ARTIGO DE PESQUISA

As memórias socioambientais da etnia terena e a relação com a educação ambiental

The socio-environmental memories of the Terena ethnic group and the relationship with environmental education

https://doi.org/10.32712/2446-4775.2023.1464

Nascimento, Elisangela Castedo Maria do1
ORCID https://orcid.org/0000-0002-8448-3315
Medeiros, Heitor Queiroz de2*
ORCID https://orcid.org/0000-0001-5313-1811
1Secretaria Estadual de Educação cedida para a Fundação de Cultura de Mato Grosso do Sul. Rua Fernando Correa da Costa, 559, Centro, CEP 79 002-820, Campo Grande, MS, Brasil
2Universidade Católica Dom Bosco (UCDB), Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGE). Av. Tamandaré, 6000, Jardim Centenário, CEP 79117-900, Campo Grande, MS, Brasil
*Correspondência:
heitor.medeiros@ucdb.br

Resumo

Este artigo é um dos resultados da pesquisa de doutorado cujo objetivo foi compreender a relação dos indígenas Terena da Aldeia Lagoinha, no Município de Aquidauana, Mato Grosso do Sul, com a natureza e, como seus saberes e memórias socioambientais podem contribuir com a Educação Ambiental brasileira. Buscou-se a valorização dos saberes indígenas sem homogeneizar as tradições ou essencializar, conferindo-lhes uma pureza que não existe. Os dados foram produzidos pelo método da história oral. As entrevistas foram gravadas, transcritas e interpretadas à luz da teoria pós-crítica. A cultura ocidental a partir da modernidade tem transformado a natureza em mercadoria gerando problemas socioambientais, objeto de análise da Educação Ambiental, assim como a resolução desses problemas. As comunidades tradicionais observaram e compreenderam a biodiversidade com a qual conviviam e por meio dessa desenvolveram práticas e técnicas sustentáveis de sobrevivência no uso dos ambientes em que viveram e vivem. Esses saberes são o resultado de traduções para sobrevivência que influenciaram sua cultura e seu ambiente, podendo ser usados em processos formativos em Educação Ambiental em todas as regiões do país, pois, os povos originários estão presentes na sociedade brasileira como detentores de saberes tradicionais valiosos.

Palavras-chave:
Natureza.
Saberes tradicionais.
Educação ambiental.

Abstract

This article is one of the results of a doctoral research whose objective was to understand the relationship of the Terena indigenous people from Aldeia Lagoinha, in the Municipality of Aquidauana, Mato Grosso do Sul, with nature and how their knowledge and socio-environmental memories can contribute to Environmental Education Brazilian. We sought to value indigenous knowledge without homogenizing traditions or essentializing them, giving them a purity that does not exist. Data were produced by the oral history method. The interviews were recorded, transcribed and interpreted in the light of post-critical theory. Western culture, starting with modernity, has transformed nature into a commodity, generating socio-environmental problems, the object of analysis in Environmental Education, as well as the resolution of these problems. Traditional communities observed and understood the biodiversity with which they lived and through this developed sustainable practices and techniques for survival in the use of the environments in which they lived and live. This knowledge is the result of translations for survival that influenced their culture and environment, and can be used in formative processes in Environmental Education in all regions of the country, since the original peoples are present in Brazilian society as holders of valuable traditional knowledge.

Keywords:
Nature.
Traditional knowledge.
Environmental education.

Introdução

Este artigo é um dos resultados da pesquisa de doutoramento desenvolvido no programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Católica Dom Bosco e financiada pelo Programa de Suporte à Pós-Graduação de Instituições Comunitárias de Ensino Superior (PROSUC) da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES).

A pesquisa foi desenvolvida com a etnia Terena, especificamente na aldeia Lagoinha que pertence à Terra Indígena Taunay/Ipegue, localizada no distrito de Taunay, pertencente ao município de Aquidauana, no estado de Mato Grosso do Sul (MS).

Em relação à Educação Ambiental, Meio Ambiente e Natureza optou-se pela reflexão a partir de teóricos que discutem natureza, relação ser humano/natureza, etologia, cultura e sociedade, ecologia de saberes, cultura e ambiente, a partir dos seguintes autores: Carvalho[1], Tristão[2,3], Santos[4], Diegues[5], Sato e Passos[6] entre outros. Por meio desses autores, buscamos aprender a ouvir e compreender as vozes, geralmente silenciados pela modernidade.

A pergunta norteada para o objetivo geral foi: "no que os saberes ancestrais indígenas Terena da Aldeia Lagoinha no Município de Aquidauana, MS, ressignificados, podem contribuir com o avanço da Educação Ambiental desenvolvida no Brasil?

Dessa forma, o objetivo foi: compreender a relação dos indígenas Terena da aldeia Lagoinha no Município de Aquidauana, Mato Grosso do Sul, com a natureza e como seus saberes e memórias socioambientais podem contribuir com a Educação Ambiental brasileira.

Metodologia

Optou-se por realizar uma pesquisa qualitativa na busca da compreensão da relação ambiental do Terena com a natureza. Essa metodologia proporcionou possibilidades de pesquisar os fenômenos das relações sociais ocorridos em vários ambientes, pois o contexto em que o fenômeno ocorre e do qual faz parte deve ser analisado para ser melhor compreendido, mas para isso o pesquisador precisa perceber o fenômeno a partir do ponto de vista das pessoas envolvidas[7].

Além de qualitativa, nossa pesquisa foi baseada nas Teorias Pós-Críticas que têm como premissa o comprometimento de estudar e intervir no mundo, a fim de modificar o "status quo". É um compromisso político alinhado aos princípios da democracia cultural[8], "explorando modos alternativos de pensar, falar e fazer práticas sociais, remodelar as metodologias de pesquisa para que não sejam ferramentas de reprodução social" (p.9-10).

Buscou-se compreender a relação dos indígenas Terena, da aldeia Lagoinha no Município de Aquidauana, Mato Grosso do Sul, com a natureza e como seus saberes podem contribuir com a Educação Ambiental, ancorando a pesquisa no método da História Oral que privilegia as histórias contadas pelo grupo pesquisado. Optou-se pela história oral devido ao fato da oralidade ser uma característica forte dos indígenas. Como ancestralmente não possuía a escrita, o conhecimento era repassado nas gerações pela oralidade, fortemente presente até hoje.

Para explorar a história oral optou-se pela entrevista não estruturada como ferramenta de pesquisa, pois permitiu ao pesquisador produzir muitos dados.

As atividades a campo e produção de dados ocorreram nas seguintes datas: 26 a 29 de janeiro de 2019; 15 a 20 abril de 2019; 08 a 11 de maio de 2019; 15 a 20 de novembro de 2019; 26 a 29 de janeiro de 2020; 23 a 26 de fevereiro de 2020.

Os sujeitos da pesquisa foram os membros da comunidade indígena Terena da aldeia Lagoinha no Município de Aquidauana em Mato Grosso do Sul (MS) com foco nos anciões, mestres tradicionais e lideranças, pois estes estão mais próximos dos conhecimentos originários de sua gênese. Escolheu-se dois protagonistas iniciais e estes indicaram os demais, como sugerido por Brand[9] "por vezes basta a escolha de alguns informantes iniciais que sucessivamente indicarão outros" (p. 203).

Entrevistou-se o total de doze pessoas, entre anciões e liderança com idades a partir de 59 anos, seis pessoas com idade entre 40 anos e 50 anos, quatro pessoas com idades entre 25 e 40 anos. Entre estes, dez mulheres e doze homens, embora neste artigo apareça apenas três, por ser um recorte da pesquisa.

O diário de campo foi utilizado durante todo o período de produção de dados. A maioria das entrevistas foi gravada em áudio utilizando o aparelho de celular, mas também se fez questão de gravar vídeos no aparelho de celular com os anciões mais idosos.

Outra ferramenta utilizada foi a câmera fotográfica, pois foram registrados vários eventos na aldeia durante a pesquisa. A conversa informal foi adotada como uma estratégia de aproximação para depois marcar a entrevista, embora nessas conversas tenha-se obtido informações relevantes que respondiam nossos objetivos de pesquisa. As conversas aconteceram principalmente durante os eventos que ocorreram na escola e na igreja.

O projeto de pesquisa e o termo livre esclarecido foram aprovados pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Católica Dom Bosco (CEP/UCDB), sob o parecer número 3.246.751. O delineamento desse estudo atendeu os aspectos éticos da pesquisa com seres humanos definidos pela Resolução Nº 510, de 07 de abril de 2016 do Conselho Nacional de Saúde. Destaca-se aqui que o Termo Livre Esclarecido foi assinado por todos os participantes da pesquisa, nos conferindo autorização para a divulgação de todo material produzido, como, filmagens, entrevistas e imagens, tanto dos adultos como das crianças, na produção da tese e de artigos frutos da tese.

Resultados e Discussão

Desde que a humanidade está no mundo, observa-se a natureza imitando-a ou buscando respostas para seus dilemas. As navegações eram guiadas pelas estrelas, os aviões foram inspirados nos pássaros, o revestimento reflexivo usado em sinalizações de trânsito foi copiado dos olhos dos gatos que refletem a luz. O design da frente do trem bala foi mudada para diminuir o barulho e aumentar a velocidade, baseado no martim pescador, sua anatomia faz com que se introduza na água com muita facilidade e não emitindo som. O cimento ecológico foi inspirado nos corais. Esses são alguns exemplos dentre muitas invenções da humanidade baseadas na Natureza.

Para falar sobre a observação da natureza, esse estudo traz a biologia para nos embasar, e para mostrar que é possível o diálogo entre a ciência ocidental e os saberes tradicionais, decolonizando a ideia de superioridade dos conhecimentos ocidentais.

Na Biologia o estudo do comportamento social e individual dos animais e de seu habitat natural, é conhecido como etologia (do grego: Ethos: lugar habitual; conduta; Logos: estudo). Elementos do ambiente como[10] "as condições climáticas, as plantas, o tipo de solo, os predadores, as presas e outros animais que convivem com ele", influenciam o comportamento dos animais (p. 68).

Embora muitos grupos humanos, desde a pré-história, já tivessem o costume de observar o comportamento dos animais tirando proveito tanto na caça como no convívio, o comportamento dos animais só passou a ser estudado sistematicamente apenas em meados do século XX, o que também ajudou na compreensão da relação do ser humano com o ambiente já que estes deixam marcas inscritas na paisagem, como visto mais adiante.

A etologia revelou o comportamento animal em relação com o outro, não só de mesma espécie como com os de outras espécies, outros hábitos, outros nichos. O que parecia ser um ajuntamento desordenado e com reações automáticas ou reflexos, após serem observados mais de perto, mostrou-se um todo organizado e com hierarquias[11].

"As primeiras descobertas etológicas indicam-nos que o comportamento animal é simultaneamente organizado e organizador. Em primeiro lugar, surgem as noções de comunicação e de território [...]"[11] (p. 11).

Os dados evidenciados na etologia constituíram a noção de sociedade no meio ambiente. Sociedade que organiza e protege seu território, disponibiliza uma hierarquia baseada em competições e conflitos ordenando as relações de submissão e dominação. Mas, também, as relações são feitas de solidariedade quando em perigos e próximos a inimigos exteriores produzindo trabalho de cooperação organizado de forma sutil. A comunicação, por meio de sinais e símbolos, faz parte da complexidade das relações sociais múltiplas.

Ainda segundo Morin[11], as sociedades, como a de formigas, abelhas, ou uma alcateia, se comunicam, estabelecem as hierarquias num ritual de submissão e utilizam estratégias coletivas para caçar, se defender, atacar e também para fugir[11]. "Chega-se à conclusão de que nem a comunicação, nem o símbolo, nem o rito, são exclusividades humanas, e de que têm raízes muito remotas na evolução das espécies" (p. 14).

Na evolução das espécies existe um elo perdido entre os ancestrais primatas e o ser humano atual. São de 10 a 5 milhões de anos a lacuna entre essas espécies, um abismo evolutivo. Dessa forma, é possível que os utensílios, a caça, a linguagem e a cultura tenham aparecido com o desenvolvimento da hominização, antes do surgimento da nossa espécie (sapiens)[11]. "É nessa lacuna que agora se pode ver um animal humano, uma sociedade natural, uma elaboração cultural ligada a uma evolução biológica"[11] (p. 28). A cultura da sociedade humana emerge no decorrer da evolução biológica.

Assim, inscrevemos as condições naturais em que vivemos em nosso mundo de significados, transformando a natureza em cultura. Essa relação dinâmica de mútua transformação entre seres humanos e natureza [...] nunca se fecha [...] produzindo continuamente ambientes de vida e cultura[7] (p. 76).

É uma relação dinâmica de transformação, o ser humano transforma a natureza produzindo ambientes que influenciam na vida do ser humano que também é transformado, e essa transformação é cultura. Nesse panorama cultural e ambiental, a vida do indígena era fortemente influenciada pelo ambiente. O comportamento dos animais e o ciclo da lua orientavam suas atividades diárias.

As relações com o ambiente são refletidas nessas marcas. Essas marcas são acontecimentos inscritos na paisagem e na memória, tanto no espaço quanto no tempo. Esses acontecimentos se acumulam formando os marcadores espaço-temporais gerados pela dinâmica socioambiental. O tempo presente juntamente com as heranças criadas ou não, influenciam os processos diários nas sociedades tradicionais.

É por meio do trabalho, métodos e procedimentos que as sociedades humanas produzem artefatos e construções que ficam registrados na paisagem, nas modificações dos ambientes, na memória e nas informações transmitidas de uma geração para outra[12].

Loiola et al.[12] entenderam que os eventos do cotidiano exprimem o movimento de criação da realidade e:

Materializam acontecimentos singulares entre tantos possíveis, cujas marcas permitem diferenciar os momentos nas sociedades e nos ambientes, sejam no campo das ideias, processos, fatos ou fenômenos. Suas marcas informam um lugar no espaço e no tempo do acontecer [...][12] (p. 68).

Os marcadores espaço-temporais oferecem dados que permitem conhecer vários aspectos das comunidades tradicionais, como seus costumes, relações, crenças, ou seja, sua cultura.

As memórias socioambientais das comunidades tradicionais originaram-se dos marcadores espaço-temporais, e alicerçam as representações sociais o que permite identificações culturais e étnicas. Essa produção socioambiental é originada do vínculo entre as questões sociais, culturais, ambientais e históricas[12].

Os autores ainda argumentam que "juntamente com a memória, a paisagem torna-se guardiã das sucessivas marcas"[12] (p. 71) socioambientais inscritas no espaço-tempo que essas noções de espaço e tempo se formaram via processos histórico-sociais de acordo com os símbolos de cada cultura. Essas noções se traduzem em referenciais ambientais resultantes do acúmulo de saberes e aprendizagens, utilizados no decorrer da vida e dos afazeres cotidianos.

Focando na cultura Terena, percebeu-se que são excelentes observadores e que as referências utilizadas por eles estão nas fases da lua, no florescimento das plantas, no aparecimento dos frutos, no comportamento dos animais, entre outros a serem especificados a seguir.

Seu Leopoldo da Silva Terena (artesão, 64 anos) nos relatou sobre os ensinamentos do seu pai durante o tempo que trabalhavam na roça. Seu pai dizia que:

A lua nova é sinal de chuva, se ela virar... se fica com o C [na forma da letra C] pra cima é frio, o C em forma de C é normal e o C ao contrário é chuva e o C pra baixo não tem [... risos]. Depois de uma semana de lua nova chove. É bom de plantar rama em tempo de lua nova, ai carrega o pé, só que começar a colher tem que ser rápido porque se não apodrece tudo. Lua crescente, lua cheia e lua minguante é bom pra plantar, lua nova pode plantar mas vai carregar e apodrecer rápido. Na lua nova não pode tirar madeira pra construir casa porque fica fraca a madeira, é bom tira na crescente, cheia e minguante, nada é bom na nova. A lua nova é uma lua muito forte e as coisas parece que não é nada, mas é, antigamente as pessoas plantava na cheia e crescente[...]. Se você tiver andando no mato e ver formiguinha carregando, bom ele carrega o alimento em tempo de seca, antes da chuva, tem que preparar comida pra quando chover. Se ver tatu galinha, veado no campo também é sinal de chuva (Entrevista realizada com Leopoldo da Silva em abril de 2019).

Durante a entrevista com seu Leopoldo, comentei que no dia que cheguei à aldeia, havia muitos mosquitos e moscas. Rapidamente ele respondeu que isso era sinal de chuva, e que choveu ao redor embora não tivesse chovido na aldeia. Depois que chove a quantidade de moscas e mosquitos diminui consideravelmente como pudemos perceber. As lembranças, sobre o ciclo da lua relacionando com o plantio ou sobre o comportamento dos mosquitos e animais na mata, são classificadas como representações de base cognitiva e performática. Cognitiva porque envolve imagens do ambiente e performática porque envolve movimento e ciclos. Segundo Seemann[13] (p. 9) a representação

Cognitiva ou mental inclui tanto as imagens do ambiente guardadas na mente das pessoas para encontrar caminhos ou se orientar no espaço, quanto artefatos físicos que registram como as pessoas percebem o espaço e os lugares. [A representação de performance] pode se manifestar em forma de um ato social não material, oral, visual etc., como gestos, rituais, canções, processos, danças, poemas, histórias ou outros meios de expressão ou comunicação cujo propósito primário é definir ou explicar conhecimentos ou práticas espaciais.

Nos relatos e histórias contadas pelos anciões da aldeia encontramos vários tipos de representações. "É por meio dos significados produzidos pelas representações que damos sentido à nossa experiência e àquilo que somos"[14] (p. 17). As representações cognitivas, performáticas e espaciais dos Terena são significativas porque suas experiências são usadas como fonte de ensino e porque exprimem a identidade desse povo.

O seu Lourenço Moreira (78 anos) nos contou que o nome da aldeia foi escolhido em homenagem a uma parteira que usava a lagoa como referência para ensinar onde morava. "Maria Carolina, que é avó, mãe do pai dele [apontou o Délio], ela era parteira e ia pra alguns lugares, aí chamavam ela quando a criança ia nascer e perguntaram lá de onde ela mora. Eu moro perto de uma lagoa a lagoinha".

Essa fala do seu Lourenço é um exemplo de representação espacial, visto que em sua lembrança utiliza um referencial espacial físico fixado em um lugar.

A representação espacial também pode ter uma forma material e "não efêmera". Os mapas desta categoria são artefatos físicos que podem ser encontrados fixados em um lugar (arte rupestre, desenho de mapas em habitações, paredes etc.) ou são registros "móveis", "portáteis" como cerâmica, tecidos, descrições ou desenhos de performance[13] (p. 9).

Seu Lourenço também nos relatou sobre alguns sinais que marcam chuvas, baseado no comportamento dos animais. "A coruja vem em cima de casa, alguma coisa vai acontecer. Quando o bugio grita de manhã cedo, vai chover". O professor Délio, que acompanhou as entrevistas como tradutor, complementou dizendo: "Anuncia a chuva na semana né, ele não determina o horário também né [risos]".

Os Terena que possuem emprego formal utiliza relógio e se orientam de acordo com os horários determinados pela sociedade, ocidental perfazendo jornada de trabalho de oito horas por dia. Mas a maioria da aldeia, que não está em serviço, se orienta pela localização do sol, mas para isso é necessário saber onde o sol nasce e se põe.

Voltando de uma entrevista encontrei seu Sebastião Pereira (ancião, liderança religiosa, 64 anos) e perguntei para ele que horas a gente poderia conversar, pois já havia falado anteriormente sobre a entrevista, então ele respondeu: "Agora são quase meio dia... [olhando para o céu], vou dar uma parada e descansar, quando eu voltar às duas horas [14h] para o trabalho, eu passo lá e daí a senhora pode me perguntar".

Depois disso, perguntei para seu Leopoldo como isso funcionava e ele explicou:

O sol nasce ali [apontou], antes dele nascer tem que estar na roça, quando o sol tá mais ou menos ali [apontou], é metade da manhã, hora de dar um pequeno descanso para tomar uma água..., O sol em cima da cabeça, hora de almoço, para tudo e vai descansar. Quando o sol tiver ali [apontou] hora de voltar pra roça e terminar o serviço, e quando o sol tiver lá quase perto do fim, já hora de voltar p casa, tomar banho, jantar e conversar com os vizinhos (Entrevista realizada com Leopoldo da Silva em novembro de 2019).

É forma própria de contar e marcar o tempo, orientados pelos astros, de dia pelo sol e a noite pela lua. "Esses saberes são o resultado de uma coevolução entre as sociedades e seus ambientes naturais"[5] (p. 38). É a "ciência do concreto" são todos os saberes sobre a natureza[5] (p.68). Ciência do concreto porque envolve o contato e a prática milenar, os indígenas conhecem na prática sobre muitas espécies da natureza é um saber concreto e isso fica claro nas palavras do seu Leopoldo da Silva:

O mundo, o mundo é muito bonito, e nós não, nós apenas vivemos na sobre a terra prá acompanhar o mundo. Tem pessoas que estraga o mundo, muitas vezes queima a natureza, corta as árvores, tem pessoas que corta, queima errado. Porque nós moramos perto da árvore, a gente cuida das plantas, cuida das árvores (Entrevista realizada com Leopoldo da Silva em novembro de 2019).

Destaca-se aqui o cortar e o queimar errado, visto que, os indígenas possuem bastante conhecimento sobre a época certa, tanto de podar, quanto de cortar árvores evitando o desperdício, baseado no ciclo lunar. Os indígenas usam técnicas de aceiro para controlar a queimada em seu território. Possuem um plano "muito preciso de queimadas para criar zonas que servirão de barreiras de fogo, quando a época é mais seca"[5] (p. 75). O gerenciamento do território se dá em função do conhecimento sobre as relações e interações entre as espécies.

Há uma diversidade de conhecimentos, saberes, de epistemologias nas relações entre os indígenas e natureza. As sociedades da natureza percebem os lugares como ambientes produtores de ensinamentos de pensar e estar no mundo[3]. As palavras de Tristão são corroboradas por Kopenawa e Albert[15]:

Nossos pensamentos se expandem em todas as direções e nossas palavras são antigas e muitas. Elas vêm de nossos antepassados. Porém, não precisamos, como os brancos, de peles de imagens para impedi-las de fugir da nossa mente. Não temos de desenhá-las, como eles fazem com as suas. Nem por isso elas irão desaparecer, pois ficam gravadas dentro de nós (p. 75).

O professor Délio ao falar sobre o que o pai dele lhe ensinava destacou: "o interessante disso é que não tinha estudo, não tinha estudo nenhum, meu pai era analfabeto, não sabia nem ler e nem escrever, mas tinha muito conhecimento e era isso que ele passava pra gente". Kopenawa et al.[15] e Délio mostraram que os indígenas não precisam de papel para deixar registrado seus conhecimentos como os não indígenas, mas que seus conhecimentos são herdados dos seus antepassados e ficam registrados em sua memória.

Para os indígenas, seus saberes advêm dos espíritos que os acompanham que estão dentro de si.

A imagem de Omama disse a nossos antepassados: "Vocês viverão nesta floresta que criei. Comam os frutos de suas árvores e cacem seus animais. Abram roças para plantar bananeiras, mandioca e cana-de-açúcar. Deem grandes festas reahu! Convidem uns aos outros, de diferentes casas, cantem e ofereçam muito alimento aos seus convidados!". Não disse a eles: "Abandonem a floresta e entreguem-na aos brancos para que a desmatem, escavem seu solo e sujem seus rios!". Por isso quero mandar minhas palavras para longe. Elas vêm dos espíritos que me acompanham, não são imitações de peles de imagens que olhei. Estão bem fundo em mim[15] (p. 76).

Os saberes tradicionais indígenas além de vir dos antepassados, dos espíritos, ficam registrados em sua memória. O professor, pós-doutor, Seizer da Silva[16] (p. 19), da etnia Terena, ratifica essa ideia ao refletir: "Reinventamo-nos, estabelecemos novas conexões com outros saberes, nos tornamos Terena com memória cosmológica "cristalizada" nos saberes dos meus avós maternos".

O reconhecimento desses outros saberes, Santos[4] chama de ecologia de saberes e a compreende como um conjunto de epistemologias da diversidade, a prática de saberes.

A ecologia de saberes procura dar consistência epistemológica ao saber propositivo. Trata-se de uma ecologia porque assenta no reconhecimento da pluralidade de saberes heterogêneos, da autonomia de cada um deles e da articulação sistêmica, dinâmica e horizontal entre eles. A ecologia de saberes assenta na interdependência complexa entre os diferentes saberes que constituem o sistema aberto do conhecimento em processo constante da criação e renovação. O conhecimento é interconhecimento, é reconhecimento, é autoconhecimento[14] (p. 157).

A ecologia dos saberes se situa em um contexto cultural ambíguo, porque enquanto o reconhecimento da diversidade sociocultural favorece o reconhecimento da diversidade epistemológica de saber no mundo, todas as epistemologias também partilham as premissas culturais do seu tempo, sendo a crença na ciência como uma forma de conhecimento válido, a mais consolidada[4].

Tristão[2] afirmou que é importante ser flexível na interpretação do mundo dinâmico com economias integradas onde essas comunidades sofrem pressão da economia de mercado e dos impactos no ambiente de onde tiram sua subsistência. Concordamos com Sato e Passos[6] (p. 44) que "a cultura talvez seja a chave de compreensão dos dilemas socioambientais desde que dela emanem as escolhas históricas da civilização humana". Essas compreensões têm levado os educadores ambientais a promover a valorização dos saberes tradicionais, mas é importante estar alerta para não exceder a medida quanto a valorização e acabar essencializando a cultura em função do encantamento[2]. Quando a Educação Ambiental (EA) incorpora narrativas da diversidade cultural, acaba expondo a hierarquização das culturas e a homogeneização imposta pela modernidade, mas simultaneamente ocorre a supervalorização da herança tradicional podendo conferir a elas uma pureza que não existe[2].

A Educação Ambiental é um processo em que os indivíduos e a sociedade se conscientizam de seu ambiente e adquirem conhecimentos, valores, experiências para que sejam capazes de agir e solucionar problemas ambientais[17]. Mas a Educação Ambiental também pode ser entendida como um processo onde os indivíduos constroem valores sociais, habilidades e conhecimento para pensar a conservação ambiental para uso comum e sustentável pela população[18].

Um dos objetivos da Educação Ambiental (EA) é criar e ampliar formas sustentáveis de relações entre a sociedade e a natureza (socioambiental) assim como mitigar os problemas ambientais[18].

Segundo Carvalho[1], a visão socioambiental direciona-se para a racionalidade complexa e interdisciplinar, pensam o ambiente como campo de interações entre cultura, sociedade e parte biótica e abiótica. Essa relação é dinâmica e causa modificações mútuas. Nesse caso, a presença humana é vista como integrante à teia de relações da vida, interagindo no social, natural e cultural.

Para Hall[19] não é possível pensar a natureza independente da cultura, pois cultura é "algo que entrelaça todas as práticas sociais, e essas práticas, por sua vez, como uma forma comum de atividade humana: como práxis sensual humana, como a atividade através da qual homens e mulheres fazem a história"[19] (p. 141-2).

Embora Hall se refira à natureza humana, me atrevo a relacionar e pensar essa natureza como o meio ambiente, pois a relação humana com o meio ambiente depende também de sua cultura. Para Guattari[20], "mais do que nunca a natureza não pode ser separada da cultura e precisamos aprender a pensar transversalmente as interações entre ecossistemas, mecanosfera e Universos de referência sociais e individuais" (p. 25).

Se a cultura é baseada nas ideias da modernidade e do capitalismo, com certeza os recursos ambientais serão explorados até o máximo que as leis permitem, mas se a cultura é baseada no pensamento de interdependência e que o ser humano faz parte dessa natureza, então essa relação pode se tornar sustentável.

Conclusão

A história tem nos mostrado que nosso modelo de sociedade tem sido destrutivo à nossa própria espécie fazendo-nos repensar nosso estilo de vida e buscar soluções em outras formas de viver. As atenções têm sido voltadas para a forma sustentável de viver das comunidades consideradas tradicionais, pois possuem outros valores.

Ponderou-se, nesse estudo, que as comunidades Terena se relacionam com o meio ambiente de forma sustentável, pois em seu modo de vida ainda praticam técnicas sustentáveis aprendidas no decorrer das gerações como a coivara, fazem a rotação de cultura, e se orientam nas fazes da lua. Todo recurso natural utilizado no artesanato ou em construção, como a madeira, tem a hora e o dia certo de retirada, numa fase lunar específica a qual acreditam que a mesma durará mais às intempéries climáticas e ações de cupins e brocas de madeira.

Os indígenas Terena fazem uso comum da terra e dos recursos naturais que lhes restou em seu território. Orientam-se pelo comportamento dos animais para dizer se o ano será chuvoso ou não. Baseados nas chuvas e nas floradas sabem se terão uma boa colheita ou não. Referem-se à natureza como 'mãe provedora da vida', reconhecem que a vida está associada à mata estar em pé, e percebem e explicam a conexão existente entre solo, vegetais animais, insetos e seres humanos.

Baseada nessa percepção, nossa pesquisa produziu uma compreensão da relação de conexão e respeito dos indígenas Terena da Aldeia Lagoinha com a natureza, implícitas no seu estilo de vida, e dessa forma, os saberes tradicionais da etnia Terena podem e devem ser utilizados no desenvolvimento de uma Educação Ambiental decolonial. Decolonial no sentido de entender que a nossa cultura e nossa forma de entender o mundo (ocidental, hegemônico) não é única e nem a melhor.

A Educação Ambiental é entendida como um processo onde os indivíduos constroem valores sociais, habilidades e conhecimentos para pensar a conservação ambiental para uso comum e sustentável pela população, e essas características observou-se no estilo de vida dos "Terenas", dessa maneira, afirma-se que os educadores ambientais precisam considerar que os saberes tradicionais podem contribuir nas reflexões sobre como entender e enxergar a natureza e, o quanto as ações culturais estão interferindo negativamente no ambiente.

Dessa forma, os educadores ambientais devem olhar para a cultura indígena como fonte de aprendizagem, na construção de uma Educação Ambiental decolonial, um espaço dialógico e de inclusão que não tem objetivo de julgar, mas sim compreender a pluralidade de pensamentos outros, de culturas outras, em colaboração com a manutenção e sustentabilidade planetária.

Fontes de Financiamento

Pesquisa financiada com bolsa CAPES/PROSUC.

Conflito de Interesses

Não há conflito de interesses.

Agradecimentos

Ao Cacique Leveson Vicente da aldeia Lagoinha do município de Aquidauana – MS, à CAPES, ao Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Católica Dom Bosco.

Colaboradores

Concepção do estudo: ECMN; HQM.
Curadoria dos dados: ECMN
Análise dos dados: ECMN
Redação do manuscrito original: ECMN
Redação da revisão e edição: ECMN.

Referências

1. Carvalho ICM. Educação ambiental: a formação do sujeito ecológico. 3ª ed. São Paulo: Cortez, 2008.

2. Tristão M. A Educação Ambiental e o pós-colonialismo. Rev Educ Públ. 2014; 23( 53/2): 473-89. Disponível em: [https://periodicoscientificos.ufmt.br/ojs/index.php/educacaopublica/article/view/1748/1318]

3. Tristão M. Educação ambiental e a descolonização do pensamento. REMEA - Rev Eletr Mestr Educ Amb. Edição especial, jul. 2016; p.28-49, Disponível em: [https://periodicos.furg.br/remea/article/view/5958/3681].  

4. Santos, B. S. A gramática do tempo: para uma nova cultura política. 2ª ed. São Paulo: Cortez, 2008.

5. Diegues ACS. Etnoconservação da natureza: enfoques alternativos. In: Etnoconservação: novos rumos para a proteção da natureza nos trópicos. São Paulo: USP, 2000.

6. Sato M, Passos LA. Arte-educação-ambiental. Ambiente & Educação. 2009; 14(1): 43-59. Disponível em: [https://periodicos.furg.br/ambeduc/article/view/1136/446]. 

7. Godoy AS. Pesquisa qualitativa: tipos fundamentais. Rev Admin Empr. 1995; 35(3): 20-9. Disponível em: [https://doi.org/10.1590/S0034-75901995000300004].

8. Meyer DE, Paraíso MA (org.). Metodologias de pesquisa pós-crítica em educação. 2ª ed. Belo Horizonte: Mazza Edições, 2012.

9. Brand A. História oral: perspectivas, questionamentos e sua aplicabilidade em culturas orais. Hist Unisinos. 2000; 4(2): 195-227.

10. Freitas EG, Nishida SM. Métodos de estudo do comportamento animal. In: Comportamento animal. Natal: EDUFRN; 2006.

11. Morin E. O paradigma perdido: a natureza humana. Editora Publicações Europa-América; 1973.

12. Loiola AS, Oliveira SF, Ratts AJP. Objetos, ações e processos naturais: de marcadores espaço-temporais a memórias socioambientais. Rev Depart Geogr. 2011; 21: 66-90. Disponível em: [https://www.revistas.usp.br/rdg/article/view/47231/50967].

13. Seemann J. Mapeando culturas e espaços: uma revisão para a geografia cultural no Brasil. In: Geografia: leituras culturais. Goiânia: Alternativa, 2003.

14. Woodward, K. Identidade e diferença: uma introdução teórica e conceitual. In: Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais. Petrópolis: Vozes, 2000. Disponível em: [http://diversidade.pr5.ufrj.br/images/banco/textos/SILVA_-_Identidade_e_Diferen%C3%A7a.pdf].

15. Kopenawa D, Albert B. A queda do céu: palavras de um xamã yanomami. 1ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.

16.  Seizer da Silva ACS. Kalivôno Hikó Terenôe: sendo criança indígena Terena do século XXI - vivendo e aprendendo nas tramas das tradições, traduções e negociações. 210p. Campo Grande; 2016. Tese de Doutorado [Programa de Pós-Graduação em Educação] – Universidade Católica Dom Bosco, UCDB, Campo Grande, MS. 2016. [https://docplayer.com.br/131048934-Kalivono-hiko-terenoe-sendo-crianca-indigena-terena-do-no-seculo-xxi-vivendo-e-aprendendo-nas-tramas-das-tradicoes-traducoes-e-negociacoes.html].

17. UNESCO-UNEP. International strategy for action in the field of environmental education and training for the 1990s. 1987. Disponível em: [https://unesdoc.unesco.org/ark:/48223/pf0000080583]. Acesso em: 10 ago. 2020.

18. Brasil. Casa Civil. Lei nº 9.795, de 27 de abril de 1999. Dispõe sobre a educação ambiental, institui a Política Nacional de Educação Ambiental e dá outras providências. De 27 de abril de 1999. Disponível em: [https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L9795.htm].

19. Hall S. Da diáspora: identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: Editora UFMG, Brasília: Representação da Unesco no Brasil, 2003.

20. GuattarI F. As três ecologias. Campinas: Papirus, 1990 .