para atividade de bioprospecção seria necessária a assinatura de um contrato de repartição de benefícios (MP 2186-16, art. 16 §4o). Assim, o acesso a toda informação útil à identificação de princípios ativos fornecida pelo conhecimento tradicional deve ser precedido do consentimento fundamentado de seus detentores, e a sua utilização comercial deve ser feita mediante mecanismos de repartição de benefícios (SANTILLI, 2005). O CGEN elaborou resoluções específicas para cada tipo de acesso. No caso de “autorização de acesso ao CTA com fins de bioprospecção” (perspectiva ou potencial de uso comercial), passou a vigorar a Resolução no 6 do CGEN, de junho de 2003 (BRASIL, 2003), para elaboração do Termo de Anuência Prévia (TAP) e a Resolução no 11 do CGEN/MMA, de março de 2004 (BRASIL, 2004), para elaboração do Contrato de Repartição de Benefícios.

Termo de Anuência Prévia

O Consentimento Prévio e Informado, também chamado de Termo de Anuência Prévia (TAP) é um “procedimento pelo qual os povos e comunidades dententoras dos recursos tangíveis e intangíveis da biodiversidade autorizam, voluntária e conscientemente, mediante o fornecimento de todas as informações necessárias, o acesso e a utilização, por terceiros, de tais recursos” (SANTILLI, 2005, p.230). Devem ser esclarecidos todos os riscos e benefícios do projeto, bem como os objetivos da pesquisa, resultados esperados, fontes de financiamento, métodos que serão usados, duração, etc. Outra questão fundamental é que aquele que consente deve ser instruído em linguagem de fácil acesso e compreensão.

No caso da Resolução no 6 do CGEN, o TAP deve constar de esclarecimento à comunidade ou provedor, respeito as formas de organização social, esclarecimentos sobre impactos e sobre direitos e responsabilidades, garantia ao direito de recusar o acesso e estabelecimento de modalidades e formas de contrapartida e repartição de benefícios. Além disso, deve ser acompanhado de um laudo antropológico elaborado por um profissional externo à instituição requerente, contendo os seguintes pontos: informações sobre organização social e representação política, avaliação do grau de esclarecimento da comunidade, avaliação dos impactos sócioculturais, descrição e avaliação dos procedimentos.

Contrato de Repartição de Benefícios

O contrato de Repartição de Benefícios é um instrumento jurídico multilateral, que qualifica as partes, o objeto e as condições de acesso de componente do patrimônio genético e de conhecimento tradicional associado, bem como as condições para repartição de benefícios (art. 7º, inciso XIII, da MP 2186-16). Ele deve conter cláusulas obrigatórias como: prazo, formas de repartição de benefícios, coerência com o TAP, previsão sobre direitos de propriedade intelectual, penalidades e rescisão, transferência de informações ou direitos somente com prévia anuência. As comunidades tradicionais, segundo o art. 9 da MP 2186-16, têm garantido o direito de decidir sobre o uso de seu CTA, bem como de receber benefícios pela exploração econômica do CTA por terceiros, direta ou indiretamente, cujos direitos são de sua titularidade. Quando se fala em repartição de benefícios, é importante entender que benefício nem sempre significa retorno financeiro direto. Os benefícios podem ser divididos em:

Não Monetários, tais como treinamentos (capacitação de recursos humanos), cursos e palestras, transferência de tecnologia, pesquisa em doenças do interesse do provedor, projetos de uso sustentável de seus recursos genéticos para geração de novas formas de renda para as comunidades, elaboração de cartilhas, livros, e outras formas de registro e devolução do conhecimento tradicional à comunidade; e

Monetários, que envolvem percentual sobre o lucro (royalties, etc.) no caso de geração de patente para desenvolvimento de algum fitofármaco ou fitoterápico, ou qualquer outro tipo de patente que envolva tal acesso.

No tocante às instituições públicas de ensino e pesquisa, para acesso ao CTA, em geral, prevalecem, inicialmente, os benefícios não monetários.

Metodologia

A metodologia adotada foi construída paulatinamente, e seguiu as etapas abaixo (que já incluem circunstancialmente os resultados derivados do procedimento adotado:

Escolha das Comunidades Quilombolas do Baixo Amazonas: As atividades de pesquisa realizadas no município de Oriximiná-PA desde 2002 possibilitaram ao nosso grupo tomar conhecimento da existência de diversas comunidades quilombolas na região do Baixo Amazonas (OLIVEIRA et al., 2006). Em grande parte, as comunidades quilombolas de Oriximiná-PA possuem titulação coletiva de suas áreas, nas quais exercem suas atividades de subsistência e o extrativismo da castanhado-pará. O contato íntimo com a natureza, ao longo de séculos, e o conhecimento formado a partir de um complexo índios-negros-portugueses, bem como o isolamento geográfico das áreas urbanas, trouxeram aos membros das comunidades um vasto conhecimento das plantas medicinais, a ser pesquisado. Considerando que o extrativismo da castanha é fonte de renda para os castanheiros apenas durante um período curto do ano, o conhecimento e a valorização das espécies medicinais poderão gerar fontes alternativas de renda. Uma forma de buscar essas novas fontes é a bioprospecção.

Diálogo inicial entre o bioprospector e o detentor dos conhecimentos tradicionais:

Com o intuito de realizar o levantamento etnofarmacológico das plantas utilizadas em comunidades quilombolas de Oriximiná, o contato inicial foi travado com as lideranças da Associação de Comunidades Quilombolas de Oriximiná (ARQMO), no caso, os seus coordenadores. A ARQMO desde a sua criação e estruturação passou a ter o seu estatuto. As deliberações, no âmbito do interesse coletivo dos membros das comunidades passaram a ser representadas por seus coordenadores, escolhidos em assembléia geral dos remanescentes de quilombo do município. Essa coordenação geral procurava reunirse na sede da ARQMO pelo menos uma vez por mês. Além disso, a cada mês do ano, um coordenador com sua respectiva família deixavam a sua comunidade para permanecer de plantão na sede da ARQMO, representando a Associação e respondendo pelos interesses coletivos até a data da reunião seguinte. Inicialmente, no período de dezembro de 2005 a abril de 2006, em função da distância, foi realizada uma série de contatos telefônicos com diversos coordenadores ao longo de cinco meses. Nesse processo, a farmacêutica do município Dra. Stela Souza Santos, que já conhecia em parte as comunidades e alguns coordenadores, participou deste processo de aproximação, despertando o interesse e confiança da ARQMO na realização do estudo com suas plantas medicinais. Além disso, nesse período foi enviada à ARQMO toda a legislação pertinente à autorização de acesso ao conhecimento tradicional (CDB, MP 2186-16, Resoluções no 06 e no 11 do CGEN/MMA), além de um projeto de tese e do contrato de repartição de benefícios elaborado pelo bioprospector (UFRJ). No dia 2 de maio de 2006 foi realizada a primeira reunião formal entre a UFRJ e a ARQMO, na sede da Associação. Posteriormente, outras reuniões foram realizadas.

O Consentimento Prévio e Esclarecido das Comunidades: O TAP foi elaborado de acordo com a resolução no 6 do CGEN, de junho de 2003. O processo de esclarecimento e consentimento das comunidades, após a primeira reunião com a coordenação na sede da ARQMO, envolveu uma palestra de exposição do projeto abordando objetivos, métodos, todas suas etapas, perspectivas, riscos, duração, fonte de financiamento, repartição de benefícios e o direito livre de escolha para participar ou não do referido estudo. Ao final da palestra, foi entregue para os coordenadores um formulário estruturado para avaliar a compreensão dos membros e o interesse deles na realização do trabalho. As perguntas possuíam respostas diretas do tipo: ótimo, bom, razoável e ruim. Os formulários não possuíam identificação dos coordenadores e todos os 12 foram recolhidos conjuntamente, após um período de 48 horas para o preenchimento, apresentando 100% das respostas na categoria ótimo e bom. Coincidindo com este período, dois membros de comunidades extrativistas de Manicoré (AM) estiveram nas comunidades quilombolas de Oriximiná para trocar experiência sobre a obtenção das “Boas Práticas do Manejo da Castanha”, que valorizavam o preço da castanha em até 200% e abriam portas para o amplo comércio nacional e internacional da castanha, sem a interferência dos “atravessadores” que ficavam com a maior parte do lucro. Essa troca de experiências foi realizada em reuniões no barracão de determinadas comunidades, divididas por regiões, alcançando os membros extrativistas de todas as comunidades quilombolas do Erepecuru/ Cuminã. A primeira reunião foi realizada na comunidade Jauari, contando com membros das comunidades do Samauma, Cuminã e Varre-Vento, e a segunda reunião realizada na comunidade de Pancada, contando com membros das comunidades de Espírito-Santo e São Joaquim. Em cada reunião, os membros da ARQMO e as lideranças das comunidades faziam a apresentação do bioprospector dando-lhe a palavra para apresentação do trabalho proposto. A compreensão e aceitação do trabalho nos dois casos foram surpreendentes, com grande interesse e curiosidade dos quilombolas. Nesse período ainda foram selecionadas as comunidades onde seria realizado o levantamento etnofarmacológico em função de: facilidade de acesso, acomodação para pesquisadores, maior preservação dos conhecimentos e maior número de pessoas detentoras de larga experiência no uso de plantas medicinais. Assim, foram escolhidas as comunidades de Pancada, Jauari e Serrinha, localizadas na área do Erepecuru, e as comunidades de Arancuã-do-Meio e Bacabal, na área do rio Trombetas. Ao término desse processo, o coordenador de projetos da ARQMO assinou o TAP e o contrato de repartição de benefício entre a ARQMO e a UFRJ. No entanto, o CGEN não emitiu a autorização de acesso pela ausência da apresentação de laudo antropológico emitido por antropólogo externo à UFRJ.

Laudo Antropológico: Para elaboração do laudo antropológico, a UFRJ não dispunha de recursos. Pelo fato de ser o primeiro projeto do gênero a ser aprovado pelo CGEN, e pela exigência da resolução de que não se utilizasse um antropólogo interno à própria instituição, o referido órgão concordou em custear as despesas de um antropólogo externo para preparar o laudo, o que foi realizado pela Profa. Dra. Eliane Cantario O’Dwyer, do Depto. de Antropologia da Universidade Federal Fluminense, Coordenadora do Grupo de Estudos Amazônicos da UFF, que já tinha um estreito laço com as comunidades quilombolas de Oriximiná desde a década de 90. Para efetuar este trabalho, as comunidades de Pancada, São Joaquim, Espírito-Santo, Jauari e Serrinha e alguns de seus membros e lideranças foram entrevistados e seus depoimentos registrados oral e fotograficamente. Outra prática abordada foi realizar reuniões gerais nos barracões das comunidades, quando a antropóloga registrava o discurso do bioprospector e o interesse e a compreensão da comunidade. Ao final do trabalho, o Laudo Antropológico foi elaborado de acordo com a Resolução no. 6, do CGEN/MMA, sendo o documento encaminhado a esse órgão.

Resultados e Discussão

Após dois anos de trâmites burocráticos, envolvendo a UFRJ e o CGEN/MMA, foi emitida pelo respectivo órgão do governo federal a primeira autorização do Brasil para acesso a componente do patrimônio genético e conhecimento tradicional, associado com a finalidade de bioprospecção (Autorização no 025/2007). A autorização começou a valer a partir da deliberação no 213 (MMA) de 6 de dezembro de 2007, publicada no Diário Oficial da União no dia 27 de dezembro de 2007, conferindo anuência ao Contrato de Utilização do Patrimônio Genético e de Repartição de Benefícios, tendo como contratante a Universidade Federal do Rio de Janeiro, e como contratada a Associação dos Remanescentes de Quilombos do Município de Oriximiná - ARQMO. Dois anos depois, em 26 de junho de 2003, foi publicada a Resolução no. 6 do CGEN/MMA, que regula a obtenção de Anuência Prévia para acesso ao conhecimento tradicional associado ao patrimônio genético, com potencial ou perspectiva de uso comercial. No ano seguinte, em 25 de março de 2004, foi publicada a Resolução no. 11 do CGEN/MMA para dispor sobre o Contrato de Repartição de Benefícios; que envolvesse o acesso ao conhecimento tradicional associado ou componente do patrimônio genético. Somente no final de 2007 (quinze anos após a ECO-92 e seis anos depois da publicação da MP 2186-16) foi emitida a primeira autorização de acesso do gênero no Brasil (Esquema 1).

Esquema 1: Cronologia da regulamentação brasileira que dispõe sobre o acesso ao CTA com fins de bioprospecção até a emissão da primeira autorização oficial pelo órgão competente do MMA.
Figura 1

Tal fato mostra claramente a dificuldade que o governo brasileiro teve tem para tratar e legislar sobre o assunto. Isso chama a atenção não só da classe científica, que se viu diretamente prejudicada, como da sociedade civil como um todo, já que o país não conseguiu impedir a costumeira prática de biopirataria, resultando inclusive em diversas patentes no exterior com produtos da flora brasileira de consagrado uso tradicional, como o açaí, cupuaçu e a castanha-do-pará. A vivência ao longo do processo envolvendo a autorização do presente trabalho trouxe algumas reflexões. Uma primeira questão a ser considerada, e que fundamenta uma série de aspectos críticos, é a interpretação da MP 2.186-16 sobre o que é bioprospecção, uma vez que a define como uma “atividade exploratória que visa identificar componente do patrimônio genético e informação sobre conhecimento tradicional associado, com potencial de uso comercial”. No entanto, de maneira cientifica e acadêmica, a bioprospecção pode ser considerada como uma “forma de localizar, avaliar e explorar sistemática e legalmente a diversidade de vida existente em determinado local”. Essa definição, além de mais abrangente e simples, remete à realidade da maioria das pesquisas científicas de acesso ao conhecimento tradicional ou patrimônio genético no país, por se tratar de pesquisa básica, já que o bioprospector ainda não sabe qual o resultado esperado da busca sistemática a ser realizada.

Pelo fato de a MP praticamente assegurar que toda bioprospecção tem potencial real de gerar produtos comerciais, torna-se obrigatório, nesse caso, a anuência prévia do “acessado”, acompanhado de laudo antropológico e contrato de repartição de benefícios. Segundo alguns pesquisadores, as exigências ou limitações legais foram tais que se tornaram, muitas vezes, impossíveis de serem cumpridas (LEPSCH-CUNHA; PY-DANIEL, 2008; CAPOZOLI, 2008). Considerando a carência de pesquisas básicas e aplicadas que podem surgir a partir dessas pesquisas pioneiras, é importante alertar que a legislação muitas vezes limitou e desanimou pesquisadores brasileiros. Muitos deles continuaram seus trabalhos na ilegalidade, enquanto muitos outros até pararam suas atividades de pesquisa. E a fragilidade da pesquisa sobre a biodiversidade nacional representa sempre um estímulo às práticas de biopirataria. O CGEN, tentando descomplicar e agilizar esse longo e delicado processo para autorização de acesso, publicou a Orientação Técnica no. 6, em agosto de 2008 (BRASIL, 2008), que considera “Potencial de Uso Comercial” o momento em que a atividade exploratória confirme a viabilidade de produção industrial ou comercial de um produto ou processo, a partir de um atributo funcional desse componente. Nesse caso, o acesso ao patrimônio genético com fins de “bioprospecção” passou a ser atividade de “pesquisa científica”, dispensando o Contrato de Repartição de Benefícios. A resolução, no entanto, ainda não contempla os casos de acesso ao CTA com fins de bioprospecção que ainda requerem o contrato de repartição de benefícios e a anuência prévia com laudo antropológico.

O laudo antropológico, no contexto do presente trabalho, demonstrou ser um importante instrumento que mostra a fundo todo o processo envolvido na obtenção da anuência prévia e toda compreensão e interesse das comunidades tradicionais em serem ou não acessadas. Tal fato pode ser exemplificado pelo trecho retirado do laudo elaborado para o presente trabalho.

A gente acha que o trabalho vai ser bom, porque está ajudando a gente a resgatar a cultura. O que a gente aprendeu, mas que estava esquecendo. Reconhecer o nosso próprio remédio. Então, hoje o Danilo veio reavivar o nosso conhecimento e dar continuidade ao nosso trabalho. Todo mundo está aceitando a proposta dele. É porque é um trabalho que não está levando as coisas daqui para ele, mas sim para retornar o trabalho feito para as comunidades. As próprias pessoas da comunidade têm o conhecimento das plantas, mas não sabem como desenvolver a medicina de um tipo que hoje existe. Nosso uso de plantas se dá de outras maneiras. Nós conhecemos vários tipos de madeira que vamos mostrar para ele, entre flores, cascas e folhas, que são para nós de muito valor curativo. Então, para nós aqui, esse é um trabalho muito importante de tornar nossos produtos iguais a um remédio que vai servir não só para os quilombolas, mas sim para todo nosso Município e regiões do país. (depoimento de Manuel Profeta, membro da Comunidade Pancada).

Contudo, no caso da pesquisa básica, o laudo antropológico deveria ser dispensado, em função do custo e do tempo necessários para sua elaboração, ao contrário da pesquisa aplicada, esta com fins comerciais envolvendo o CTA, que requerem necessariamente uma avaliação antropológica da compreensão, do consentimento e dos interesses da comunidade, em especial sobre questões complexas como repartição de benefícios monetários (royalties, etc.). Sendo as pesquisas aplicadas de interesse do próprio governo, bem como a proteção ao CTA, os recursos para elaboração do laudo antropológico, para as instituições públicas de ensino e pesquisa, deveriam ser disponibilizados prontamente pelo próprio governo federal. O presente trabalho, por constituir-se de uma pesquisa básica com produto ainda não identificado e, obviamente, de potencial comercial não definido, dificultava a elaboração do contrato, segundo a Resolução no. 11 do CGEN. A indefinição do produto esperado teve que ser contornada com a inclusão, no contrato, de um termo aditivo que leva em consideração, a possibilidade futura (hipótese) de um produto com potencial comercial, e que, neste caso, um novo contrato deveria ser firmado entre as partes, visando uma justa repartição de benefícios.

O caso envolvendo os índios Krahô e a UNIFESP é um exemplo claro da dificuldade de se determinar percentuais de lucro e de se firmar um contrato de repartição de benefícios quando ainda não se têm os produtos identificados em uma etapa preliminar da pesquisa. Nesse caso em questão, a UNIFESP, durante alguns anos da pesquisa, obteve como documento formal a assinatura de um “protocolo de intenções” entre as partes. No entanto, à medida que o tempo foi passando, a burocracia, a falta de incentivos, a existência de inúmeras associações que representavam as aldeias Krahô, a divulgação de notícias sem fundamento na imprensa sobre o processo com acusações de biopirataria e a dificuldade de se obter um contrato de repartição de benefícios fez com que a UNIFESP desistisse oficialmente do projeto (RODRIGUES et al., 2005). Da mesma maneira que o caso da UFRJ, talvez o caso da UNIFESP pudesse ter sido resolvido na época com uma cláusula aditiva.

Segundo Homma (2005), todos os resultados da pesquisa de bioprospecção devem ser considerados aditivos, cumulativos e multiplicativos, havendo a necessidade de que nos contratos referentes à biodiversidade da Amazônia (para exploração, acordos de pesquisa, etc.) fiquem assegurados direitos sobre resultados de descobertas futuras, mesmo fora da vigência contratual. A isenção do contrato de repartição de benefícios e do laudo antropológico para o acesso ao CTA com fins de bioprospecção, em casos de pesquisa científica, pode ser compensada com a informação clara na anuência prévia sobre as formas de devolução (benefícios), bem como a existência da informação aditiva no TAP de que todo produto com potencial comercial identificado, para ser explorado, exigirá no futuro que seja firmado um novo contrato justo de repartição de benefícios entre as partes. No caso de pesquisa científica, independentemente da “necessidade” de se firmar ou não o contrato de repartição de benefícios, é fundamental que haja formas de devolução para as comunidades, seja em benefícios monetários ou não. O retorno de benefícios deve vir como uma forma de respeito e de convergência de interesses entre a comunidade local e aquele que a acessa. A visão do comunitário local sobre o acesso ao CTA e a necessidade de retorno para as comunidades é bem sintetizado pela Dona Anésia Viana, importante curadora e matriarca da Comunidade Jauari. Ela dá o seu recado sobre as pessoas que já foram até ela para filmar e anotar levando o conhecimento para longe e não deixando nada na comunidade (Fonte: EREPECURU, 2008):

...a entrevista deve ficar para a comunidade para ser herança para esses (referindo-se aos netos a sua volta) e filhos desses... Eu acho que para mim seria melhor. Porque eu vou morrer, fica os meus netos. Ai vem os filhos e morre a mãe e fica os filhos. Ai já é tataraneto, não é verdade?!”. “... e esses que vem mais uns anos atrás só vem que fazer entrevista, só fazer, fazer filmar, mas não dão e não procuram as pessoas para ajudar a ensinar, pra a gente adquirir, ficar na nossa comunidade. É só para fazer levar que a gente não sabe o que vão fazer. Só vem aqui: Ei, Tia Anésia. Eu queria que a Sra. me ensinasse isso e aquilo outro. A gente aqui não tá sabendo nada. Chega aqui: Vou te filmar! Leva eu não sei para que. Se é para espantar barata, se é para espantar sapo. Sei lá o que vão fazer, né?! Mas, aí se formam com o que? Com uma entrevista dessa!

Grande parte das comunidades tradicionais tem um interesse real na realização de estudos sobre a sua biodiversidade local e o seu conhecimento associado contanto que exista um retorno, havendo a necessidade e o dever, por parte dos pesquisadores, em desenvolver estratégias para compensá-las por sua participação nas investigações. Segundo Albuquerque; Hanazaki (2006), o retorno de benefícios deve ser encarado primeiramente como um pressuposto ético e moral do próprio pesquisador, e não apenas como uma necessidade legal. As comunidades tradicionais, que têm a oralidade como forma de transmissão do conhecimento, percebem, em muitos casos, que o intercâmbio cultural com o meio urbano, a televisão, o rádio, a escola, bem como a aquisição de bens de consumo e produtos tecnológicos trazem, em determinado grau, um desinteresse por parte dos mais novos em aprender e manter as tradições e o conhecimento secular da sua cultura. A falta de conhecimento e de reconhecimento dos seus valores estimula o êxodo de comunitários para as cidades, portanto há uma grande importância na preservação do conhecimento e de sua valorização. Hoje muitos comunitários tradicionais enxergam esse trabalho como uma forma de resgate necessário e urgente para preservação de sua cultura.

Miranda e col. (2001) relatam que a vulnerabilidade econômica da população rural, associada às demandas não atendidas nas áreas da saúde e da educação justifica o crescente êxodo rural, principalmente de jovens, rumo às cidades. Além disso, a necessidade da vida moderna em adquirir bens de consumo representa um perigo para as comunidades tradicionais. Barbosa e Pinto (2003), em suas pesquisas em aldeias Kayapó no sudeste do Pará, fizeram o seguinte relato a respeito dessa mudança: “Uma experiência da mercantilização da atividade xamânica foi vivida na aldeia A’Ukre, quando o pajé ao encerrar a excursão na mata, cobrou pelos seus serviços a quantia de R$ 500,00 (quinhentos reais)!”

De acordo com Clay e colaboradores (2000), é provável não haver mais que um punhado de indivíduos entre milhões de pessoas na Amazônia, que desejam viver exatamente como seus pais. A maioria tem novos desejos e necessidades. Os povos das zonas tropicais estão mais atraídos pelo consumismo. Conceitos locais de “qualidade de vida” estão mudando conforme as pessoas assistem à televisão ou ouvem rádios, ainda que apenas uma vez ao mês. Para consumir mais, os povos de zonas onde há florestas desejam obter dinheiro e, em seguida, bens de consumo, o que pode resultar na super exploração de recursos florestais, principalmente se houver poucos recursos com valor de mercado.

Para os pesquisadores, o acesso aos conhecimentos tradicionais associados significa a possibilidade de gerar soluções para a preservação da natureza, a produção agrícola e industrial, além do avanço da ciência e a geração de atividades economicamente rentáveis, enquanto que para os detentores destes conhecimentos; estes são partes constitutivas da identidade, da razão de ser como povos, e a garantia da sua própria sobrevivência (GARCÉS, 2007). Por isso, Santilli (2005, p.80) afirma que “...não adianta proteger manifestações culturais de povos indígenas, quilombolas e de outros grupos sociais sem assegurar-lhes condições de sobrevivência física”.

Para os quilombolas de Oriximiná, o extrativismo da castanha-do-pará traz lucro para as famílias durante um curto período do ano (5 meses ou menos). A falta de outros produtos de extrativismo rentáveis e de um mercado comprador faz com que nos demais meses do ano, suas vidas sejam basicamente pautadas na pesca, caça e agricultura de subsistência, sem geração de renda. Estes fatores, somados à elevada taxa de natalidade, fazem com que aumente a necessidade real de moradias, alimentos, vestimentas, saúde, bens de consumo. Isto representa efetivamente a necessidade de mais recursos financeiros para que a vida não oscile entre condições de subsistência e de subvida.

Os produtos extrativos florestais funcionam para os coletadores como uma “dispensa” natural que evita privações absolutas (DRUMMOND, 1996). Mas Contudo, ainda existe, para muitos, o mito da superabundância e da resistência da natureza na região amazônica (LOUREIRO, 2002). A falta de geração de novas fontes de renda dentro das comunidades tradicionais e o aumento populacional são fatores que trazem a iminência da miséria e o aumento do desmatamento, com a possibilidade do esgotamento de seus recursos naturais fundamentais a suas atividades extrativas. Segundo Dias (2001), “A degradação biótica que está afetando o planeta encontra raízes na condição humana contemporânea, sendo agravada pelo crescimento explosivo da população humana e pela distribuição desigual da riqueza. A perda da diversidade biológica envolve aspectos sociais, econômicos, culturais e científicos”. Apesar da rica biodiversidade brasileira, observa-se que os recursos existentes muitas vezes não são utilizados de forma sustentável (econômica, social e ambientalmente), não geram riqueza e melhoria na qualidade de vida da comunidade local e, de forma mais abrangente, em nível nacional (KRUCKEN, 2007). A pesquisa e o desenvolvimento de fármacos a partir de plantas, por exemplo, deve ter sempre o cuidado de manter o elo entre as questões da conservação: ambientais e agroeconômicas, associadas à química, à medicina, aos cuidados primários com a saúde e ao controle de doenças. A possibilidade de que a biodiversidade da floresta permita a descoberta de novos fármacos para o avanço da medicina tem sido considerada como uma das principais motivações para a conservação da Amazônia. Contudo, é difícil estimar esse potencial, sendo necessário não só o conhecimento dessa biodiversidade, mas também a realização da bioprospecção desses recursos (MARGULIS, 2003). Enquanto isso, o desflorestamento e outras formas de destruição e degradação da floresta amazônica continuam tirando rapidamente oportunidades para a conservação e o desenvolvimento sustentável em geral (FEARNSIDE, 2003).

Diversos autores têm abordado a necessidade urgente de investimentos em Ciência e Tecnologia (C&T) para transformar a biodiversidade em riqueza, através de um modelo não apenas econômico, mas que busque um real desenvolvimento para a região amazônica. Para isso, é necessário ampliar e melhorar as atuais instituições de pesquisa e de ensino existentes, criar novas unidades de pesquisa e ensino superior em municípios estratégicos da região, um forte programa para atração de doutores para estes novos pólos. Outra questão considerada fundamental é o desenvolvimento da indústria local no processamento e beneficiamento de recursos agroflorestais, bem como a indústria de fitoterápicos (CLAY et al., 2000; CAPOZOLI, 2008; VIEIRA et al., 2005; HOMMA, 2005; LOUREIRO, 2002; DIAS, 2001).

Devem-se buscar mecanismos eficientes para garantir que os benefícios relacionados aos recursos locais da biodiversidade e ao conhecimento tradicional sejam compartilhados na comunidade de origem, redimensionando-a e protegendo-a econômica, social e culturalmente (KRUCKEN, 2007).

Existe a importância em se gerar produtos a partir da biodiversidade e que, dentro de uma abordagem holística, um produto tal deve ser compreendido como uma manifestação cultural da comunidade que o produz e que resulta de um conhecimento tradicional local. Representa um prolongamento da região de origem, do ecossistema, que também deve ter sua qualidade protegida e preservada. Portanto, é importante criar formas de desenvolvimento sustentável e fazer uma valorização desses produtos, tornando-os visíveis à sociedade (KRUCKEN, 2007). Além disso, de acordo com Homma (2005), a melhor forma de combater a biopirataria na Amazônia é conseguir transformar os recursos da biodiversidade em atividades econômicas para gerar renda e emprego para a sua população. O potencial da biodiversidade, tão enfatizado, precisa ser transformado em algo rentável. Para isso precisamos identificar esses recursos genéticos, analisar seus componentes, proceder a sua domesticação, a produção em bases racionais e a verticalização na região. A fragilidade da economia extrativa em que se baseia a maioria dos produtos da biodiversidade amazônica constitui um convite à biopirataria (HOMMA, 2005). Os agricultores rurais da Amazônia, especialmente índios, extrativistas e outros moradores da floresta, necessitam desesperadamente de produtos que eles possam vender. O comércio de materiais de commodities tirados da floresta é o foco da maioria das tentativas de encorajar o desenvolvimento sustentável para essas populações. Esforços deveriam ser focados em estratégias de médio e longo prazo para manter ambas, as florestas e suas populações (FEARNSIDE, 1997). As comunidades tradicionais, com suas práticas menos agressivas ao ambiente, adaptadas às condições locais, são responsáveis diretamente pela manutenção e conservação dos recursos genéticos existentes nesses locais. Reconhecer esse fato é essencial para as políticas sociais e projetos a serem realizados (MING, 1997). Segundo Loureiro (2002), nos tempos atuais, o homem da Amazônia procura reconstruir, sem cessar, uma identidade e uma nova forma de vida que lhe possibilite harmonizar uma nova cultura com a conservação da natureza, os benefícios e o usufruto do progresso técnico e científico do mundo moderno.

Dentro desse contexto, é importante frisar que se não houver formas de devolução para as comunidades, os próprios pesquisadores brasileiros serão futuramente rotulados pelas comunidades como “biopiratas nacionais”. Contudo, a verdadeira ameaça hoje continua sendo a biopirataria estrangeira, já que o Governo Brasileiro não foi capaz de reprimi-la, até o momento. É muito comum, ao se realizar um levantamento nas bases científicas de dados para espécies da medicina tradicional amazônica, verificarmos a existência de inúmeras patentes estrangeiras registradas após a publicação da MP 2186-16 de 2001. A biopirataria, ao não respeitar e reconhecer a soberania dos países detentores da biodiversidade e o conhecimento associado de suas comunidades tradicionais, não provê formas justas de devolução, retirando de culturas já tão ameaçadas a possibilidade de que seus conhecimentos e recursos possam prover seu próprio desenvolvimento, com sustentabilidade. A garantia desses benefícios deve vir através do cumprimento da legislação vigente, que ainda, carece de aperfeiçoamento.

Agradecimentos

Os autores agradecem a todos os membros das comunidades quilombolas de Oriximiná e ao CNPq pela bolsa de doutorado e pela taxa de bancada concedida a Danilo Ribeiro de Oliveira, que financiou boa parte custos de deslocamento e dos trabalhos de campo.

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