Perspectiva
A etnobotânica como influenciadora da prospecção farmacológica
The ethnobotany as influential exploration of pharmacological
Introdução
A utilização de plantas com fins medicinais, para o tratamento, a cura e a prevenção de doenças, é uma das mais antigas formas terapêuticas da humanidade[1]. Como consequência, nas últimas décadas tem se observado um aumento significativo de pesquisas sobre as relações das comunidades com os recursos biológicos. Estes estudos têm contribuído para a recuperação de saberes, práticas e, também, servido para avançar no autoconhecimento sociocultural dessas populações. Abordagens científicas nessa direção, têm buscado compreender, dentre outros aspectos, como são utilizadas as plantas medicinais por comunidades que incluem, nessa vertente, as pesquisas etnobotânicas[2,3].
A etnobotânica tem sido definida como um estudo capaz de compreender as interrelações entre o homem e as plantas e, o modo como as plantas são utilizadas para os mais diversos recursos[1]. Permite um melhor entendimento das formas pelas quais as pessoas pensam, classificam, controlam, manipulam e utilizam espécies de plantas nas comunidades [4,5]. Trata de mostrar que existem práticas alternativas capazes de se tornar parte de um processo renovado e complementar para promover saúde. Meios, por vezes, não lucrativos e menos onerosos de cuidar do ser humano em sua totalidade[6]. Assim, a manutenção desse conhecimento por meio de gerações sucessivas, pode ser utilizada como uma ferramenta importante para os futuros estudos fitoquímicos, farmacológicos e toxicológicos bem como, para a conservação histórica e cultural[5]. No entanto, apesar da variedade de biomas que refletem a enorme flora brasileira, aliada uma miscigenação de etnias e enorme diversidade cultural, um número reduzido de comunidades tem desenvolvido pesquisas etnobotânicas, e são escassos os estudos que realizaram investigações acerca das práticas populares de cura. Nessa perspectiva, este trabalho objetivou realizar um levantamento etnobotânico de plantas medicinais no município de Guatambu (SC), com foco na relevância para as futuras pesquisas de bioprospecção nesta região de imigrantes inserida na Mata Atlântida.
Metodologia
Este estudo foi desenvolvido por meio de pesquisa de campo utilizando a técnica de snow ball (bola de neve), junto aos agentes populares de cura (benzedeiras e/ou rezadeiras) no município de Guatambu (SC), no ano de 2020 e 2021 (protocolo CEP n 3.771.699). Além disso, foi realizada uma revisão bibliográfica visando o potencial de utilização destas informações etnobotânicas para as pesquisas de bioprospecção. Os dados foram tratados em forma de texto crítico científico, destacando principalmente a perspectiva de utilização racional e sustentável da flora brasileira.
Resultados e Discussão
A Etnobiologia é essencialmente o estudo do conhecimento e das conceituações desenvolvidas por qualquer sociedade a respeito da biologia. Estuda o papel da natureza no sistema de crenças e de adaptações do homem a determinados ambientes. Os estudos etnobiológicos, que no passado eram conduzidos apenas por antropólogos, agora abrangem também pesquisadores de outras áreas, como botânica, zoologia, ecologia e agronomia. o envolvimento desses pesquisadores reflete o crescimento acadêmico tanto no campo da etnobiologia como, também, no seu caráter multidisciplinar. Considerando a abrangência na área etnobiológica, diferentes cenários podem ser encontrados, tais como: a etnozoologia, etnobotânica, etnoecologia, etnoentomologia e etnofarmacologia[1,4].
Embora nossos ancestrais não tivessem nenhum conhecimento detalhado sobre etnobiologia e estruturas químicas, os produtos naturais formaram a base da terapêutica. As razões para isso são múltiplas, mas é provável que a capacidade da natureza de criar complexas e fantásticas moléculas estruturalmente diversas é o argumento mais convincente da ampla atividade destas matérias-primas[3].
As pesquisas com plantas medicinais são ordenadas de acordo com o foco científico, podendo ser classificadas em quatro tipos:
- investigações randômicas que compreendem a coleta e ao acaso de plantas para triagens fitoquímicas e farmacológicas;
- abordagem quimiotaxonômica ou filogenética, que consiste na seleção de espécies de uma família ou gênero;
- estudos de abordagem etológica (comportamento animal), que tem como orientação avaliar a utilização de metabólitos secundários de plantas por animais, com a finalidade de combater doenças ou controlá-las;
- pesquisa etnodirigida que consiste na seleção de espécies de acordo com a indicação de grupos populacionais específicos em determinados contextos de uso[4].
Nos estudos com abrangência etnodirigida, devemos enfatizar a busca pelo conhecimento construído localmente a respeito de seus recursos naturais e a aplicação que fazem deles em seus sistemas de saúde e doença, realçando os estudos na área da Etnobotânica. Registros sobre o termo etnobotânica foram empregados, pela primeira vez em 1895, por Harshberger no conhecimento ecológico. Dessa forma, se observa que estudos etnobotânicos possuem um importante papel no resgate e valorização da cultura local. O estudo retrata o papel da natureza no sistema de crenças e de adaptação do homem a determinados ambientes. Isto significa, que etnobotânica teve igualmente, origem e aplicações nas numerosas observações de exploradores, missionários, naturalistas e botânicos, ao estudarem muitas vezes, o uso de plantas por comunidades[4].
Alguns autores têm definido que a etnobotânica consiste em uma ciência que estuda a relação dos seres humanos com as plantas. Destacando como uma abordagem de pesquisa científica que estuda pensamentos, crenças, sentimentos e comportamentos. Mediação de interações entre as populações humanas e os demais elementos dos ecossistemas, bem como, os impactos advindos dessa relação[3].
Assim, o conceito de medicina popular, ao longo dos tempos, foi se constituindo como uma medicina complementar ao método convencional de tratamento. No quesito das plantas medicinais, esses componentes estão diretamente relacionados ao conceito de "remédio natural" ou "remédio caseiro". Nesse sentido, à utilização de preparados caseiros à base de plantas medicinais ficou evidenciado neste trabalho. Nesta pesquisa, utilizando a técnica amostral não probalística de snow ball ou "bola de neve" foram identificados 30 participantes identificados como benzedeiras e/ou rezadeiras que utilizam em suas práticas espécies medicinais.
Ao se analisar sobre os potenciais farmacológicos que as plantas dispõem, são necessárias algumas definições importantes, relacionadas às nomenclaturas utilizadas no âmbito das pesquisas etnobotânicas. Desta forma, plantas medicinais são as espécies vegetais, cultivadas ou não, utilizadas com propósitos terapêuticos, servindo de matéria-prima. Por seguinte, planta medicinal fresca é qualquer espécie vegetal com finalidade medicinal usada logo após a colheita/coleta, sem passar por qualquer processo de estabilização e secagem. Já a droga vegetal é por definição, a planta medicinal ou suas partes após processos de coleta, estabilização e secagem, podendo estar na forma íntegra, rasurada, triturada ou pulverizada, que contém as substâncias que são responsáveis pela ação terapêutica. Ainda, o derivado vegetal, que é o produto da extração da planta medicinal podendo ocorrer na forma de extrato, tintura, alcoolatura, óleo fixo e volátil, cera, exsudato e outros[6]. Por fim, o termo remédio caseiro, abrange de forma bastante ampla a utilização de partes de plantas, para fins terapêuticos, preparados em ambiente caseiro. Estas formulações caseiras são produzidas na forma de chá, xarope, emplastro, sumo, banho e garrafada. Preparados com sementes, caules, raízes, frutos, folhas e sumos, possuindo diversas formas de apresentação e administração[2].
Nesse contexto, quando indagados aos participantes sobre o local de aquisição das espécies, 16 participantes (53%) apontaram o horto medicinal ou canteiro, sete (23%) adquirem em suas propriedades, seis (20%) no mato (planta nativa) e um (4%) adquire comercialmente. Estes relatos ressaltam a necessidade da manutenção do uso sustentável da biodiversidade, visto que o extrativismo pode levar a redução dos materiais vegetais utilizados, comprometendo o conhecimento e o uso popular.
As pesquisas atuais envolvendo plantas medicinais demonstram que elas fazem parte da evolução humana, sendo os primeiros recursos terapêuticos utilizados. Os povos primitivos tiveram sucessos e fracassos nas suas experiências. Por muitas vezes as plantas curavam, produziam efeitos colaterais severos e, em outras situações, ocasionavam a morte. Para evitar tais problemas, os mesmos observavam os animais, e a descoberta humana das propriedades úteis e nocivas das plantas foram repassadas empiricamente[4,6].
Na perspectiva de suporte para bioprospecção, o estudo apontou 143 espécies medicinais utilizadas pelos participantes da pesquisa. Porém, não se obteve êxito na identificação de quatro espécies. Dessa forma, foram totalizadas 139 plantas diferentes, pertencentes à 57 famílias botânicas, com 298 indicações para tratamento medicinal, distribuídas nas categorias patológicas do British National Formulary.
Assim sendo, ficou evidente que a pesquisa etnobotânica tem se revelado uma importante ferramenta de prospecção de moléculas bioativas úteis na medicina, reconhecida por cientistas em todo o mundo[6]. Isto porque, na prática, os estudos etnobotânicos avaliam como os moradores coletam e usam informações de seus locais de origem em comparação com as informações obtidas cientificamente. Consequentemente, as investigações etnodirigidas servem de pré-requisito para o desenvolvimento de novos fármacos, pois, apresentam informações preliminares de eficácia e segurança[2,5].
Especialistas em etnofarmacologia, veem na etnociências, uma potência de renovação dos modelos de ação das substâncias ativas, sendo agregadas pela ciência popular. Em geral, compreendem os conceitos de medicina popular e consideram que suas práticas podem ser úteis à gênese de uma verdadeira inovação nos paradigmas de uso e desenvolvimento de medicamentos e tratamentos[4].
Conclusão
Na contemporaneidade, a etnobotânica constitui conexão entre o saber popular e o científico, incentivando o desenvolvimento sustentável por meio dos recursos vegetais. É notável que as populações dependem de certa forma, das plantas e seus produtos para subsistência e saúde dentro das diversas comunidades, e dessa forma, acabam selecionando plantas com elevado potencial terapêutico.
Neste contexto, se torna de fundamental importância a continuidade de investigações etnobotânicas que visam além do registro catalográfico das plantas e a aplicabilidade de uso como recursos vegetais terapêuticos, também se destinam em aprofundar conhecimentos sobre condutas de manejo e empregabilidade destas matérias-primas por comunidades étnicas.
Agradecimentos
À Universidade Comunitária da Região de Chapecó (Unochapecó) e ao Programa de Bolsas Universitárias de Santa Catarina (UNIEDU).
Referências
1. Veiga V, Pinto A, Maciel M. Plantas medicinais: cura segura? Quim Nova. 2015; 28(3): 519-8. ISSN 1678-7064. [CrossRef].
2. Rocha JA, Boscolo OH, Fernandes LRM. Etnobotânica: um instrumento para valorização e identificação de potenciais de proteção do conhecimento tradicional. Interações (Campo Grande). 2015; 16(1): 67-4. ISSN 1984-042X. [CrossRef].
3. Kayser O. Ethnobotany and Medicinal Plant Biotechnology: From Tradition to Modern Aspects of Drug Development. Pl Med. 2018; 84(12-13): 834-8. ISSN 0032-0943. [CrossRef].
4. Albuquerque UP, Hanazaki N. As pesquisas etnodirigidas na descoberta de novos fármacos de interesse médico e farmacêutico: fragilidades e perspectivas. Rev Bras Farmacogn. 2006; 16: 678-689. ISSN 1981-528X. [CrossRef].
5. Albuquerque UP, Silva JS, Campos JLA, Souza RSS, Silva TCS, Alves RRN. The current status of ethnobiological research in Latin America: Gaps and perspectives. J Ethnobiol Ethnomed. 2013; 9(72). [CrossRef].
6. Telesi Júnior E. Práticas integrativas e complementares em saúde, uma nova eficácia para o SUS. Estud Av. 2016; 30(86): 99-112. ISSN 1806-9592. [CrossRef].