Perspectiva

Repartição de benefícios à luz da Lei nº 13.123/2015: casos de empresas com acesso ao patrimônio genético e ao conhecimento tradicional associado

Distribution of benefits under Law 13.123: cases of companies with access to genetic heritage and associated traditional knowledge

http://dx.doi.org/10.32712/2446-4775.2021.1050

Teixeira, Patrícia Conceição Costa1*;
Silva, Lívia Maria da Costa1.
1Universidade Federal Fluminense (UFF), Departamento de Engenharia Agrícola e Meio Ambiente, Rua Passo da Pátria, 156 bloco D sala 236, São Domingos, CEP 24210-240, Niterói, RJ, Brasil.
*Correspondência:
patriciarjgeo@yahoo.com.br

Resumo

O uso sustentável da biodiversidade pode resultar em inúmeros benefícios à humanidade, tanto no setor agrícola quanto na produção de medicamentos e cosméticos. A legislação de acesso ao patrimônio genético e ao conhecimento tradicional associado, tema deste estudo, tem relação direta com a repartição de benefícios para as comunidades envolvidas. Este trabalho traz alguns casos de compartilhamento de benefícios, demonstrando sua importância para empresas, universidades e comunidades tradicionais. Ademais, foram analisadas as normas e os procedimentos advindos da Lei nº 13.123/2015 e de seu respectivo Decreto nº 8.772/2016. Foi apresentado um breve estudo sobre a legislação aplicável às atividades de pesquisa e desenvolvimento que utilizam espécies vegetais. Destacaram-se algumas autuações da Operação Novos Rumos, que multou inúmeras empresas que acessaram o patrimônio genético e/ou conhecimento tradicional associado sem autorização prévia e que não realizaram compartilhamento de lucros. Além disso, realizou-se investigação e discussão sobre casos de sucesso na repartição de benefícios. Os casos de litígio e a reformulação da legislação poderão contribuir com as empresas que estão identificando novas formas de relacionarem-se com as comunidades tradicionais de modo mais justo, além da adequação de todos a esse arcabouço legal.

Palavras-chave:
Marco Legal da Biodiversidade.
Operação Novos Rumos.
Divisão de Benefícios.
Brasil.

Abstract

The sustainable use of biodiversity can result in numerous benefits to humanity, both in the agricultural sector and in the production of medications and cosmetics. The legislation on access to genetic heritage and associated traditional knowledge, the theme of this study, is directly related to the distribution of benefits to the communities involved. This work brings some cases of benefit sharing, demonstrating its importance for companies, universities and traditional communities. In addition, the rules and procedures arising from Law nº 13.123/2015 and its respective Decree nº 8.772/2016 were analyzed. A brief study on the legislation applicable to research and development activities using plant species was presented. Some assessments of Operation New Directions stood out, which fined numerous companies that accessed genetic heritage and/or associated traditional knowledge without prior authorization and did not share profits. In addition, research and discussion was conducted on success cases in the distribution of benefits. Litigation cases and the reformulation of legislation may contribute to companies that are identifying new ways of relating to traditional communities more fairly, in addition to the adequacy of all to this legal framework.

Keywords:
Legal Framework for Biodiversity.
Operation News Directions.
Benefits Division.
Brazil.

Introdução

O Brasil possui vantagem competitiva sobre outros países em relação a sua biodiversidade, o que permite o desenvolvimento da ciência e da tecnologia a partir de pesquisas com espécies dos ecossistemas naturais. Portanto, o Estado brasileiro deve ser o protagonista na criação de normas e políticas públicas para efetivar e garantir tal progresso.

Com esse objetivo foi promulgada a Lei nº 13.123/2015[1] regulamentada pelo Decreto nº 8.772/2016[2], que tem como principais objetivos a desburocratização do processo de acesso ao patrimônio genético e ao conhecimento tradicional associado.

Com essa lei relacionam-se a Convenção sobre Diversidade Biológica, ratificada em 1994; o Protocolo de Nagoya e a Medida Provisória (MP) nº 2186-16/2001, substituída pela Lei nº 13.123/2015[1], por meio do Projeto de Lei nº 7.735/2014. Esses marcos legais estabelecem regras para acesso à biodiversidade e ao conhecimento tradicional associado por universidades e empresas na pesquisa e no desenvolvimento de produtos.

O Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA), entre 2009 e 2011, por meio da Operação Novos Rumos[3], que foi uma ação de fiscalização com a 1ª fase deflagrada em 2010, autuou empresas, universidades e centros biotecnológicos que realizavam pesquisas e desenvolviam produtos a partir de elementos da biodiversidade brasileira e de conhecimentos de comunidades tradicionais sem a devida autorização do CGen (Conselho de Gestão do Patrimônio Genético), órgão criado no âmbito do Ministério do Meio Ambiente (MMA) para tratar do assunto.

O CGen autuou sociedades empresárias, universidades e centros biotecnológicos que realizavam pesquisas e que desenvolveram produtos a partir de elementos da biodiversidade brasileira e de conhecimentos de comunidades tradicionais sem a sua autorização. Com a aplicação de diversas multas em todo o território brasileiro, as empresas e as indústrias recuaram para se adequarem às regras da MP nº 2186-16/2001 ou aguardarem as autorizações antes de começarem a produzir.

Desde o ano 2001, com a publicação da MP nº 2.186-16/2001, a repartição de benefícios passou a ser obrigatória no Brasil, principalmente nos casos que envolvem sociedades empresárias e institutos que acessaram a biodiversidade para fins de pesquisa e desenvolvimento por meio da interação com comunidades tradicionais.

A justificativa desta pesquisa está pautada na análise da obrigatoriedade do cumprimento da Lei nº 13.123/2015[1], pelas empresas, universidades e por institutos de pesquisa que acessam patrimônio genético e ao conhecimento tradicional associado, com enfoque na repartição de benefícios com as comunidades acessadas, o que pode ser traduzido por instrumento de justiça social.

Objetivou-se identificar e analisar casos de acesso ao patrimônio genético, conhecimento tradicional associado e repartição de benefícios entre empresas e comunidades tradicionais no Brasil, desde a Medida Provisória nº 2.186-16/2001 até a aprovação da Lei nº 13.123/2015[1].

A legislação de acesso ao patrimônio genético e ao conhecimento tradicional associado

A Medida Provisória nº 2.186-16, de 23 de agosto de 2001, visava regularizar o acesso à biodiversidade e ao conhecimento tradicional. A sua publicação, há dezenove anos, resultou em inúmeras dificuldades no seu cumprimento, desde o entendimento dos conceitos até as solicitações de autorização de acesso à biodiversidade e ao conhecimento tradicional pelo Conselho de Gestão do Patrimônio Genético.

Em 2014, responsáveis pela área acadêmica, empresários do ramo de produtos naturais que acessam a biodiversidade e o setor de agricultura articularam-se para a elaboração e apresentação do Projeto de Lei nº 7.735/2014, que deu lugar a Lei de nº 13.123, de 20 de maio de 2015[1]. Assim, houve a substituição da aludida MP, com o intuito de criar ambiente regulatório mais favorável que estimulasse a pesquisa e o desenvolvimento de produtos naturais e para a indústria de medicamentos ou de cosméticos. Além disso, uma melhor interação entre universidades e empresas poderia facilitar o processo de inovação tecnológica no Brasil[4].

O governo brasileiro promulgou em 20 de maio de 2015, a Lei nº 13.123[1] sobre o acesso ao patrimônio genético, a proteção e o acesso ao conhecimento tradicional associado e a repartição de benefícios para conservação e uso sustentável da biodiversidade. A lei foi discutida e elaborada como estratégia de flexibilização e aperfeiçoamento da MP nº 2.186-16/2001, para estimular o desenvolvimento de produtos biotecnológicos, a pesquisa e o desenvolvimento econômico nacional.

Na vigência da MP nº 2.186-16/2001, o CGen era composto por Ministérios, como o MMA e por instituições como a Confederação Nacional da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA). Essa composição foi revista pela Lei, visando à inclusão de representantes da sociedade civil. Atualmente, o CGen é integrado por representantes de vinte 20 órgãos e entidades, sendo onze (11) do governo e nove (9) da sociedade civil, distribuídas entre representações dos setores acadêmico e empresarial e das comunidades tradicionais e agricultores tradicionais.

O marco legal, de acordo com Oliveira et al.[4], pretende desburocratizar o sistema, inserindo o cadastro online no lugar da maioria das autorizações antes exigidas, dando isenção de multa para a regularização das atividades de pesquisa, flexibilizando a burocracia para estimular uma repartição de benefícios justa e equitativa. A divisão dos lucros pode ser de ordem monetária ou não monetária, de acordo com o Decreto nº 8.772/2016[2]. Desta maneira, espera-se que a lei favoreça avanços para pesquisa e desenvolvimento no Brasil, estimulando o aproveitamento da biodiversidade nacional.

No decreto regulamentador foram incluídos no conceito de repartição de benefícios os termos "produto acabado", "material reprodutivo" e "elemento principal de agregação de valor". Quando se tratava do envolvimento de instituições estrangeiras, na MP a questão era limitada à obtenção da amostra por instituição sediada no exterior, enquanto na Lei nº 13.123/2015[1], o conceito inclui a produção fora do país[5]. A FIGURA 1 apresenta o histórico sobre a legislação.

FIGURA 1:Linha do tempo, de 1992 a 2017, da legislação de biodiversidade.
Figura 1
Fonte: Teixeira, 2017[14].

Material e Método

No presente trabalho foi utilizada a metodologia qualitativa, uma vez que aborda aspectos da realidade que não podem ser quantificados. Na fase de coleta de dados, foi adotada a pesquisa bibliográfica e documental.

Foi realizado o estudo de casos sobre as multas aplicadas em empresas que acessaram patrimônio genético e o conhecimento tradicional associado e as questões jurídicas envolvidas, bem como casos bem sucedidos de repartição de benefícios.

Na fase de coleta de dados, e-mails foram enviados aos responsáveis por empresas e comunidade tradicional. Entre fevereiro de 2016 e janeiro de 2017, foram realizadas buscas nos sites das empresas Natura, Centroflora, Herbarium, Hebron, Biolab, Aché e de órgãos federais, tais como IBAMA e Tribunais de Justiça dos Estados do Acre e de São Paulo, onde foram encontrados os processos com as infrações da Operação Novos Rumos.

A revisão da literatura ocorreu no período de fevereiro de 2016 a junho de 2017 e compreendeu a identificação e análise de artigos nas bases de dados SciElo, Portal de Periódicos CAPES, com as palavras-chave: biodiversidade, repartição de benefícios, legislação de biodiversidade, protocolo comunitário, castanha do Pará, comunidades tradicionais e conhecimento tradicional. Foram realizadas consultas em livros, artigos científicos de encontros e congressos, documentos oficiais, legislação, teses e dissertações.

A Associação Brasileira da Indústria de Química Fina, Biotecnologia e suas Especialidades (ABIFINA) foi procurada para contribuir e facilitar os contatos que poderiam auxiliar no fornecimento de dados. Dessa forma, foram acionadas empresas, como a VBio, Phytobios, Centroflora, Beraca, L'oréal e L'occitane. Ademais, visando buscar outras informações foi contatado um representante da comunidade tradicional de castanheiros do Amapá, mediante declaração de informação.

O CGen somente autoriza que a lista de processos seja acessada, pessoalmente, na sua sede, localizada no Distrito Federal. Entretanto, ainda assim, dever-se-ia solicitar aos envolvidos, na repartição de benefícios, a devida autorização de acesso às informações. O órgão disponibiliza online um relatório de atividade, onde consta somente o número do processo e, às vezes, o nome da empresa, de forma que não se obtém maiores detalhes sobre os acordos de repartição.

Um dos casos de repartição de benefícios apresentado, foi obtido segundo informações contidas num projeto da empresa Anidro do Brasil Extrações S.A., conhecida como empresa brasileira de produção de insumos, que fornece extratos vegetais para outras empresas - e a Phytobios Pesquisa, Desenvolvimento e Inovação Ltda.

Resultados e Discussão

A Operação Novos Rumos e os litígios gerados

Inicialmente, são apresentados resumos de três processos judiciais que fizeram parte da 1ª fase da Operação Novos Rumos[3]. De acordo com o processo na 19ª Vara Federal de São Paulo, a Biolab Sanus Farmacêutica Ltda., foi autuada pelo IBAMA por acessar patrimônio genético da castanha do Pará (Bertholletia excelsa), sem autorização prévia. Esta foi julgada em 2013 e houve a aplicação de multa no valor de R$ 75.000,00. Posteriormente, a multa foi aumentada para R$ 130.000,00 em razão da exploração econômica do produto com a utilização do óleo de castanha do Pará sem a referida autorização[6].

O Ministério Público Federal (MPF) ajuizou a ação judicial contra a Croda do Brasil Ltda., com a finalidade de obter provimento liminar proibindo a empresa de produzir insumos, polímeros, óleos vegetais ou quaisquer outros produtos originários de patrimônio genético ou decorrente do acesso ao conhecimento tradicional associado, sem a devida autorização pelo CGen, sob pena de multa diária no valor de R$ 50.000,00[6]. O IBAMA lavrou contra a ré os autos de infração nº 472.569-D, nº 601.861-D e nº 601.865-D, em 06/08/2010, por constatar o acesso irregular às espécies de cupuaçu (Theobroma grandiflorum), cacau (Theobroma cacau) e maracujá (Passiflora edulis) pelo grupo Croda Amazon para o desenvolvimento de polímeros de componentes para a indústria cosmética.

A empresa acessou as espécies supramencionadas irregularmente, obtendo vantagens econômicas com essa exploração, sem promover a devida repartição de benefícios, o que veio ocorrer tardiamente. A defesa alegou que a ré buscou regularizar a sua situação mediante os pedidos de autorizações junto ao CGen, referentes aos processos nº 02000.000717/2009-23 (cupuaçu), nº 02000.000770/2010-68 (cacau), nº 02000.001539/2009-58 (maracujá)[7], com base na Resolução CGen nº 35/2011[8], que dispõe sobre a regularização de atividades de acesso ao patrimônio genético e/ou ao conhecimento tradicional associado e sua exploração econômica realizadas em desacordo com a MP nº 2.186-16/2001 e demais normas pertinentes. Contudo, continuou explorando economicamente e de maneira indevida o patrimônio genético brasileiro, alegando a demora do CGen na apreciação de seus pedidos.

A ação em questão condenou a ré ao pagamento correspondente a 10% da receita líquida anual da empresa, tendo por base de cálculo o exercício fiscal de 2012 e, ainda, a obrigação de não fazer - termo utilizado no Direito que impõe ao devedor um dever de abstenção, ou seja, de não praticar o ato que poderia livremente fazer se não tivesse obrigado - consistente na proibição ao acesso irregular de qualquer espécie componente do patrimônio genético, até a publicação de autorização pelo CGen.

Em 2007, na 3ª Vara Federal do Acre, o MPF propôs ação contra Fábio Fernandes Dias e sua empresa Fábio F. Dias ME (F.F.D. ME/Tawaya), Chemyunion Química Ltda., Natura Cosméticos S.A. e o Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI) pelo acesso ao conhecimento tradicional associado dos Ashaninkas. Neste caso, a Justiça alegou que os índios detinham conhecimento tradicional sobre o murumuru (Astrocaryum murumuru), uma espécie de palmeira e sua capacidade hidratante[7].

A empresa F.F.D. ME/Tawaya também teria acessado o conhecimento dos indígenas sem autorização prévia e sem acordar como seria a repartição dos benefícios resultantes da exploração comercial dessa espécie da biodiversidade amazônica[9]. Além disso, teria possibilitado que outras empresas acessassem e lucrassem com aquele conhecimento tradicional ao compartilhar as informações obtidas junto aos indígenas com um professor universitário que, por sua vez, publicou um artigo sobre o assunto em questão.

As sociedades empresariais Natura e Chemyunion não foram acusadas de acesso direto ao conhecimento tradicional, mas de indireto, pois teriam utilizado o artigo publicado sobre o murumuru e desenvolvido produtos com base nesse recurso da biodiversidade sem repartir os benefícios auferidos com os detentores do conhecimento tradicional. A sentença judicial condenou, no ano de 2013, a F.F.D. ME/Tawaya a pagar indenização em favor dos Ashaninka no percentual de 15% sobre o faturamento, garantindo o valor mínimo de R$ 200.000,00[7].

Em relação ao pedido de registro da patente PI 0301420-7, foi determinado que passasse a constar a Associação Ashaninka do Rio Amazonas como requerente, com a ressalva de que esta substituição não interfere nem condiciona o necessário juízo a ser realizado pelo INPI quanto à (in)existência dos requisitos de novidade e atividade inventiva.

A sentença determinou ainda que o INPI, somente concedesse patente após a empresa demonstrar que apresentou proposta de repartição de benefícios ao CGen, o que não ocorreu. Houve a decisão de que o INPI tornasse nulas de pleno direito quaisquer patentes ou direitos de propriedade intelectual vinculado ao caso julgado, bem como de que tal órgão devesse indicar a origem do acesso ao conhecimento tradicional[10]. O QUADRO 1 apresenta o resumo das autuações realizadas.

QUADRO 1: Empresas autuadas na Operação Novos Rumos, em 2013.
Empresa Espécie Valor da multa (R$) Ano
Biolab Sanus Farmacêutica Ltda. Castanha do Pará (Bertholletia excelsa) 130.000,00 2013
F.F.D. ME (Tawaya) Murumuru (Astrocaryum murumuru) 200.000,00 2013
Chemyunion Química Ltda. Murumuru - 2013
Natura Inovação e Tecnologia de Produtos Ltda. Murumuru - 2013
Croda do Brasil Cupuaçu, cacau e maracujá 10% da receita líquida anual do ano de 2012 2013

A empresa Natura reconheceu que um dos pontos críticos de sua estratégia de negócios foi o relacionamento com as comunidades que fornecem os frutos, sementes e outros insumos com os quais produz seus cosméticos. Para superar esses problemas a empresa criou o Fundo Natura para o Desenvolvimento das Comunidades, que auxilia na gestão dessa relação[11].

Casos de sucesso na repartição de benefícios

Como mostrado brevemente, a MP nº 2.186-16/2001 foi uma norma que criou um rígido e complexo sistema de controle prévio do acesso ao patrimônio genético e atribuiu ao Estado amplos poderes para controlar quem e o que poderia ser acessado, e, eventualmente, como deveria ser efetuada a repartição de benefícios resultante da exploração econômica da biodiversidade.

Para Pimentel et al.[10], o arcabouço criado pela MP foi, desde sua entrada em vigor, objeto de críticas quase unânimes por parte dos atores envolvidos. O setor produtivo alega que o sistema de autorizações e a necessidade de se celebrar um contrato de repartição de benefícios antes mesmo de a pesquisa apresentar resultados economicamente viáveis tornou-se um entrave.

O setor acadêmico considerou que as normas da medida provisória dificultaram o avanço da pesquisa científica. E as comunidades tradicionais, entre outras, argumentaram não ter o direito de decidir sobre as políticas e o destino dos recursos da biodiversidade brasileira.

O CGen, a fim de permitir a suspensão da aplicação das sanções administrativas previstas na MP 2186-16/2001, por meio do art. 41 da Lei nº 13.123/2015[1], estabeleceu que a assinatura do Termo de Compromisso suspendesse, em todos os casos, as multas aplicadas, cujos valores atualizados monetariamente, fossem reduzidos em 90% do valor.

Vale destacar que está sob a responsabilidade do CGen, analisar esses processos e multas administrativamente. Ainda de acordo com Pimentel et al.[10], ao longo dos últimos dezenove anos, os órgãos envolvidos na implantação da política de acesso à biodiversidade brasileira, em especial o CGen, editaram 43 resoluções e 7 orientações técnicas, na tentativa de auxiliar o cumprimento da lei.

Para ilustrar as discussões sobre a repartição de benefícios, são apresentados dois casos de sucesso de repartição de benefícios entre as empresas Centroflora e Phytobios com o Instituto Flora Vida e um caso entre a Natura e a Cooperativa Mista de Produtores e Extrativistas do Rio Iratapuru (COMARU)[12].

Caso Phytobios, Centroflora e Instituto Flora Vida

A Centroflora (Anidro do Brasil Extrações S.A) e Phytobios Pesquisa, Desenvolvimento e Inovação Ltda., realizaram parceria com o Instituto Flora Vida, por intermédio do Projeto de Repartição de Benefícios – Projeto Estação de Fitoterápicos, a fim de conseguir autorização de acesso ao patrimônio genético para fins de pesquisa científica. Para realizar as etapas de bioprospecção e desenvolvimento tecnológico, a empresa precisou atuar em conjunto com a Phytobios, que pertence ao mesmo Grupo.

Segundo a Phytobios, o CGen conferiu à Centroflora anuência ao Contrato de Utilização do Patrimônio Genético e de Repartição de Benefícios (CURB) e aos seus termos aditivos, para que produza os efeitos jurídicos, nos termos do art. 29 da MP 2186-16/2001. Como forma de repartição de benefícios, a empresa destina ao Instituto Flora Vida 2% da receita líquida oriunda da exploração comercial dos ativos, enquanto houver comercialização do produto. A aplicação do recurso é realizada uma vez por ano, e aplicados até 90 dias após o fechamento do ano fiscal[13].

A Phytobios é responsável por parte das atividades de pesquisa, tendo a propriedade de 100% dos royalties decorrentes do licenciamento da patente, dos quais 2,5% do valor total e bruto recebidos são aplicados ao projeto. A aplicação do recurso é realizada até 90 dias após o recebimento dos valores referentes ao licenciamento, nos mesmos termos e/ou parcelas definidas no momento do licenciamento da tecnologia/produto.

O beneficiário escolhido pelas partes é o Instituto Flora Vida, associação civil de direito privado sem fins econômicos. O Instituto é responsável por receber, administrar e aplicar o valor no Projeto Estação Fitoterápicos.

Os envolvidos no projeto são as duas empresas supracitadas, atores da agricultura familiar e agricultores independentes ligados ao Instituto, na Fazenda Santa Luiza de propriedade da Centroflora, no município de Botucatu, em São Paulo. São executados projetos de horta medicinal, jardim medicinal com educação ambiental e a estação de fitoterápicos[12].

Tal evento representa uma forma de realizar repartição de benefícios, por meio de uma relação entre empresas e comunidades, conforme a exigência da lei, o que demonstra como realizar projetos viáveis entre os parceiros, forma pela qual também se pode realizar justiça social. A fim de elucidar o presente caso, apresenta-se a FIGURA 2.

FIGURA 2: Esquema de repartição de benefícios entre Centroflora, Phytobios e Instituto Flora Vida (2017).
Figura 1
Fonte: Teixeira, 2017 [14].

Caso de repartição de benéficos Natura e COMARU

Segundo informações da Natura Inovação e Tecnologia de Produtos Ltda.[14], a empresa atua em parceria com 33 cooperativas, sendo que 24 estão na Amazônia, gerando desenvolvimento social e renda para 2.119 famílias a partir de cadeias produtivas sustentáveis. O trabalho com a biodiversidade ajuda a conservar 257 mil hectares de floresta. A comunidade de São Francisco do Iratapuru é um exemplo de parceria com a Natura, situada no estado do Amapá e, sob a responsabilidade da prefeitura de Laranjal do Jari.

A comunidade foi fundada na década de 60 pela União de Coletores de Castanha, chamados de "castanheiros"[15]. Com o intuito de melhorar a condição social e econômica da comunidade foi fundada, em 1992, com 20 associados, a Cooperativa Mista de Produtores e Extrativistas do Rio Iratapuru (COMARU).

Em 1999, a COMARU deu início ao processo de agregação de valor da castanha do Pará produzindo biscoitos e vendendo em feiras. Contando com ajuda financeira do governo estadual, a cooperativa finalizou, em 2001, a construção de uma fábrica de biscoitos.

O relacionamento entre a Natura e a COMARU teve início em 2000, mas somente em 2003 ocorreu a primeira venda de óleo bruto da castanha do Brasil à Cognis do Brasil, empresa multinacional alemã que atua no mercado de óleos essenciais[16].

Em 2003, houve a assinatura do contrato, de acordo com a MP 2186-16/2001, mediante a autorização do CGen. Segundo Santos[16], esse foi o primeiro contrato de utilização de recurso genético aprovado pelo Conselho, oriundo no Amapá.

A destinação para um fundo, de parte do faturamento líquido da empresa com a comercialização dos produtos cosméticos que incorporem em sua composição o recurso genético acessado, foi um dos critérios estabelecidos. Tal fundo foi denominado de Fundo Natura para o Desenvolvimento das Comunidades.

A primeira compra da empresa foi o óleo de castanha do Pará (Bertholletia excelsa), e posteriormente, de breu branco (Protium heptaphyllum) que, desde 2006, foram comercializados 220 kg de resina. Além do fornecimento de matéria-prima para a Natura, a comunidade também recebe repartição de benefícios pelo acesso ao breu branco e ao conhecimento tradicional a ele associado.

A Natura solicitou que a cooperativa certificasse as áreas onde seriam coletadas as castanhas para a produção de óleo e o breu branco, a fim de atender às normas da empresa. Em 2004, a COMARU obteve o selo FSC (Forest Stewar Hip Council) em sete áreas, e a partir dessa certificação a parceria foi efetivada. Desde então, recursos financeiros são repassados pelas seguintes vias: pagamento pela compra de óleo de castanha, copaíba e breu branco, pelo Fundo Natura e pagamento pelo acesso ao patrimônio genético e pelo conhecimento da comunidade que é utilizado pela empresa.

A partir dessa parceria, outros benefícios foram recebidos pelos cooperados da COMARU, pois eles participaram de cursos de capacitação ambiental, como sistemas agroflorestais, viveiros e mudas, além de fazer cursos de capacitação gerencial e uma reforma da Casa da Beira – escritório da cooperativa e também criaram o Fundo Iratapuru. De acordo com o depoimento de Eudimar Viana:

(...) a cooperativa vem crescendo e aumentando o número de associados, de 20 pessoas em 1992, para 35 atualmente, beneficiando 42 famílias. Houve investimento em máquinas e equipamentos para o beneficiamento primário da castanha do Pará, que foi possível, tanto por meio da venda do óleo bruto para a empresa quanto pelo contrato de repartição de benefícios [12].

No ano de 2003, à Comunidade do São Francisco do Iratapuru foi prevista a seguinte forma de repartição de benefícios: pagamento do valor de R$ 10.000,00, pelo acesso ao patrimônio genético para fins de pesquisa; certificação da parte da Reserva de Desenvolvimento Sustentável (RDS) do Iratapuru no tocante ao extrativismo local; percepção do valor de 0,5% da receita líquida aferida através das vendas dos produtos que contêm a resina do breu branco, pelo período em que ocorrer o seu fornecimento pela comunidade[16].

Tendo em vista que a criação do fundo teve efeitos para o ano de 2004 e os produtos com resina de breu branco foram lançados e comercializados em setembro de 2003, a Natura pagou à comunidade, em parcela única, o valor de R$ 101.222,00, referente à receita líquida do exercício de 2003, ou seja, a empresa realizou pagamento retroativo a utilização do recurso genético.

A Natura contratou a elaboração de laudo antropológico, de acordo com a MP nº 2.186-16/2001, documento exigido pelo CGen como parte do processo de anuência prévia, visando o acesso ao conhecimento tradicional associado à espécie em questão. O laudo refere-se ao acompanhamento do processo de obtenção de anuência e assinatura de contrato de repartição de benefícios por acesso ao Conhecimento Tradicional Associado (CTA) à espécie Bertholletia excelsa, conhecida como castanha do Brasil, para fins de bioprospecção e desenvolvimento tecnológico.

De acordo com os termos do artigo 4º da Resolução CGen nº 6/2003[13] e por se tratar de anuência obtida junto a comunidades locais, com potencial de uso comercial, o requerente da autorização apresentou ao Conselho, juntamente com o Termo de Anuência Prévia, laudo antropológico independente, relativo ao processo de anuência prévia. Este é o principal fundamento jurídico para a avaliação do efetivo respeito aos direitos culturais das comunidades indígenas ou locais envolvidas e para a proteção do conhecimento tradicional associado ao patrimônio genético.

Mediante o laudo antropológico realizado, em relação aos conhecimentos tradicionais pela utilização da resina do breu branco, considerou-se que tais conhecimentos são de origem difusa, ou seja, que não são circunscritos à comunidade do São Francisco do Iratapuru, mas que pertencem a diversas comunidades da região Norte. A FIGURA 3 apresenta um esquema do caso de repartição de benefícios em questão.

FIGURA 3:Esquema de repartição de benefícios entre Natura e COMARU (2017).
Figura 1
Fonte: Teixeira, 2017 [14].

Os fatos descritos revelam que a cooperativa COMARU vem se transformando em modelo de desenvolvimento social e crescimento econômico sustentável no Amapá e para a Amazônia. Além disso, obedece aos critérios de manutenção dos processos ecológicos, mudança qualitativa e quantitativa no processo de produção e distribuição equitativa dos bens da sociedade[17].

Conclusão

Nessa pesquisa foram analisados processos judiciais envolvendo empresas que não cumpriram a legislação de acesso à biodiversidade e ao conhecimento tradicional associado, seja porque não solicitaram autorização ao órgão competente ou porque tiveram dificuldades de atender as todas as exigências cabíveis.

Pelas informações levantadas no presente trabalho, percebeu-se que a Natura desenvolveu formas de se relacionar com as populações indígenas, por meio da criação de um fundo de desenvolvimento para comunidades tradicionais e atualmente trabalha com desenvolvimento local a partir de cadeias produtivas sustentáveis. Além de repartir lucros sobre a receita liquida de seus produtos com a COMARU, também compra a matéria prima, neste caso, óleo bruto de castanha do Pará, chegando a uma relação comercial mais justa.

A Phytobios, a Centroflora, o Instituto Flora Vida e os agricultores encontraram na parceria uma forma de repartição de benefícios que foi autorizada pelo CGen, onde está previsto além da divisão de lucro, o repasse de percentual sobre os royalties da patente de produto.

Pode-se concluir que o Brasil pode ser pioneiro no desenvolvimento de cadeias produtivas sustentáveis, que utilizam espécies nativas da floresta brasileira, envolvendo os povos tradicionais e realizando o comércio justo e a devida repartição de benefícios. Essa repartição age como uma forma de atenuar a injustiça social, onde os fornecedores de matéria-prima podem negociar preços, além de terem seus produtos certificados e com maior valor agregado.

Por sua vez, as comunidades tradicionais acessadas serão beneficiadas a partir da repartição desses lucros. Porém, elucida-se que o valor de 1% sobre a receita líquida anual do produto, determinado na Lei nº 13.123/2015[1], como percentual de repartição poderia ter sido mais discutido com as partes envolvidas, para chegar a um valor maior.

Sobre os contratos de repartição de benefícios previstos na legislação se apresentam como uma solução, os protocolos comunitários que visam facilitar parcerias entre as empresas e as comunidades tradicionais. Com isso, as empresas passam a se envolver com as comunidades acessadas, o que pode facilitar o entendimento sobre suas necessidades e seu modo de vida.

Num contexto geral, a nova regulamentação de acesso à biodiversidade traz mais transparência nas regras a serem aplicadas para a regularização por parte daqueles que realizam pesquisas. E, consequentemente, é um estímulo não somente para a indústria de medicamentos, mas também para outros segmentos de produtos de origem natural.

Para as empresas a vantagem competitiva é a agregação de valor aos seus produtos, através da participação de comunidades tradicionais na cadeia de produção. Tal fato pode dar a empresa mais qualidade aos seus produtos, conquistando maior parcela de consumidores que estão preocupados com a sustentabilidade.

Por fim, com a legislação em vigor serão necessários novos estudos sobre a repartição de benefícios e o acesso ao conhecimento tradicional associado, para aperfeiçoar a condução da relação das empresas e das comunidades tradicionais.

Referências

1. Brasil. Lei Nº 13.123, de 20 de maio de 2015, dispõe sobre o acesso ao patrimônio genético, sobre a proteção e o acesso ao conhecimento tradicional associado e sobre a repartição de benefícios para conservação e uso sustentável da biodiversidade; revoga a Medida Provisória nº 2.186-16, de 23 de agosto de 2001. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Brasília, DF, nº 95, p. 1-140. 21 mai. 2015. [Link].

2. Brasil. Decreto Nº 8.772, de 11 de maio de 2016. Regulamenta a Lei nº 13.123, de 20 de maio de 2015, que dispõe sobre o acesso ao patrimônio genético, sobre a proteção e o acesso ao conhecimento tradicional associado e sobre a repartição de benefícios para conservação e uso sustentável da biodiversidade. Diário Oficial da União, 12 mai. 2016, Seção I, pág. 3. [Link].

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