Resenha

Plantas medicinais e fitoterápicos no Brasil: pesquisa acadêmica, prova de conceito ou inovação?

Medicinal plants and herbal medicines in Brazil: academic research, proof of concept or innovation?

http://doi.org/10.32712/2446-4775.2022.1193

Lapa, Antonio José1*;
Souccar, Caden1;
Lima-Landman, Maria Teresa Riggio de1;
Tanae, Mirtes Midori1.
1Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP), Departamento de Farmacologia, Setor de Produtos Naturais, Escola Paulista de Medicina-UNIFESP, Rua 03 de maio, 100, Vila Clementino, CEP 04044-020, São Paulo, SP, Brasil.
*Correspondência:
ajlapa1@hotmail.com

Análise retrospectiva das estratégias dos Programas CEME e CAPES de 1976 a 1998. Evolução científica e perspectivas

Esta resenha é um agradecimento ao convite para participar da abertura do 1º Interphyto como Presidente de Honra do Congresso. A indicação inesperada deve ter vindo de colegas que em 50 anos trocaram comigo ideias, esperança, acertos, erros e parte da juventude no estudo de plantas medicinais, fitoterápicos e medicamentos de uso humano. Para retribuir a homenagem, sem risco de esquecer nomes, decidi realçar partes do Programa de Plantas Medicinais, e deixar as lembranças reavivarem as emoções que deram força à iniciativa. Na minha frente tenho duas prateleiras cheias de ajuda: pequenos bibelôs que me lembram a trilha das plantas e suas histórias. Alguns foram presentes, mas todos acumulam a poeira do tempo e dão trabalho para limpar. Mas, convenhamos, por que limpar a história? Bibelôs e velhos são para lembrar a história, louvar jovens entusiastas, que talvez não sejam mais tão jovens, mas que ainda devem lembrar que estivemos juntos fazendo esta história.

A opção de estudar plantas medicinais me foi transmitida pelo Prof. José Ribeiro do Valle, que ensinava 'a pensar livremente na cabeça de um camundongo, ao invés de balançar sonhos geniais na cauda de exuberantes leões globalizados'. Também aprendi com ele que apenas o aluno tem o direito de reconhecer um verdadeiro professor! Por isso, cito poucos nomes neste resumo: alguns professores que me estenderam a mão quando eu engatinhava entre as plantas e as colegas do Setor de Produtos Naturais da Farmacologia-EPM, que merecidamente dividem a autoria deste resumo, porque endossaram os projetos de extensão universitária com plantas medicinais desde sua origem, participaram da execução, e garantiram a unidade do Grupo na docência e na pesquisa.

Na minha história, o treinamento na área de medicamentos começou logo após a graduação médica na Escola Paulista de Medicina, em 1967.  A opção pela Farmacologia veio cinco anos depois, no pós-doutorado; a escolha de plantas medicinais foi dez anos mais tarde, em 1977. A década de 1970 foi marcada por movimentos sociais e muita esperança de progresso. As reformas institucionais não mudavam o atendimento à saúde no país pobre e populoso, que migrava do campo para as grandes cidades. Emprego, educação e atendimento primário à saúde eram precários. Produzir medicamentos era imperioso, não só para a saúde, mas também para diminuir a importação que pesava negativamente na balança econômica. A Central de Medicamentos (CEME) foi criada em 1971 com esta finalidade: desenvolver, gerenciar e prover medicamentos acessíveis ao sistema público de saúde. Como a síntese interna dos medicamentos essenciais teve pouco sucesso econômico, a CEME foi levada a desenvolver medicamentos dos fitoterápicos consagrados na medicina popular.  Esta resenha histórica começa nesse momento, em 1977, com o primeiro Projeto de Pesquisa de Plantas Medicinais (PPPM-1) da CEME.

PPPM-1 – Este projeto piloto integrou as áreas de botânica/farmacognosia, química e farmacologia das universidades com Pós-graduação CAPES de excelência: JB-RJ, UFPR, UFRJ, UFRRJ, UNIFESP-EPM, USP. Teve curta duração:  de 1977 a 1978. O Prof. Ribeiro do Valle foi o Coordenador Geral e eu atuei como Secretário Executivo. Doze plantas haviam sido selecionadas para o estudo integrado. A experiência mostrou que a fama histórica das plantas era maior que a realidade: as selecionadas eram bem conhecidas, mas de estudo científico difícil; a integração dos pesquisadores foi ainda mais complicada! Em autocrítica posterior, ponderou-se que os laboratórios de pesquisa e os pesquisadores eram poucos e concentrados em agitadas universidades do Sudeste e do Sul. O projeto revelou a complicada interface das especialidades, a necessidade urgente de descentralizar e equipar laboratórios nos biomas brasileiros, ir ao encontro da biodiversidade ao invés de tentar trazê-la para as capitais. Para os cientistas do PPPM-1 [Ângelo, Braz, Gilbert, Jacoud, Magalhães, Matos, Mors, Motidome, Nuno, Rizzini, Wasicky, Lapa, Ribeiro do Valle] a derivada maior do projeto foi a integração que veio depois da amizade. De fato, encerrado o projeto, as lideranças se reuniram para definir um novo "Projeto Integrado de Pesquisas Botânicas, Químicas e Farmacológicas de Produtos Naturais", nascido das falhas e da experiência anterior, envolvendo muitos outros laboratórios 'pontos focais' nos biomas distantes. Aprovado em primeira instância, pelo CNPq (1979), o Projeto Integrado foi sumariamente vetado pela diretoria Finep da época (1980), em uma reunião que alvoroçou o X Simpósio de Plantas Medicinais do Brasil realizado naquele ano em Fortaleza, CE. Depois desse revés emotivo, a integração científica foi desfeita: os químicos aderiram aos Programas de Apoio à Química (PRONAQ, 1981 e PADCT,1984);  a CAPES solicitou que elaborássemos um plano forte para a formação descentralizada de Farmacologistas, que deu origem ao Curso Nacional de Especialização em Farmacologia de Produtos Naturais,  que eu coordenei de1980 a 1990.

ALMA ATA - Em setembro de 1978 a OMS-UNICEF organizaram a "Conferência Internacional sobre Cuidados Primários à Saúde" em Alma Ata - capital do Kazaquistão, na antiga Rússia. A "Declaração de Alma Ata" teve grande impacto social e o mérito de ter sido o marco fundamental do direito dos povos à saúde, do atendimento médico integral e equalitário, e do uso dos recursos da medicina tradicional no atendimento primário à saúde. A interpretação desta última como 'para uso imediato' trouxe muita discórdia.  Incorporadas pelo Ministério da Saúde do Brasil, as diretrizes capitais de Alma Ata formaram a base da 'Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares' (CNS, 2006), que em 2010 incorporou o Programa 'Farmácias Vivas', de grande aceitação na comunidade.

CAPESCurso Nacional de Especialização em Farmacologia de Produtos Naturais. Em 1980, o Presidente da CAPES nos solicitou um programa forte para desenvolver o estudo de plantas medicinais no Brasil.

A estratégia que recomendamos propunha:

  1. montar laboratórios de pesquisa em universidades federais interessadas;
  2. colocar em marcha os novos laboratórios com um Curso de Especialização de 6 meses reunindo 20-25 graduados de diferentes Estados, para integrar conceitos, nivelar os conhecimentos acadêmicos, interagir ideias e costumes regionais;
  3. desenvolver os ensaios biológicos utilizados no estudo de plantas medicinais, em duplas, para forçar a troca de experiências no trabalho;
  4. garantir a execução de uma pesquisa obrigatória ao final do curso com plantas regionais de livre escolha.

As universidades que solicitaram o Curso de Especialização foram: UFAL-1982 (Nordeste); UFMA-1984 (Norte); UFMT-1986; (Centro-Oeste); UFPE-1988 (Nordeste). 112 (cento e doze) bolsistas de 19 estados iniciaram o treinamento; 104 (cento e quatro) apresentaram o trabalho final em duplas.  Até 1996, trinta e cinco ex-bolsistas haviam terminado o mestrado, 50 haviam concluído o doutorado e 40 tinham realizado Pós-doutorado.

PPPM-2 – No entusiasmo de Alma Ata, a CEME aprovou o PPPM-2 (1984-1998), mais objetivo e com a prioridade de comprovar a eficácia e a segurança dos fitoterápicos populares em humanos. O planejamento dessa "Prova de Conceito" considerou as exigências da legislação brasileira e as normas internacionais éticas e científicas exigidas para aprovação dos ensaios clínicos na espécie humana. O Conselho Científico do programa recomendou a constituição das Coordenadorias de Botânica/Farmacognosia/Agronomia, de Farmacologia, de Toxicologia e de Ensaios Clínicos lideradas inicialmente pelos professores Francisco José de Abreu Matos, da UFCE, Sérgio Henrique Ferreira, da FMRP-USP, Ivaldo Melito, da UNESP Jaboticabal e Artur Beltrame Ribeiro, da EPM-UNIFESP, respectivamente. As coordenadorias selecionaram conselheiros científicos que estabeleceram os protocolos experimentais de cada área e os laboratórios habilitados para a execução. A coordenadoria de plantas selecionou 20 plantas medicinais nativas, identificadas pelos botânicos e, quando possível, cultivadas pelos agrônomos, ou coletadas de locais demarcados. Os farmacêuticos padronizaram a extração e o preparo em escala dos extratos aquosos, liofilizados ou secos em spray dryer. Os testes de eficácia pré-clínica foram implementados após adequação dos protocolos farmacológicos internacionais. Os testes de toxicidade oral (v.o.) foram adaptados das revisões da OMS, ou das normas da OCDE, já incorporadas pela Secretaria de Vigilância Sanitária do MS. Para os testes de toxicidade com roedores foram criados ratos Wistar e camundongos Swiss de linhagens controladas; os testes complementares foram realizados com cães da raça Beagle, também criados para o programa. Destes testes pré-clínicos com alguns fitoterápicos foi possível obter: o intervalo de doses eficazes (DE) e a NOAEL-dose indicativa da maior dose de uso permitido sem efeito tóxico concomitante. Com estes valores foram calculados o índice terapêutico (IT) e o intervalo de segurança (janela terapêutica) extrapoláveis à espécie humana após correção alométrica (dose por área corpórea animal relativamente à área corpórea humana por kg de peso), que estima a intensidade dos efeitos esperados em cada espécie. Com resultados favoráveis os ensaios clínicos preliminares foram realizados em hospitais universitários (UFRJ, UNICAMP, UNIFESP) com sachês dispensados em quantidades calculadas do rendimento seco de um chá.

Ampliação da base de pesquisa: Padronizados os protocolos e métodos, o PPPM-2 iniciou a descentralização apoiando financeiramente novos grupos de pesquisa, a montagem de novos laboratórios regionais e a transferência da tecnologia padronizada visando ampliar a capacidade de realização dos ensaios pré-clínicos.

No entanto, a CEME foi extinta em 1998, de repente, no auge da produtividade do PPPM-2, sem ter concluído os estudos iniciais e a transferência de tecnologia para os laboratórios regionais que tinha ajudado a montar. O know-how acumulado e os resultados da pesquisa não foram utilizados por nenhuma empresa farmacêutica, porque, um ano depois, o Brasil reconhecia as patentes de medicamentos e regulamentava a produção de medicamentos genéricos. Embora capitalizados com essa política, os laboratórios farmacêuticos não mais mostraram interesse nos estudos integrados.  Preferiram ficar na cauda do leão! Um resumo superficial dos resultados do PPPM-2 foi publicado pelo MS alguns anos mais tarde.

1[Note-se nesta retrospectiva que o protocolo de ensaios do PPPM-2 foi planejado em condições "translacionais", i.e., visando a realização pragmática dos protocolos pré-clínicos de eficácia e segurança para submissão aos Comitês de Ética e realização dos ensaios clínicos. O conceito de Medicina Translacional e o termo Translacional, surgiram na literatura internacional apenas vinte anos mais tarde, em 2004].

2[O PPPM-2 consolidou no Brasil toda a infraestrutura para a avaliação pré-clínica da eficácia e da toxicidade de medicamentos. O treinamento para instalação de laboratórios nos diferentes biomas estava em andamento. No entanto, a infraestrutura montada durante anos para avaliar a toxicidade pré-clínica, inclusive a criação orientada de cães, não resistiu ao tempo e às mudanças sociais. Ativistas deste "Século da Tecnologia" ameaçaram invadir alguns biotérios e, sem encontrar reação policial, invadiram e depredaram o Laboratório Royal (2013), um dos maiores credenciados no país, roubaram animais e arquivos, estigmatizaram cientistas, tornando impossível, a curto prazo, retomar os estudos da segurança de medicamentos no Brasil, sem que os Chefes de Estado e as Agências Regulamentadoras Oficiais assumissem efetivamente atitudes proativas, como ocorreu em todos os países que desenvolvem medicamentos].