Resumo
O presente trabalho apresenta a trajetória conceitual e institucional desenvolvida nos últimos 20 anos envolvendo o Centro de Inovação em Biodiversidade e Saúde (CIBS) de Farmanguinhos / Fiocruz, para justificar a inovação em medicamentos da biodiversidade na perspectiva ecológica.
Palavras-chave: Centro de Inovação em Biodiversidade e Saúde; Inovação em Medicamentos da Biodiversidade; Perspectiva ecológica
Abstract
This paper presents the conceptual and institutional trajectory developed over the last 20 years involving the Center for Innovation in Biodiversity and Health (CIBS) of Farmanguinhos / Fiocruz, to justify innovation in biodiversity-based medicines from an ecological perspective.
Keywords: Center for Innovation in Biodiversity and Health; Innovation in Biodiversity-Based Medicines; Ecological perspective
A perspectiva ecológica na inovação em biodiversidade e saúde
A última reunião estratégica do CIBS, de 2025, pretende refletir sobre sua própria sobrevivência, bem como alinhar suas atividades para 2026, considerando os cenários político institucionais de Farmanguinhos, da Fiocruz e do governo, relacionados à perspectiva ecológica que fundamenta a inovação em medicamentos da biodiversidade.
Considerando a relação entre a ameaça climática, a Ciência e o Desenvolvimento Ecológico, constato que o panorama atual de emergência traz a necessidade urgente da adoção de um novo modelo de produção e consumo no mundo, capaz de enfrentar as causas e consequências devastadoras que nos levaram ao atual estado de incertezas e perplexidade sobre o futuro e a própria vida[1].
Por definição, uma perspectiva ecológica deve focar para além dos modelos de produção e consumo voltados para uma economia de baixo carbono descritos nas últimas décadas, na manutenção ou mesmo restauração de ecossistemas e de suas funções, onde a transferência de energia, a ciclagem de nutrientes, a regulação de gases, e a própria regulação climática são envolvidas.
Adotei esta perspectiva anos atrás, para compreender a centralidade da biodiversidade, mais especificamente, da inovação em medicamentos da biodiversidade como sendo o motor ou mola propulsora de uma nova economia e de uma nova política científica ecológica com fortes impactos no meio ambiente e na saúde. Entretanto, tanto essa narrativa quanto os conceitos envolvidos, não surgiram por ocasião da última COP30, em Belém, mas são fruto de uma elaboração contínua durante os últimos vinte anos.
Desde 2006, o Núcleo de Gestão em Biodiversidade e Saúde (NGBS)/ Farmanguinhos/Fiocruz foi organizado para contribuir com a formulação de políticas de Ciência, Tecnologia e Inovação relacionadas, bem como com projetos de desenvolvimento tecnológico e inovação em medicamentos da biodiversidade. Houve, ainda, a participação do NGBS na formulação e gestão de políticas específicas, como no Programa Nacional de Plantas Medicinais e Fitoterápicos e obteve o reconhecimento do Ministério da Saúde em 2008[2,3], requerendo uma estruturação mais robusta do Núcleo. Desta forma, o NGBS passou a organizar uma rede nacional (RedesFito) voltada para a inovação em medicamentos da biodiversidade, permitindo a implantação de políticas e programas elaborados de baixo para cima, a partir dos principais biomas brasileiros. Este modelo organizacional permitiu de forma suis generis a promoção da inovação a partir do conhecimento da biodiversidade no Brasil, crescendo e acumulando experiências participativas em torno de projetos estruturantes com empresas, universidades, comunidades tradicionais, comunidades agrícolas e diversos atores governamentais e não governamentais na Amazonia, no Cerrado, na Caatinga, na Mata Atlântica, no Pantanal e no Pampa. Ao longo dos anos a rede se reinventou, horizontalizando sua estrutura, ganhando autonomia e governança para que seus 30 núcleos pudessem identificar seus Arranjos Eco Produtivos Locais e tocar seus projetos. Hoje, a RedesFitos tem mais de 6000 pessoas inscritas.
Neste mesmo ano, o NGBS organizou o primeiro curso de pós-graduação latu sensu, responsável pela geração do conhecimento respectivo, construindo o debate acadêmico conceitual para formar especialistas capazes de participar ativamente das políticas públicas, organização de redes de inovação, gestão de projetos e assim, por diante. Foi neste ambiente que alguns dos conceitos e definições teóricas foram trabalhados, alinhando-se à duas vertentes da economia: Economia Evolucionária e Economia Ecológica. Foi neste ambiente também que o debate acadêmico nos levou a perceber que os conceitos que envolvem a inovação em medicamentos da biodiversidade, definindo-os como aqueles que se originam na diversidade de espécies, genética e ecossistêmica[4], levam à constatação que mais de 50% dos medicamentos que compõem o atual mercado mundial bilionário tiveram seu desenvolvimento a partir de moldes de origem vegetal e animal. Esta compreensão permitiu, ainda, vislumbrar o potencial do Brasil na liderança de um novo caminho para o desenvolvimento de medicamentos, pois o Brasil é um país mega diverso, com uma flora exuberante contendo pelo menos 25% de toda a flora do planeta. O potencial para se chegar ao isolamento de novas moléculas farmacologicamente ativas é praticamente incalculável, se forem levadas em conta as condições estabelecidas pela Botânica, Genética e Química, aplicadas a um determinado ecossistema. O debate acadêmico nos permitiu adotar novos paradigmas para a promoção da inovação a partir da biodiversidade. Um caminho para o futuro que discute a insuficiência do conceito de sustentabilidade, requerendo uma visão mais ampla: o desafio da perspectiva ecológica!
Nesta trajetória, a Revista Fitos se encarregou da difusão científica de trabalhos com foco e escopo em Inovação em Biodiversidade e Saúde no que se refere à pesquisa, ao desenvolvimento tecnológico e à inovação, bem como na interrelação entre suas diversas dimensões. A Revista Fitos, em 2025, celebra 20 anos de trajetória e 15 anos no modelo virtual, segue a política de acesso aberto da Fiocruz, faz parte do Portal de Periódicos (https://periodicos.fiocruz.br/) e do Fórum de Editores da Fiocruz e contribui de forma inequívoca para a ampliação do debate relacionado com o desafio da perspectiva ecológica para a inovação em medicamentos da biodiversidade.
Também foi contemporânea a criação da plataforma tecnológica de fitomedicamentos, a qual batizamos de Plataforma Agroecológica de Fitomedicamentos, para deixar registrado em seu nome o preceito ecológico a ser observado em suas diversas atividades tais como: o Herbário, hoje parte das Coleções Biológicas da Fiocruz, Banco Ativo de Germoplasma, Viveiro de Propagação de Mudas, Cultivo Agroecológico, Beneficiamento Primário da Massa Vegetal, Banco de Extratos Vegetais Georreferenciados, Caracterização Fitoquímica, Bioprospecção, Bioinformática, Modelagem Molecular e Acoplamento em Receptores.
A prestação de serviços, consultorias técnicas, transferência de metodologias são utilizadas para a obtenção de insumos farmacêuticos vegetais, assim como na participação em projetos de desenvolvimento tecnológico de fitomedicamentos, no âmbito da Fiocruz e no âmbito das RedesFito. Tudo na perspectiva ecológica.
Em 2016, os conceitos e premissas teóricas para a inovação em medicamentos da biodiversidade haviam sido fortalecidos no plano institucional, nacional e mesmo internacional, conforme ficou registrado no 1° Seminário Internacional das RedesFito[4,5].
Em 2018, o NGBS acompanhou a transição da estrutura organizacional de Farmanguinhos, onde teve sua inscrição como Centro de Inovação em Medicamentos da Biodiversidade (CIMB). Considerando a perspectiva delineada no novo paradigma técnico-econômico ecológico, a concepção do CIMB se apoiou na relação entre conhecimento, informação, tecnologia, inovação e biodiversidade, visando contribuir efetivamente para aumentar a capacidade de produção de medicamentos da biodiversidade no Brasil, atendendo as diretrizes estratégicas aplicadas às políticas públicas brasileiras, desenhadas na perspectiva da sustentabilidade, assim como aquelas do Ministério da Saúde[6]. Em 2018, o NGBS é finalmente institucionalizado em Farmanguinhos/Fiocruz como Centro de Inovação em Biodiversidade e Saúde (CIBS).
Destaco ainda algumas realizações que tiveram um grande impacto no âmbito das políticas públicas relacionadas, como foi o caso do Webinário "Política Nacional de Plantas Medicinais Revisitada"[7]. Tal evento reuniu representantes de diversos ministérios do governo, representantes do mundo acadêmico e do conhecimento tradicional, para refletir sobre 10 anos da PNPMF e apresentar uma pauta de sugestões a serem adotadas na retomada do seu Programa. O documento seguiu para a Presidência da Fiocruz e para o Ministério da Saúde.
Um outro destaque foi a realização do "Seminário Internacional Inovação em Medicamentos da Biodiversidade na Perspectiva Ecológica", em 2024[8]. Este evento promoveu um amplo debate estabelecendo as bases para elaboração de uma política de inovação em medicamentos da biodiversidade na perspectiva ecológica.
Esta abordagem se justifica do ponto de vista ecológico, mas também do ponto de vista econômico, uma vez que é possível verificar, seguindo as definições já descritas, que os medicamentos da biodiversidade correspondem a mais de 50% do mercado mundial. Registro aqui que esta parcela do mercado é resultante de um processo de desenvolvimento tecnológico realizado a partir de substâncias, moléculas ou moldes oriundos da diversidade biológica!
A bioprospecção torna-se algo concreto quando, gerando conhecimento, atende as dimensões ambientais, políticas, econômicas e sociais da mega biodiversidade brasileira. Deve ser articulada em rede a partir de cada bioma brasileiro e ter um mecanismo central de gestão, podendo ser sediada em um ministério do governo ou em instituição com atuação nacional de ilibada competência, como a Fiocruz.
Considero que a geração do conhecimento da mega biodiversidade brasileira deve observar em seu programa, não apenas o conhecimento tradicional, tão rico em sua sabedoria, mas também aquele obtido através de instrumental tecnológico, com o objetivo de elucidação estrutural de substâncias, localização geográfica da espécie, identificação botânica, uso farmacológico, definição de receptores, modelagem molecular, dentre outras, compondo e complementando os registros realizados ao longo do percurso da bioprospecção.
Acredito que por todas estas razões e argumentos, a política de inovação em medicamentos da biodiversidade na perspectiva ecológica deverá se pautar na difusão das tecnologias de classe mundial, na agregação de valor aos produtos, bem como nos processos locais de aprendizado. Necessitará, portanto, a vontade política na promoção de mudanças institucionais e organizacionais capazes de estabelecer novos instrumentos de gestão, fomento e de financiamento, ao lado de um novo marco regulatório específico.
Por fim, acredito que para atingir a concretude do desenvolvimento na perspectiva ecológica é fundamental para as instituições brasileiras a tomada de decisão política para encontrar seu próprio caminho, adequando sua realidade histórica e cultural, lidando com os desafios provenientes das desigualdades estruturais internas e internacionais, assim como os desafios relacionados à distribuição social dos benefícios trazidos pelo desenvolvimento.
Os conceitos relacionados à inovação em medicamentos da biodiversidade representam uma base sólida que viabiliza efetivamente o potencial da nossa biodiversidade, transformando o mesmo em inovações, abrindo um novo caminho para o desenvolvimento de medicamentos no Brasil de forma ecológica, inclusiva, distributiva, participativa e soberana.
Referências
- 1Villas Bôas GK. Emergência climática e um novo paradigma: a centralidade da biodiversidade em uma nova era. Rev Fitos 2021; 15(4): 428-431. Disponível em: [https://doi.org/10.32712/2446-4775.2021.1390].
» https://doi.org/10.32712/2446-4775.2021.1390 - 2Brasil. Portaria Interministerial n° 2.960, de 9 de dezembro de 2008. Aprova o Programa Nacional de Plantas Medicinais e Fitoterápicos e cria o Comitê Nacional de Plantas Medicinais e Fitoterápicos. Diário Oficial da União. 10 dez 2008; Seção 1. Disponível em: [https://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2008/pri2960_09_12_2008.html].
» https://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2008/pri2960_09_12_2008.html - 3Brasil. Ministério da Saúde. Portaria n° 1.274, de 25 de junho de 2008. Institui Grupo Executivo para o Programa Nacional de Plantas Medicinais e Fitoterápicos. Diário Oficial da União. 26 jun 2008; Seção 1.
- 4Villas Bôas GK. Inovação em medicamentos da biodiversidade: uma mudança necessária nas políticas públicas São Paulo: Dialética; 2022. 204 p. ISBN: 978-6525229348.
- 5Chesnais F. A crise econômica mundial sem fim: interpretação e consequências Tradução de: Villas Bôas GK. Palestra apresentada no: 1° Seminário Internacional das RedesFito: inovação e biodiversidade na perspectiva da sustentabilidade; Rio de Janeiro, Brasil. Rio de Janeiro: Instituto de Tecnologia em Fármacos-Farmanguinhos, Fundação Oswaldo Cruz; 2016. Disponível em: [https://revistafitos.far.fiocruz.br/index.php/revista-fitos/article/view/669/pdf].
» https://revistafitos.far.fiocruz.br/index.php/revista-fitos/article/view/669/pdf - 6Brasil. Ministério da Saúde. Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). Instituto Tecnológico de Fármacos. Assembleia Geral de Farmanguinhos. Aprova a estrutura organizacional do Centro de Inovação em Biodiversidade e Saúde (CIBS), em 16 de outubro de 2018.
- 7Villas Bôas GK, Santos JPC, Rezende MA, organizadores. Política Nacional de Plantas Medicinais e Fitoterápicos revisitada Rio de Janeiro: Centro de Inovação em Biodiversidade e Saúde (CIBS), Farmanguinhos, Fundação Oswaldo Cruz; 2023. 60 p. [https://doi.org/10.32712/978-65-980644-0-2].
» https://doi.org/10.32712/978-65-980644-0-2 - 8Brasil. Ministério da Saúde. Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). Instituto Tecnológico de Fármacos. RedesFito. Seminário Internacional Inovação em Medicamentos da Biodiversidade na Perspectiva Ecológica [Internet]. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2024 set 12–13 [citado 2025 dez 13]. Disponível em: [https://redesfito.far.fiocruz.br/index.php/eventos/2024/149-2024-09-12-13-seminario-internacional-inovacao-em-medicamentos-da-biodiversidade-na-perspectiva-ecologica].
» https://redesfito.far.fiocruz.br/index.php/eventos/2024/149-2024-09-12-13-seminario-internacional-inovacao-em-medicamentos-da-biodiversidade-na-perspectiva-ecologica
Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
22 Dez 2025 - Data do Fascículo
2025
Histórico
- Recebido
13 Dez 2025 - Aceito
14 Dez 2025
