Estado da Arte
Desafio para a Inovação em Fitomedicamentos no Contexto da Indústria Farmacêutica Nacional1
Challenges to the Development of Phytomedicines in Brazil in the Context of the Pharmaceutical Industry
Resumo
Diante da baixa competitividade do setor farmacêutico no País, este estudo analisa a potencialidade dos fitomedicamentos como um nicho estratégico para o desenvolvimento tecnológico deste setor. Dentro deste contexto, foi fundamental o entendimento sobre a importância da inovação em fitomedicamentos no Brasil e a análise do potencial terapêutico e de mercado destes medicamentos. A pesquisa envolveu um amplo levantamento de informações com foco na questão econômica e industrial da área farmacêutica, dos fitoterápicos (constituídos exclusivamente de partes de plantas ou derivados vegetais) e dos fitofármacos (isolados de plantas e utilizados como fármacos ou como fonte de modelos para fármacos). Para tanto, o trabalho foi desenvolvido com base na literatura nacional e internacional e na legislação existente. Apesar de algumas dificuldades identificadas como o cumprimento dos padrões de qualidade e segurança exigidos pela legislação e a necessidade de uma maior articulação entre os profissionais da área e entre as instituições de financiamento, pesquisa e produção, o estudo mostrou que os fitomedicamentos são um nicho estratégico para a capacitação tecnológica local e para uma maior autonomia na elaboração de uma política de medicamentos, propondo ações para o desenvolvimento deste nicho no País.
- Unitermos
- Fitomedicamento.
- Fitoterápico.
- Fitofármaco.
- Indústria Farmacêutica.
- Inovação.
- Desenvolvimento Tecnológico.
Abstract
Considering the low competitivity of the pharmaceutical industry in Brazil, the study analyzed the potential of the phytomedicines as a strategic niche for the national technological development in this area. Within this context, it was essential the understanding about the importance of innovation in phytomedicines in Brazil and the analyses of the therapeutical and market potential of these drugs. The research involved an extensive survey of information focused in the economical and industrial issues of the pharmaceutical industry, of the herbal medicines (composed exclusively of parts of plants or its derivatives) and of the phytodrugs (isolated from plants and used as an active principle or as template for drugs). Therefore, the study was developed considering the national and international literature and the existing legislation. In spite of some difficulties like the fulfillment of the quality and safety standards required by the legislation and the necessity of a higher interaction between the professionals of the sector and between the financing, research and production institutions, the study showed that the phytomedicines are a strategic niche for the local technological capacitation and for a smaller dependence in the elaboration of drugs policies, recommending actions for the development of this niche in the country.
- Key words
- Phytomedicine.
- Herbal Medicine.
- Phytopharmaceutical.
- Pharmaceutical Industry.
- Innovation.
- Technological Development.
Introdução
A abertura comercial ocorrida na década de 90, acompanhada da falta de políticas de apoio ao setor farmacêutico e da falta de articulação entre as políticas de saúde, de ciência e tecnologia e industrial fez com que a indústria farmacêutica nacional diminuísse em muito sua competitividade, com a perda da capacidade de inovação e uma inserção passiva no movimento da globalização. Isto pode ser observado a partir de déficits comerciais elevados na área farmacêutica, o que além de aumentar os custos para o país, nos expõe a riscos de saúde pública e de saúde privada (QUEIROZ; GONZÁLES, 2001). Segundo Magalhães et al. (2003), as importações de farmoquímicos passaram de cerca de US$ 750 milhões em 1990, para quase US$ 1,8 bilhões em 2000. Gadelha (2002), estimou que em 2001 o déficit comercial para a cadeia farmacêutica (medicamentos, farmoquímicos, adjuvantes e intermediários) foi de US$ 2,1 bilhões.
Atualmente, P&D (Pesquisa e Desenvolvimento), tanto na indústria farmacêutica nacional como na multinacional, resumem-se às atividades de menor conteúdo tecnológico, como a adaptação das condições de produção aos insumos locais e o controle de qualidade, muitas vezes limitando-se à formulação e embalagem dos medicamentos. Além disso, a produção é concentrada nos medicamentos finais, com baixa capacidade de produção de fármacos. Segundo Queiroz e Gonzáles (2001), apesar da existência da lei de patente ser uma condição para o investimento das multinacionais no país, elas não têm estímulo para internalizar suas atividades de P&D.
As indústrias nacionais, além das restrições financeiras para os altos custos das atividades de P&D, têm estratégias que visam o lucro em curto prazo e têm dificuldade em exportar porque não conseguem obter poder de diferenciação no setor para competir com as multinacionais. Além disso, devido ao fato da indústria farmacêutica ser uma indústria fortemente baseada na ciência, ela tem grande dependência dos avanços científicos provenientes de universidades e institutos de pesquisa (GADELHA, 1990). Entretanto, segundo Albuquerque e Cassiolato (2000), o aproveitamento das oportunidades geradas em universidades e institutos de pesquisa pela indústria no Brasil é pequeno, dado o baixo envolvimento desta com atividades de P&D e da baixa articulação entre estas instituições. Esta falta de relações sistemáticas deixa universidades, institutos de pesquisa e empresas em espaços separados, reforçando a concepção da ciência como um processo autocentrado.
Dentro deste contexto, é fundamental que um país periférico como o Brasil saiba utilizar suas políticas de forma estratégica para a busca do progresso técnico e científico de acordo com seus interesses, aproveitando o conhecimento e as vantagens locais para que a situação atual de subordinação tecnológica e econômica se modifique. Cassiolato e Lastres (1999), com ênfase na diversidade e no caráter localizado dos processos de aprendizado e com base no Sistema Nacional de Inovação2 , propõem o conceito de Sistema Local de Inovação, que segundo os autores “parece oferecer uma melhor possibilidade de compreensão do processo de inovação na diversidade que se considera existir entre os diferentes países e regiões, tendo em vista seus processos históricos específicos e seus desenhos políticos institucionais particulares”. Dessa forma, o desenvolvimento institucional e as diferentes trajetórias tecnológicas nacionais contribuem para a criação de sistemas de inovação com características muito específicas, que podem ser uma alternativa viável e importante de desenvolvimento econômico.
Enfatizando a importância do caráter local da inovação nesta nova era do conhecimento, Lastres et al. (2002) destacam a biodiversidade brasileira como uma vantagem comparativa de importância estratégica para o país no âmbito global, uma vez que possui uma grande disponibilidade de recursos biogenéticos e existe no país uma grande quantidade de conhecimentos tradicionais acumulados pelas populações locais quanto às aplicações da biodiversidade, além da tradição da ciência na área biológica. Entretanto, os autores enfatizam que para que esta riqueza natural do país efetivamente se torne uma oportunidade, é necessária a intervenção do Estado a partir das políticas relacionadas às diferentes áreas do conhecimento envolvidas.
Com base na teoria da inovação proposta pelo economista austríaco Joseph Schumpeter (1985), que tem embasado toda a literatura existente sobre sistemas de inovação e evolução tecnológica, a inovação pode ser traduzida para a indústria farmacêutica como o desenvolvimento de novos medicamentos ou de novos processos que originam novas tecnologias e que podem levar à melhoria nos medicamentos existentes, possibilitando o tratamento de uma determinada patologia que ainda não tinha alternativas de tratamento com ineditismo ou com maior eficácia, segurança e comodidade posológica. Além disso, podem implicar na expansão ou formação de novos mercados mesmo sem grandes ganhos terapêuticos. É importante destacar que o processo inovativo na indústria farmacêutica é uma atividade altamente dependente de conhecimentos e habilidades interdisciplinares e interinstitucionais que são cumulativas.
Segundo Gadelha (2002), uma vez que a capacidade de inovação é o fator mais importante e estrutural da competitividade da indústria farmacêutica, a situação de dependência tecnológica somente pode ser alterada de uma forma substantiva e em longo prazo a partir de políticas que estimulem o desenvolvimento tecnológico e que forneçam um horizonte de mercado para os agentes produtivos. Com base na necessidade de pensar políticas que abranjam o curto e o longo prazo na área farmacêutica, o Estado tem um papel central na promoção e regulação das inovações na área e no estímulo à competitividade da indústria nacional, através, principalmente, das políticas industrial e de ciência, tecnologia e inovação em saúde, que devem estar bem articuladas entre si, tendo as universidades, o setor produtivo e os institutos de pesquisa papéis fundamentais neste processo. Além disso, deve-se destacar a importância da legislação de propriedade intelectual e vigilância sanitária, que no contexto da globalização, tende a seguir os modelos dos países mais desenvolvidos, quando deveriam ser adaptadas para as condições do país.
Estas políticas determinam o estabelecimento de prioridades e as medidas de regulação da atividade econômica da área, utilizando como ferramentas incentivos financeiros, fiscais e cambiais, garantia de compras governamentais dos novos produtos desenvolvidos, intervenção direta do Estado no desenvolvimento tecnológico, na produção e na transferência de tecnologia, normas e restrições ao desenvolvimento tecnológico e seleção de agentes para os quais os incentivos serão canalizados, de acordo com algum critério específico, acompanhamento e restrição às políticas de preços, controle da publicidade e da divulgação, produção direta, disponibilização de infra-estrutura de C&T (Ciência e Tecnologia), alterações na legislação de patentes e a reserva de mercado em áreas prioritárias (GADELHA, 2002).
Dentro deste quadro geral e levando-se em conta o fato deste setor ter um enorme dinamismo na geração de inovações que podem trazer grandes benefícios para a sociedade quando implementadas adequadamente, podendo melhorar o acesso da população aos tratamentos de que necessitam, aumentar a qualidade dos insumos e serviços de saúde e, consequentemente, melhorar as condições de saúde desta população, constata-se a necessidade de se estabelecer nichos de prioridade, com a identificação e a delimitação de áreas onde o Brasil tem maiores possibilidades de se desenvolver. Neste contexto e buscando melhorar a situação do setor, abre-se o espaço para a discussão sobre o desenvolvimento dos fitomedicamentos no Brasil, aproveitando a imensa biodiversidade e a capacidade técnico-científica instalada na área.
Materiais e Métodos
Considerando que no Brasil há uma escassez de trabalhos científicos com enfoque industrial e tecnológico na inovação na área de fitomedicamentos, foi realizado um esforço de mapeamento dos dados existentes sobre esta área com foco na questão econômica e tecnológica, buscando chegar a uma posição sobre as potencialidades e restrições dos fitomedicamentos. A pesquisa envolveu um amplo levantamento de informações sobre os fitomedicamentos, obtidas a partir de sistematização e análise da literatura nacional e internacional, procurando delinear a importância e o potencial dos medicamentos oriundos de plantas para o desenvolvimento da indústria nacional, além de uma definição mais precisa dos limites conceituais de fitoterápicos e fitofármacos.
Resultados
Os fitomedicamentos são medicamentos derivados de plantas cultivadas ou de espécies nativas, podendo ser obtidos a partir de plantas medicinais3 ou de outras plantas que não têm valor terapêutico previamente definido. O conceito de fitomedicamentos aqui utilizado foi encontrado na literatura englobando os medicamentos fitoterápicos e os fitofármacos (MS, 2001), que, por sua vez, têm as seguintes definições:
- Fitoterápicos: medicamentos cujos componentes terapeuticamente ativos são exclusivamente partes de plantas (caule, folhas, raiz, semente, fruto etc.) ou derivados vegetais (extratos brutos, sucos, óleos, ceras etc.), não tendo em sua composição a inclusão de substâncias ativas isoladas de outras origens, nem associações destas com extratos vegetais. Estão sob a regulamentação de produtos medicinais das respectivas leis nacionais de medicamentos e apresentam as indicações profiláticas ou terapêuticas. Há outras expressões que designam estes medicamentos em publicações estrangeiras como herbal drugs, herbal medicines, medicinals & botanicals, botanical drugs, herbal medicinal products etc. Nos Estados Unidos, assim como na Europa, quando um fitoterápico não apresenta os testes de segurança e eficácia para que seja classificado como tal, é classificado respectivamente como suplemento nutricional e suplemento alimentar.
- Fitofármacos: compostos químicos com atividades terapêuticas, isolados de plantas ou de seus derivados e que podem ser utilizados diretamente como fármacos na formulação de medicamentos, podendo ser alterados por semisíntese para a obtenção de melhor potência, diminuição da toxicidade e modificação da solubilidade. Também são utilizados como fonte de modelos para a síntese de fármacos.
Segundo Gadelha (1990), os paradigmas tecnológicos4 dominantes na indústria farmacêutica são a síntese química e a biotecnologia. Os fitomedicamentos podem ser considerados uma área dentro do paradigma da biotecnologia que alia tecnologias da biotecnologia tradicional, como extração e cultura de tecidos às tecnologias mais modernas da nova biotecnologia, relacionadas à biologia molecular como o melhoramento genético, a conservação de recursos genéticos e a biosíntese combinatória5 . Além disso, este paradigma tem uma complementaridade com a síntese química e com a química combinatória, as quais tem grande importância na otimização das estruturas das substâncias e na produção industrial. Dessa forma, envolve vários processos, desde o isolamento e purificação de substâncias e o screening de extratos de plantas, até o processo do DNA recombinante, dependendo da etapa de desenvolvimento envolvida.
Tentando entender a razão de uma tecnologia ser escolhida em detrimento de outras, Dosi (1984) definiu os fatores sociais, econômicos e institucionais que estimulam as empresas a inovar. Com base neste estudo de Dosi (1984), Achilladelis e Antonakis (2001) e Gadelha (1990) identificaram os seguintes fatores com foco na indústria farmacêutica: avanços científicos e tecnológicos externos à instituição inovadora, infra-estrutura de C&T, disponibilidade ou falta de matéria-prima, demanda de mercado, lucratividade esperada, grau de competitividade, necessidades de saúde e legislação governamental. A intensidade e a interação entre estes fatores através do tempo estimulam a busca da inovação tecnológica pelas empresas e a seleção das tecnologias que serão desenvolvidas dentro das opções de paradigmas tecnológicos possíveis.
Pode-se citar a disponibilidade de plantas medicinais no país como um fator que pode estimular a inovação nesta área. O Brasil tem em sua biodiversidade um grande potencial de moléculas inovadoras, tendo como vantagem competitiva aproximadamente 55.000 espécies vegetais catalogadas (BARATA; QUEIROZ, 1995) que, se tiverem comprovação do seu valor medicinal, poderão ser utilizadas pela indústria farmacêutica como matéria-prima para o desenvolvimento de fitoterápicos e como fonte de modelo para fitofármacos. Além disso, estima-se que apenas 1% das plantas amazônicas foi estudado, tanto do ponto de visto farmacológico, como químico.
Segundo Silva et al. (2001), o Brasil, constituído por vários biomas6, tem uma diversidade de solos e climas que favorece a riqueza e a variedade de tipos de vegetação e espécies da flora distribuídas pelos diversos ecossistemas brasileiros. Além disso, os autores ressaltam que além da biodiversidade, o conhecimento etnobotânico e etnofarmacológico oriundo da miscigenação da população brasileira também é uma vantagem importante no processo de desenvolvimento de programas e projetos de pesquisa em plantas medicinais que visam o fortalecimento do país na área e o aproveitamento deste recurso de forma sustentável.
Uma vez que os fitomedicamentos envolvem os fitoterápicos e os fitofármacos, estes dois tipos de medicamentos derivados de plantas são aqui discutidos com abordagens específicas, apesar de ambos necessitarem de padrões elevados de desenvolvimento científico e tecnológico para atingir os requisitos de qualidade exigidos pela legislação vigente, e que garantem a eficácia, a segurança e a confiabilidade para a utilização dos mesmos. Os fitoterápicos seriam um novo nicho de mercado e uma possibilidade para a diversificação da indústria farmacêutica nacional, sendo que as estratégias de saúde públicas e privadas têm considerado esta área como prioritária para investimento (MS, 2001 e MCT, 2002). De maneira complementar e numa perspectiva mais ambiciosa, a descoberta de fitofármacos seria fruto de um investimento maior em pesquisa e desenvolvimento em longo prazo, que é de importância fundamental para que o país comece a criar as bases de ciência e tecnologia para que possa inovar com a descoberta de novos medicamentos a partir de modelos encontrados nas plantas medicinais de sua biodiversidade, assim como é realizado nos países desenvolvidos.
Harvey (2000) ressalta que é estimado que a Terra tenha um universo de aproximadamente 250.000 espécies de plantas superiores7 e que somente em torno de 10% destas foram testadas para a identificação de sua atividade biológica, sendo o percentual ainda menor para as que foram testadas em programas de screening pela indústria farmacêutica. Segundo Raskin et al. (2002), no final do século 21, 11% dos 252 medicamentos considerados como essenciais pela Organização Mundial da Saúde (OMS) tinham sido originados a partir de plantas. O maior impacto recente entre os medicamentos derivados de plantas foi a descoberta de importantes medicamentos contra o câncer como o Taxol (paclitaxel), vinblastina, vincristina e camptotecina.
Assim como as tecnologias evoluem, de certa forma estimuladas pela demanda e pela concorrência, as pressões para que as plantas se defendam de outras plantas, fungos, vírus, insetos e predadores herbívoros, têm gerado a evolução das mesmas, e selecionado vias metabólicas que geram compostos complexos com alto valor adaptativo contra estes agentes. Desta forma, as plantas são um enorme laboratório de síntese orgânica, gerado a partir de milhões de anos de evolução e adaptação sobre a Terra, que tem grande potencial para atender à necessidade de medicamentos para patologias complexas, as quais ainda não têm tratamento ou que sejam mais específicos, eficazes e seguros. Entretanto, para maximizar o potencial destes recursos vegetais como fonte concreta para os cuidados com a saúde, devese ter em conta fatores associados com a segurança, eficácia e qualidade destes medicamentos.
Segundo Farnsworth (1988), existem aproximadamente 119 princípios ativos extraídos de plantas superiores utilizadas como medicamentos no mundo que foram obtidos de menos de 90 espécies de plantas. Destes 119 medicamentos, 74% tem o mesmo uso ou uso relacionado às plantas das quais eles são derivados, mostrando a importância da medicina tradicional como um guia para a descoberta de novos medicamentos. Calixto (2000) ressalta que entre as maiores multinacionais, 17 têm programas na área de produtos naturais e 14 comercializam medicamentos que foram desenvolvidos a partir de produtos naturais, o que pode indicar a importância das plantas medicinais na descoberta de novos princípios ativos, seja por utilização direta, hemi-síntese ou síntese. É importante ressaltar que mesmo plantas que não sejam medicinais ou que são tóxicas, têm potencial para serem utilizadas por estas empresas.
Siani et al. (2003) destacam que os fitoterápicos normalmente são utilizados pela população no tratamento de doenças crônicas por serem mais bem tolerados e por possuírem menos efeitos colaterais. Entretanto, ainda existe uma resistência no uso destes medicamentos para doenças mais graves, sendo oficialmente aceitos apenas os fitofármacos. Os fitoterápicos são mais utilizados na atenção básica (ex: inflamação, micose, diarréia). Esta abordagem deve mudar a partir do momento em que estes medicamentos começarem a apresentar os testes completos de segurança e eficácia exigidos pela legislação pois com isso certamente passarão a ser aceitos de forma mais ampla pela classe médica.
Nos últimos anos tem surgido um maior interesse pelos fitoterápicos devido à aceitação da visão holística de tratamento que atribui o surgimento de muitas doenças complexas como diabete, doenças do coração, câncer e desordens psiquiátricas, a uma combinação de fatores genéticos, ambientais e comportamentais. Além disso, o aparecimento de resistência a antibióticos e a medicamentos contra o câncer também pode ser considerado um fator que tem levado a um maior interesse por estes medicamentos. A medicina chinesa e a indiana (ayurveda), por exemplo, acreditam que estas doenças complexas devem ser tratadas com combinações de medicamentos botânicos e não-botânicos, utilizando uma abordagem que enfatiza o efeito potencial mútuo de diferentes componentes de misturas medicinais complexas (RASKIN et al., 2002).
Os fitoterápicos são misturas complexas de vários compostos químicos ativos biologicamente, que muitas vezes não são possíveis de serem isolados e cujas atividades farmacológicas muitas vezes não são possíveis de serem identificadas (CORDELL, 2000). A separação destes compostos é muito difícil ou não custo-efetiva, e, muitas vezes, elimina o efeito terapêutico combinado de muitos compostos ou gera uma substância que sozinha é tóxica. Dessa forma, os efeitos sinérgicos e os aditivos dos diferentes componentes de uma mesma espécie, ou de várias plantas, são os responsáveis pela atividade biológica. Não obstante, dificuldades adicionais estão presentes nos estudos clínicos, estudos farmacocinéticos e na proteção patentária destes medicamentos. Segundo Siani et al. (2003), devido ao fato de raramente os princípios ativos responsáveis pela atividade farmacológica serem conhecidos, o controle de qualidade, a padronização e a estabilidade destes medicamentos se tornam tarefas bastante complexas, embora possíveis principalmente por causa dos avanços nos métodos analíticos de alta resolução.
Tanto os avanços nos paradigmas científicos como nos paradigmas tecnológicos são possíveis ao longo do tempo devido ao acúmulo gradual de conhecimento que num certo momento torna possível o entendimento de fenômenos que antes eram incompreensíveis, à introdução de novos instrumentos científicos e ferramentas utilizados para a solução de problemas e à interação entre disciplinas que abrem novas perspectivas para o estudo e para as interpretações. No caso dos fitomedicamentos, a partir dos estudos de Farnsworth (1988), Raskin et al. (2002) e Seidl (1999), é possível ter uma idéia das principais dificuldades em relação à utilização de plantas como fonte para o desenvolvimento de novos medicamentos eficazes e seguros para garantir a aceitação pela classe médica e as principais soluções que tem surgido para que este objetivo seja alcançado:
1. Incerteza na obtenção de quantidades suficientes do material de plantas para a realização dos testes
Existem hoje novas tecnologias que permitem obter a planta como matéria-prima industrial, como o cultivo, a cultura de tecidos de plantas, a genética combinatória e abordagens sintéticas diretas. Além de oferecer uma fonte segura de metabólitos que ocorrem naturalmente, estas tecnologias podem ser usadas para produzir mais diversidade química. A genética combinatória tem permitido compreender a biologia molecular por trás da produção de metabólitos secundários em plantas e a clonagem molecular tem revelado muitos genes que parecem codificar enzimas e que combinados, produzirão cada vez mais diversidade química. Utilizando a abordagem da biossíntese combinatória, as vias metabólicas das plantas podem ser manipuladas pela alteração das condições da cultura ou pela adição de agentes químicos para aumentar a quantidade de compostos com validade comercial, para criar bibliotecas de compostos para o screening e para gerar metabólitos secundários a partir da adição de agentes químicos que estimulam in vitro a expressão de vias metabólicas diferentes, fornecendo uma maior quantidade de metabólitos secundários do que os extratos clássicos da planta.
2. Variação biológica de lote para lote nos medicamentos de plantas
Segundo Raskin et al. (2002), a falta de reprodutibilidade da atividade de mais de 40% dos extratos de plantas é um dos maiores obstáculos no uso de plantas para a descoberta de novos medicamentos uma vez que as atividades detectadas nos screenings freqüentemente não se repetem numa segunda extração e teste da mesma planta. Além disso, os perfis bioquímicos de plantas cultivadas em diferentes estações, períodos do ciclo de vida e locais variam muito. Os autores propõem que, uma vez que os fatores ambientais e genéticos afetam muito a composição bioquímica dos extratos de plantas, a produção de fitoterápicos necessitará de monoculturas uniformizadas geneticamente, de plantas crescidas em condições totalmente padronizadas para assegurar a consistência bioquímica e para otimizar a segurança e a eficácia em cada safra. Os autores dizem que é improvável que as plantas crescidas no campo encontrem os padrões de qualidade para os fitoterápicos e que o desenvolvimento de sistemas de cultivo baseados em estufas para a alta qualidade dos vegetais durante o ano todo são muito mais apropriados. Sendo assim, o processo para a padronização de misturas fitoquímicas complexas deve envolver da semente ao comprimido e todos os lotes, um desafio não encontrado na síntese química ou no processo de extração de um composto único.
3. O HTS7 é favorável a compostos únicos
O HTS favorece compostos únicos por causa da dificuldade na utilização de misturas complexas como os extratos de plantas, nas quais as moléculas bioativas de interesse normalmente são escondidas por pigmentos e polifenóis que interferem com os screenings. Harvey (1999) coloca que os extratos podem ser processados, antes de serem utilizados nos bioensaios, para remover grande parte dos compostos reativos que podem causar resultados falso-positivos. Entretanto, pode-se dizer que ainda são necessários novos métodos de screening que sejam compatíveis com misturas complexas.
4. Faltam tecnologias que proporcionem o isolamento e a caracterização mais rápidos
Faltam tecnologias rápidas e eficientes para isolar e caracterizar novas entidades químicas, principalmente as que aparecem em pequenas quantidades. Além disso, deve-se ressaltar que existe dificuldade na elucidação das atividades de certas estruturas presentes nos extratos. Entretanto, a estratégia de estimular as vias metabólicas a partir da exposição a diferentes formas de stress, locais, climas, microambientes e estímulos físicos e químicos; permite alterar a quantidade dos metabólitos secundários bioativos que não podiam ser detectados anteriormente em screenings, por aparecerem em baixa quantidade.
Diante das dificuldades apresentadas sobre a utilização de plantas como matérias-primas para a fabricação de medicamentos, pode-se dizer que existe uma grande complexidade na cadeia de desenvolvimento de fitomedicamentos, com o envolvimento de profissionais de diferentes áreas do conhecimento como agrônomos, farmacêuticos, químicos, botânicos, médicos, biólogos, antropólogos, etc. Segundo Siani et al. (2003), a cadeia de desenvolvimento de um fitomedicamento que segue o percurso “da planta ao medicamento” pode ser dividida em 3 áreas mestras: botânico-agronômica (levantamento, coleta e manejo), químico-farmacêutica (química, formulação) e biomédica clínica e pré-clínica (farmacologia, toxicologia e clínica). As diferentes etapas da cadeia de desenvolvimento de um fitomedicamento dificilmente são executadas por um mesmo agente e não necessariamente ocorrem seqüencialmente, sendo por isso, de extrema importância o gerenciamento das mesmas para que elas tenham continuidade, inclusive com a inclusão do setor produtivo e as agências de fomento como participantes na execução e financiamento destas etapas, atendendo à necessidade de interdisciplinaridade e interinstitucionalidade do setor.
Segundo Pavarini et al. (2000), o mercado internacional de produtos de plantas medicinais vem se expandindo há duas décadas e ainda não apresenta sinais de enfraquecimento. É possível ter uma idéia do potencial econômico dos fitoterápicos principalmente a partir do estudo realizado por Laird e Pierce (2002), que mostra que o mercado mundial de fitoterápicos foi de 19,4 bilhões de dólares em 1999, o que representava em torno de 6% do mercado mundial de produtos farmacêuticos neste mesmo ano.
Entretanto, segundo Sant’Ana (2003), se forem acrescentados a estes valores os resultados da economia informal de utilização popular de plantas medicinais nos países em desenvolvimento, eles serão ainda maiores. Grande parte do mercado mundial de fitoterápicos está concentrada nos países da Europa, sendo que a Alemanha é o maior mercado mundial, com vendas de US$ 3 bilhões em 1994 (FERREIRA et al., 1998). É importante destacar que esta estimativa do mercado também pode estar imprecisa devido às diferentes classificações sobre fitoterápicos no mundo.
Raskin et al. (2002) atribuem o aumento da demanda por suplementos nutricionais nos últimos anos a fatores que incluem o envelhecimento da população, a tendência à automedicação, a preferência da população pelos tratamentos preventivos, a descrença na terapia médica tradicional e a percepção de que o natural é saudável e que os medicamentos de plantas têm menos efeitos colaterais. O grande consumo de fitoterápicos na Alemanha pode ser devido à importância e prioridade dada ao assunto pelo país, com os cursos de medicina e farmácia tendo disciplinas específicas sobre fitoterápicos e exigindo que os alunos tenham experiência nesta área. Além disso, profissionais altamente qualificados se interessam pelo assunto, o que estimula a realização de um elevado número de pesquisas científicas (PAVARINI et al., 2000).
Diante da contínua necessidade de lançamento de novos medicamentos no mercado para se manter competitiva, a indústria farmacêutica multinacional tem mostrado um grande interesse pelos fitoterápicos e fitofármacos. Ferreira et al. (1998) citam uma importante movimentação destas grandes multinacionais farmacêuticas em direção à compra de empresas produtoras de fitoterápicos ou à expansão de suas atividades nesta direção, o que além de modificar as estratégias de distribuição e marketing das empresas de fitoterápicos, que normalmente são de pequeno e médio porte e não tem recursos para amplas distribuições e para se adequar às exigências do mercado e da legislação, profissionaliza cada vez mais os fitoterápicos nas atividades técnicas e científicas para garantia de sua qualidade, eficácia e segurança, o que pode aumentar a aceitação destes produtos pela classe médica.
Segundo Pavarini et al. (2000), o mercado brasileiro de fitoterápicos em 1998 foi estimado em US$ 566 milhões. Ferreira et al. (1998) destacam que os medicamentos de origem vegetal mais vendidos são de laboratórios multinacionais e na quase totalidade, são obtidos de plantas que não são nativas do Brasil. É importante lembrar que existe uma dificuldade na obtenção de informações que reflitam o mercado real do país pois existe um mercado interno informal e forte que não é contabilizado e nem controlado, onde as plantas, sementes, raízes e folhas são vendidas nas ruas e feiras8 de muitas cidades, e inclui plantas que ainda não tiveram seus princípios ativos identificados.
Entre as plantas que o Brasil importa encontram-se várias das que o Brasil exporta, indicando possíveis re-exportações, como arnica, boldo, sene, ginseng, guaraná, ipecacuanha e algas frescas para a medicina (FERREIRA et al., 1998). Isto pode indicar que o Brasil pode estar exportando várias plantas medicinais que são processadas no exterior, apesar de ter tecnologia para realizar esta operação internamente (ou ainda indicar, que o nome popular é utilizado para distintas espécies tanto exóticas quanto nacionais). O extrato ou o produto, quando processados, agregariam valor ao produto, o que certamente contribuiria para diminuir o déficit comercial na área. Outro problema é que muitas das plantas medicinais comercializadas no Brasil estão ameaçadas de extinção, sendo que sobre muitas não há controle, como, por exemplo, aquelas que são comercializadas em feiras livres. Silva et al. (2001) colocam que a qualidade das informações oficiais relacionadas com o comércio das plantas medicinais não é suficiente para determinar a dimensão real desta atividade e seu impacto sobre os recursos utilizados.
Segundo Barata e Queiroz (1995), a P&D de fitomedicamentos é uma das áreas onde o Brasil poderia ser competitivo. Com o crescente interesse das multinacionais pela área de fitoterápicos, se o Brasil não começar desde já a utilizar seu grande potencial para aumentar a competitividade das indústrias de capital nacional, a situação de dependência estrutural continuará. Se as pequenas e médias empresas nacionais que atuam na área não começarem a investir mais em pesquisa, poderão ficar dependentes das estratégias destas grandes empresas internacionais que estão entrando no mercado de fitoterápicos. Além disso, a tendência de concentração em grandes empresas, com participação crescente das multinacionais farmacêuticas; pode trazer modificações importantes neste mercado, tais como maiores necessidades de investimento em P&D, aumento da qualidade dos medicamentos e técnicas de produção e novos canais de distribuição dos produtos (FERREIRA et al., 1998).
Siani et al. (2003) destacam que ao mesmo tempo em que com esta internacionalização pode haver uma melhoria global na aceitação dos fitoterápicos, com a conseqüente maior aceitação pela classe médica, resultando na não sobrevivência da indústria nacional uma vez que o mercado ficará mais competitivo, disparando maiores disputas por preços e qualidade. Entretanto, os autores ressaltam como uma vantagem o fato da transformação de plantas medicinais em fitoterápicos exigir um investimento financeiro e um tempo de desenvolvimento bem menor em relação aos medicamentos sintéticos, que necessitam de em torno de US$ 350 a 800 milhões e 10 anos de pesquisa. Mesmo com protocolos científicos rígidos e critérios científicos aceitos internacionalmente, estima-se que o desenvolvimento de um novo fitoterápico gire em torno de 2 a 3% do previsto para o desenvolvimento de um medicamento sintético. Segundo Sant’Ana (2003), no caso de um medicamento originado de plantas medicinais o investimento gira em torno de US$ 35 milhões.
Atualmente, a legislação que regulamenta o registro de fitoterápicos é a RDC nº 48, de 16/03/04. As exigências de testes completos de eficácia e segurança desta Resolução têm sido muito polêmicas e consideradas excessivas pelas empresas nacionais do setor. Segundo Siani et al. (2003), elas têm causado vários impactos ao longo da cadeia produtiva, ressaltando a fragilidade técnica e científica de várias empresas que atuavam na área. Ao mesmo tempo, o nível de exigência garante a eficácia e a segurança destes medicamentos e estimula o aumento da competitividade da empresa nacional, ficando esta mais compatível com os parâmetros do mercado internacional, que é o que deve ser buscado pelas empresas nacionais para que elas possam exportar e ter êxito. Se não atenderem aos padrões de qualidade, não investirem em pesquisa e não souberem tirar proveito da vantagem competitiva do país traduzida na imensa biodiversidade, poderão continuar dependentes das multinacionais inclusive neste nicho, desperdiçando uma real oportunidade de desenvolvimento para esta indústria.
Outra questão polêmica é a Lei de patentes brasileira que, por não considerar a descoberta de um novo extrato uma invenção, não permite o patenteamento dos extratos de plantas e substâncias isoladas de plantas, mas permite o dos processos de produção de um extrato e da molécula isolada de uma planta que tenha sido modificada quimicamente.
Em vários países é possível o patenteamento do extrato de plantas e talvez por isso haja tantos casos de patenteamento de produtos da biodiversidade brasileira fora do país, apesar de as misturas de fitoterápicos não poderem ser patenteadas com o mesmo grau de segurança de um medicamento sintético, pois muitas vezes não se sabe as relações de atividade da estrutura e o mecanismo biológico de ação não é único.
Apesar destas limitações e do potencial no país em plantas que ainda não foram pesquisadas, Ferreira et al. (1998) destacam que o Brasil tem fortes grupos de pesquisa em Química de Produtos Naturais e um alto nível de ciência em química, biologia e farmacologia. Segundo os autores, a capacitação científica brasileira atingiu um nível de excelência razoável e os estudos já realizados e os conhecimentos adquiridos devem ser explorados para o desenvolvimento de uma tecnologia própria. Sant’Ana (2003) reforça que o Brasil tem pesquisadores de alta competência nas áreas de farmacologia e química de produtos naturais, ressaltando que a área de toxicologia clínica precisaria ser desenvolvida, pois, atualmente, existem apenas 5 pesquisadores atuando nesta área no Brasil.
Discussão
“Há quem passe pelo bosque e só veja lenha para a fogueira” (Leon Tolstoi)
Diante do mercado mundial globalizado, onde está ocorrendo a especialização das plantas produtivas da indústria farmacêutica de acordo com as potencialidades de cada país ou região, o Brasil precisa se concentrar em atividades de maior conteúdo tecnológico para melhorar a sua situação que hoje é periférica. Com base nisso, no potencial e importância indiscutível dos fitomedicamentos para a saúde e na situação do Brasil que, apesar de possuir uma das maiores biodiversidades do mundo e um grande potencial em pesquisa na área, ainda não conseguiu concretizar um processo coordenado que articulasse toda a cadeia de desenvolvimento de fitomedicamentos e nem traçar políticas efetivas para tirar proveito desta sua vantagem comparativa, cabe dizer que o país pode estar perdendo uma grande oportunidade que já está sendo aproveitada por outros países.
No cenário apresentado, existe o risco de se as pequenas e médias empresas nacionais na área de fitoterápicos não reagirem com a ajuda do Estado para aproveitar este potencial, de em breve este nicho em que o país tem grandes chances de se desenvolver também estar dominado pelas empresas multinacionais, assim como está internacionalizado o mercado de medicamentos sintéticos. As razões atribuídas ao não desenvolvimento de uma ação articulada na área variam desde a escassez de recursos financeiros, que sem dúvida são de importância fundamental, até questões políticas, culturais e gerenciais que se pode dizer que são ainda mais importantes que a questão financeira.
A carência de recursos financeiros para o alto investimento em pesquisa, com o retorno sendo obtido somente no médio e no longo prazo é um fator limitante. Mas é importante destacar que o financiamento, por maior que seja, sem um planejamento e gerenciamento adequados, não é suficiente. Neste contexto, o papel do Estado é fundamental para estimular as empresas farmacêuticas nacionais a investirem em pesquisas na área, atividade que dá mais frutos no longo prazo do que no curto prazo, mas que contribui para o aumento da sua competitividade, aproveitando as oportunidades que surgem nas universidades e institutos de pesquisa a partir da articulação dos interesses na área. Se estas empresas não começarem a tirar proveito desta imensa biodiversidade, o país corre o risco de, ao invés de exportar fitoterápicos, estabelecer-se como importador de matérias primas vegetais e reprodutor de formulações fitoterápicas. É importante também pensar em como estimular as empresas multinacionais a investirem nesta área no Brasil. Um esforço do Estado como regulador de toda a cadeia de fitomedicamentos, estimulando a inovação e direcionando as estratégias de pesquisa públicas e privadas de acordo com as necessidades nacionais e aproveitando as potencialidades naturais do país, poderia redirecionar os bilhões de dólares gastos na importação de medicamentos e fármacos para a promoção do desenvolvimento científico e tecnológico do nosso país, valorizando o componente nacional e diminuindo nossa dependência externa e aumentando o acesso da população aos medicamentos.
Para que as cooperações interdisciplinares e interinstitucionais e a comunicação necessária para que a inovação em fitomedicamentos possa ocorrer, há uma atividade fundamental dentro das universidades e indústrias que é o gerenciamento de projetos. Devido à natureza interdisciplinar da P&D, os diferentes pesquisadores e tecnológos que atuam em cada etapa do desenvolvimento de um fitomedicamento, muitas vezes estão localizados em departamentos e instituições diferentes e nem sempre têm a visão da etapa seguinte do desenvolvimento e nem os meios adequados para a transferência do conhecimento obtido para a etapa seguinte. Para que tenham entre si uma maior conexão e continuidade, é de extrema importância existir uma área ou um agente que seja responsável pela gestão de projetos, coordenando as parcerias necessárias em cada etapa de desenvolvimento, incluindo as questões relacionadas aos direitos de propriedade intelectual. Cabe citar também a importância fundamental da estruturação de um grupo competitivo de empresas que tenham capacidade de realizar as parcerias com pesquisadores desde o início dos projetos.
Com base nisso, propõe-se a criação de um grupo de gestão de projetos de fitomedicamentos que poderia estar ligado às universidades ou ao governo e teria como atribuições coordenar o andamento dos projetos de desenvolvimento tecnológico e auxiliar os pesquisadores na formulação de projetos adequados ao foco empresarial de P&D, com objetivos e metas bem definidos, o valor de mercado do produto esperado, os custos envolvidos e a lucratividade esperada. Além disso, teria como papel coordenar as articulações entre empresas, universidades e institutos de pesquisa em projetos de interesse comum e que tivessem atividades complementares e apoiaria os projetos na elaboração de contratos, negociação de royalties, registro de patentes, acordos de cooperação nacionais e internacionais e na busca de financiamento junto a órgãos financiadores como o BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social).
O estabelecimento de prioridades entre as espécies vegetais que deverão ser estudadas e desenvolvidas é importante para evitar a dispersão de recursos e tornar as articulações entre as instituições mais fáceis, aumentando as possibilidades de se chegar ao medicamento final. As prioridades poderão ser estabelecidas com base em estudos epidemiológicos e de carga de doença para o atendimento às necessidades do SUS (Sistema Único de Saúde) no curto e no longo prazo. Mesmo os fitoterápicos comercializados oriundos de plantas nativas brasileiras que já foram objeto de alguns estudos, precisam de estudos mais aprofundados sobre os efeitos toxicológicos e as propriedades terapêuticas. Para isso precisa haver uma maior flexibilidade dos pesquisadores, reconhecendo a importância da coordenação de esforços rumo aos objetivos de uma política nacional de fitomedicamentos.
Com base no exposto, ficam aqui algumas sugestões gerais de ações na área que poderiam ser implementadas no âmbito de uma política para o setor:
- Rediscussão da lei de patentes com relação aos riscos e benefícios do patenteamento de extratos de plantas e de substâncias isoladas de plantas.
- Criação de políticas de C&T que estimulem a inovação de produtos ou processos.
- Estímulo para que as pequenas e médias empresas de fitoterápicos invistam neste mercado, mesmo que seja através de arranjos entre elas.
- Formação de uma rede de pesquisadores em fitomedicamentos na Internet com informações sobre as atividades que cada um desenvolve, facilitando a comunicação e a articulação entre os mesmos para a busca de parcerias nas diferentes etapas do desenvolvimento de um fitomedicamento.
- Levantamento na literatura, bancos de dados e teses de mestrado e doutorado de todas as plantas medicinais já estudadas no Brasil e das patentes depositadas no exterior para evitar o retrabalho e partir para a exploração e aprofundamento dos estudos que existem.
- Levantamento das informações do conhecimento tradicional sobre plantas medicinais e reunião num banco de dados para ser consultado por pesquisadores e empresas antes que este conhecimento se perca.
- Estímulo à formação de pesquisadores especializados nas diversas etapas da cadeia de desenvolvimento em todas as regiões do Brasil, principalmente nas áreas carentes de toxicologia, farmacologia clínica e farmacocinética.
- Criação de disciplina sobre fitoterapia nas faculdades de medicina, pois a classe médica não sabe dos avanços obtidos nos últimos anos em relação à comprovação científica e ao potencial dos fitoterápicos.
- Estímulo à entrada de empresas nacionais mais competitivas e maiores da área químico-farmacêutica neste mercado.
- Estímulo à parcerias tecnológicas entre empresas, institutos de pesquisa e universidades para acelerar o desenvolvimento de projetos na área no país.
- Apoio à elaboração de monografias de fitoterápicos oriundos das plantas nativas brasileiras.
- Estímulo à criação de instituições-ponte entre a universidade e o setor produtivo como as pequenas empresas de biotecnologia (bancos de extratos e compostos) e ao fortalecimento das instituições públicas que realizam o repasse de tecnologia para o setor produtivo.
- Busca de novas formas de obtenção de recursos financeiros com continuidade para a pesquisa e o desenvolvimento nas universidades e empresas nesta área, mantendo o estímulo à interação entre as instituições e novas fontes de recursos como o BNDES.
- Estimulo à contratação de pesquisadores pelas empresas.
- Adaptação da estrutura jurídico-institucional para uma maior flexibilidade, autonomia, integração e cooperação nas interações entre as universidades, instituições de pesquisa e empresas.
- Criação de projetos para certificação de Laboratórios de P&D em fitoterápicos, assim como projetos para a implantação de POPs (Procedimentos Operacionais Padrão) para todas as atividades da cadeia de desenvolvimento de um fitomedicamento.
- Estímulo à exportação de fitoterápicos processados, com maior valor agregado, ao invés da planta, o que será facilitado com a elaboração das monografias das plantas nativas brasileiras.
- Elaboração de lista de doenças prioritárias atendidas pelo SUS e das respectivas plantas medicinais originárias da flora brasileira para o tratamento nas diversas regiões do país.
- Promoção de workshops para discutir as sugestões acima, com foco nas ações corretivas.
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1. Este artigo foi baseado na dissertação de mestrado defendida pela autora na Escola Nacional de Saúde Pública “Sérgio Arouca”, Fiocruz em julho/2004, sob a orientação do Professor Doutor Carlos Augusto Grabois Gadelha.
2 Segundo Freeman (1995), o Sistema Nacional de Inovação são arranjos institucionais a partir dos quais são possibilitadas a comunicação e a interação para o processo de inovação tecnológica, determinando em grande medida a capacidade de aprendizado de um país e, portanto, aquela de inovar e de se adaptar às mudanças do ambiente. Desta forma, este sistema envolve instituições como as indústrias, as universidades, os institutos tecnológicos e de pesquisa, as agências governamentais e as formas como estas instituições interagem e se comunicam (redes, plataformas, consórcios, etc.). Estes arranjos envolveriam também uma articulação com o sistema de educação, as relações industriais, as políticas governamentais e as tradições culturais de um país.
3 Plantas medicinais são aquelas que têm uma história de uso tradicional como agente terapêutico (MS, 2001).
4 Segundo Dosi (1984), a evolução tecnológica ocorre baseada em paradigmas tecnológicos, que são determinados padrões (derivados das ciências naturais ou de tecnologias materiais) que determinam a direção e os limites de sua evolução, podendo ser mais abrangentes ou mais específicos e setorializados. Um paradigma tecnológico abrangeria um padrão ou modelo existente na área de P&D, que serviria para solucionar os problemas tecnológicos possíveis de serem resolvidos por este padrão.
5 É a manipulação das vias metabólicas das plantas pela alteração das condições da cultura ou pela adição de agentes químicos para aumentar a quantidade de compostos com validade comercial (RASKIN et al., 2002).
6 Os principais biomas existentes no Brasil são: Mata Atlântica, Cerrado, Pantanal, Amazônia e Caatinga.
7 Segundo Cordell (2000), o HTS (high-throughput screening) é uma tecnologia que funciona expondo um alvo molecular ao maior número possível de compostos de grande diversidade para identificar aqueles que têm afinidade específica a ele.
8 Um exemplo é o Mercado Ver-o-Peso de Belém, que é o mais importante da Amazônia.