ETNOFARMACOLOGIA

Cultivando a Saúde: Uma História de Mulheres e Fitomedicamentos num Assentamento do MST no estado de São Paulo

Growing the Health: An History about Women and Phytomedicines on a MST's Settlement in São Paulo

https://doi.org/10.5935/2446-4775.20150003

Ferro, Giacomo1.
1Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Universidade Nova de Lisboa, Lisboa, Portugal

Resumo

A estrada para uma inovação em medicamentos da biodiversidade compõe-se por diferentes experiências, atores e contextos sociais que colaboram quotidianamente para construir um sistema de saúde mais democrático, baseado em novos padrões de desenvolvimento social e ecológico. Com este fim, o trabalho conduzido pela RedesFito promove a criação de um sistema de Arranjos Produtivos Locais (APL) para a produção e a comercialização de fitomedicamentos, visando à preservação e o desenvolvimento das biodiversidades, tão como dos tecidos econômicos e sociais locais.

O artigo reconstrói algumas das etapas que marcaram a história do APL de Itapeva, no sul do estado de São Paulo, onde um grupo de assentadas do Movimento dos trabalhadores rurais Sem Terra (MST) há mais de vinte anos conduz um importante trabalho de educação, produção e distribuição de fitomedicamentos. O texto retratará os momentos mais significativos que contribuíram para a construção de um sistema de práticas e saberes sobre os remédios de origem natural nos assentamentos e ao mesmo tempo, refletirá sobre o peso que o trabalho com os fitomedicamentos teve no contexto, ao fim de um empoderamento político e social da mulher dentro da comunidade.

Palavras-chave:
fitomedicamentos.
mulheres.
saúde.
MST.

Abstract

The path towards the innovation in the "medicines of biodiversity" is composed by different experiences, actors and social contexts that work together daily so as to create a more democratic health system based on new models of social and ecological development. To this end, the work conducted by RedesFito promotes the creation of a system of Local Productive Arrangements (APL) for the production and distribution of phytomedicines, aimed at the preservation and development both of biodiversity and of the local economic and social fabric.

This paper reconstructs some of the milestones that marked the history of the Itapeva APL, in the South of the state of São Paulo, where a group of women of the Movimento dos trabalhadores rurais Sem Terra (MST) has been carrying ahead an important work of education, production and distribution of phytomedicines for over twenty years. The text reconstructs the most significant moments that have contributed towards the creation of a system of local knowledge and practices about natural remedies and at the same time, it reflects on the weight that the work with phytomedicines has had in the end, in this context, towards a political and social empowerment of women within the community.

Keywords:
phytomedicines.
women.
health.
MST.

Introdução

A Fazenda Pirituba constitui um terreno de 17.420 hectares, localizados entre os municípios de Itapeva e Itaberá na região administrativa de Sorocaba, no Estado de São Paulo. Adquirida nos anos cinquenta pelo governo estadual, com o objetivo de implantar um programa de incentivo à triticultura, a partir dos anos oitenta tornou-se alvo das reivindicações de centenas de famílias camponesas afetadas pela então crise econômica e convergidas na luta pela reforma agrária (Roman, 2008). Estas, organizadas no Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), deram início a um período de lutas e ocupações que em pouco menos de trinta anos levaram ao assentamento de mais de duzentas famílias de lavradores e pequenos produtores. Atualmente estas são estabelecidas e reconhecidas legalmente pelas autoridades locais, agrupando-se em seis assentamentos espalhados por todo o território da fazenda, nomeados de agrovilas (Secretaria da Justiça e da Defesa da Cidadania - ITESP, 1998). Cada família de assentados em Pirituba hoje em dia possui uma casa autoconstruída de madeira ou tijolos e o usufruto de quatorze hectares de terreno pelos quais depende o próprio sustento econômico (Andrade, Carvalho e Andrade, 2000). Os cultivos lá implantados são, em sua grande maioria, de trigo, milho e soja, além do feijão, elemento imprescindível na dieta local. Mas tirando esse último, o resto da colheita é destinado à venda e cultivada através da utilização de agrotóxicos, que contaminam o terreno e os aquíferos, incidindo também na saúde dos seus habitantes (Santos e Hennington, 2013; Tordin, 2014).

Mas a Fazenda Pirituba é também o lugar onde há mais de vinte anos, um grupo de mulheres do MST desempenha uma importante obra de educação, promoção e prevenção sobre o tema da saúde, nas comunidades assentadas. Objeto desse trabalho são os fitomedicamentos, já parte de um patrimônio cultural local, em parte arquivado nas últimas décadas com o advento da indústria farmacêutica, mas tornando-se, graças ao seu trabalho, símbolo para um novo paradigma ecológico-social baseado na relação entre ambiente, saúde e comunidade.

De acordo com as metodologias propostas pela análise antropológica (da Matta, 1981; Pina Cabral, 1986; Bianco, 1994), o presente texto nasce de um estudo de campo desenvolvido entre estas mulheres. A primeira intenção era produzir uma etnografia do cotidiano (Magnani, 2009) que descrevesse o conjunto de iniciativas, projetos e estratégias organizacionais adotados por elas no dia-a-dia como grupo e refletisse sobre o valor do seu trabalho a partir da sua particular condição social: a de mulheres e assentadas. No entanto, no campo emergiu um elemento que nos chamou a atenção, ampliando assim as nossas perspectivas analíticas: os fitomedicamentos. Estes representam o verdadeiro anel de conjunção entre a dimensão cotidiana e os diferentes planos sociais, ecológicos e culturais em que intervê, de maneira holística, a obra das mulheres.

Através da utilização de entrevistas abertas ou semiestruturadas, o recolhimento de material documental e audiovisual e da observação participante, tentou-se reconstruir as etapas que contribuíram para a afirmação de um binômio, entre mulheres e fitomedicamentos, que nesta particular comunidade rural assume importantes significados sociais e simbólicos. O recorte antropológico e o interesse para a história do grupo nos levaram a refletir sobre o tema da produção de um conhecimento local sobre os remédios de origem natural. O que tem contribuído no contexto para o desenvolvimento de dinâmicas participativas dirigidas à construção de um modelo de saúde comunitário. Ao mesmo tempo, o artigo visa a analisar o peso que o trabalho com os fitomedicamentos teve num processo político e social da mulher dentro da comunidade, redefinindo as relações de gênero e atribuindo-lhe um papel central na gestão das questões de saúde.

Discussão

Uma herança cultural

Ao final da nossa análise, é importante prefixar que nesta região do Brasil, como em muitas outras, o uso de plantas para fins medicinais tem sempre reificado um sistema de práticas e saberes próprios a uma tradição cultural, codificando ao mesmo tempo papeis e funções sociais dos indivíduos dentro da comunidade (Maluf, 1993).

Nas memórias dos seus atuais habitantes, os usos destas são associados a chás, xaropes ou infusões oferecidos em situações de doença pelas mães e as avós. Pois a veiculação e o consumo de tais remédios restringiram-se sempre a um âmbito familiar ou de vizinhança. Muitas das plantas cresciam selvagens nos quintais das casas, enquanto outras eram apanhadas no mato e nos bosques nos seus arredores. Não todas, no entanto, constituiam a vegetação originária desse bioma local em transição entre Mata Atlântica e Cerrado. Entre as mais comuns encontravam-se as de "cidreira" Melissa offícinalis, "hortelã" Mentha piperita e "mil-folhas" Achillea millefolium, que, juntas com várias outras, constituíam a bases para os remédios caseiros.

Muitos dos conhecimentos relativos às plantas medicinais e aos remédios de origem natural não eram, porém, possuídos de forma geral por toda a população. Ao incorporar saberes e práticas dentro da comunidade eram considerados determinados sujeitos: mulheres, às quais era atribuído um poder de tipo mágico-místico ligado à natureza, as benzedeiras. Práticas curativas e saberes medicinais era, então, expressão de um patrimônio cultural no qual "saúde" e "natureza" coincidiam dentro de um único universo cosmológico de senso feminino.

Fazendo comunidade

A primeira experiência de trabalho coletivo com plantas medicinais nasce em Pirituba no início dos anos noventa, durante o processo de ocupação do quinto assentamento do MST na fazenda.

Este representou um dos momentos mais difíceis da história do assentamento paulista, no qual centenas de famílias camponesas resistiram por mais de cinco meses acampadas em barracos de lona em condições de grave indigência e vulnerabilidade social (Roman, 2008). Os contínuos ataques da polícia e dos jagunços tornavam precária a vida cotidiana do então acampamento e desestabilizavam qualquer tentativa de organização social entre os acampados. Estes, por seu lado, desempenhavam práticas e estratégias de cooperação para suprir os problemas que ameaçavam a comunidade (Turatti, 1999).

Nesta altura, os homens continuavam a trabalhar nas fazendas circundantes para prover ao sustentamento econômico das famílias. Foi então tarefa das mulheres, que durante o dia permaneciam no acampamento, organizar os grupos de trabalho que providenciassem às necessidades primárias da população (Honório, 2005).

Como refere Dona Nazaré, que presenciou, como assentada e militante, os acontecimentos:

"As mulheres se juntaram dentro do acampamento pelas necessidades básicas: para debater; esclarecer os problemas políticos e de organização interna: segurança, educação; pra a alimentação: pra montar a cozinha comunitária... Nós mulheres nos juntamos pra construir a barraca de saúde, para fornecer os remédios pra o povo... A gente se juntou para se ajudar uma com a outra e ao mesmo tempo ajudar o povo: juntamo-nos para as necessidades básicas da comunidade!" [Entrevista á dona Nazaré, membro da Cooplantas, Agrovila V, Fazenda Pirituba (SP), Março 2014].

A escassez de comida e gêneros de primeira necessidade, a falta de água, eletricidade e as precárias condições de higiene e sanitárias do acampamento, aumentaram a propagação de numerosas infecções, sobretudo entre os indivíduos mais jovens. A saúde da população começou, assim, a constituir um objetivo fundamental no debate público entre os acampados e nas estratégias de organização social postas em prática pela comunidade. Foi então instituída uma comissão de saúde, responsável para a resolução das questões médico-sanitárias do acampamento, composta inteiramente por mulheres.

Nesta altura, um grande apoio aos acampados vinha da Pastoral da Saúde do município vizinho, Itaberá, que através da obra das suas freiras, fornecia os medicamentos para a população e ajudava a comissão na sua obra de distribuição. Foi durante o encontro de uma destas freiras com o grupo de mulheres, que os remédios de origem natural começaram a reaparecer e a circular publicamente na esfera de saúde da comunidade.

A freira, da qual a maioria das mulheres hoje não lembra o nome, mostrou o método de fabricação de uma pomada, composta por elementos anti-inflamatórios e cicatrizantes, extraídos das plantas de "rubim" Leonorus sibiricus, "mentruz" Coronopus didymus, "hortelã" Menthapiperita, "canfora" Artemisia camphorata e "abóbora" Cucurbita moschata, e misturados numa base de banha de porco. A pomada, logo renomeada milagrosa, resultava extremamente eficaz contra as feridas e as inflamações da pele e do couro cabeludo causado pelos agentes tóxicos (como referem os entrevistados) presentes no solo dos terrenos ocupados pelos camponeses.

Os efeitos benéficos da pomada foram observados pelos pacientes e por toda a comunidade, estimulando também nas mulheres dos acampamentos vizinhos, um interesse para o trabalho da comissão e para os remédios de origem natural. Começa neste momento um trabalho de educação e formação sobre os fitomedicamentos, finalizado à criação de uma rede de saúde comunitária, baseado na redescoberta dos conhecimentos locais e no compartilhamento das experiências e as memórias pessoais.

As mulheres começaram a discutir sobre as propriedades terapêuticas das diferentes plantas e a aprender novas técnicas de utilização, tratamento e manipulação. Estas levantavam e discutiam publicamente os problemas de natureza sanitária presentes no cotidiano da vida dos acampados, procurando soluções e remédios adequados.

Uma das maiores questões era representada pelo fenômeno da desnutrição que afligia a maioria dos jovens e das crianças e pelo qual as mulheres começaram a produzir uma múlti-mistura vitamínica que fortalecia as defesas imunitárias e supria a escassez de comida. Da mesma forma, para combater o fenômeno da verminose, as mulheres aprenderam a fabricar uma geleia com base em elementos anti-inflamatórios, que era ministrada às crianças juntamente com a comida. Em seguida, foi a produção de xaropes com base em plantas expectorantes (como guaco, hortelã, pulmonária) e anti-inflamatórias (pela maioria plantago e terramicina), em que as mulheres se especializaram, gerando grande demanda na população.

Deu-se início, então, a uma grande produção de remédios caseiros distribuída gratuitamente, de forma privada ou pública. Instituiu-se neste período o Dia da Pesagem, no qual uma vez por mês os ocupantes se reuniam para pesar as crianças da vila e participar na produção coletiva dos medicamentos, distribuídos no fim do dia entre todos os participantes. Este tipo de mutirão, que assumia os significados sociais e simbólicos de um ritual, adquiria uma dimensão de festa popular, no momento em que a criança, subida na balança, demonstrava ter ganhado peso no último mês.

Através desta e outras manifestações de marco comunitário, afirmava-se e revivificava-se no tempo um vínculo de importante valor simbólico entre os acampados e os medicamentos de origem natural. Ao mesmo tempo, estas celebravam implicitamente o trabalho das mulheres, afirmando o peso que estas tinham na organização da saúde dentro da comunidade.

Esta primeira experiência de trabalho coletivo com as plantas medicinais contribui, então, para o resgate de um patrimônio cultural local sobre os fitomedicamentos. Um processo que, todavia, deu-se a partir da interação de uma série de elementos que contribuíram também para uma inovação nos conhecimentos e nas técnicas e uma reelaboração dos seus significados simbólicos e sociais.

O primeiro destes elementos é representado pelo contexto de ocupação em que tal experiência se gerou. Reproduzindo uma condição de precariedade e vulnerabilidade social, o contexto de ocupação influiu nas dinâmicas de divisão social do trabalho e na organização dos grupos dentro da comunidade, contribuindo para o desenvolvimento de estratégias participativas e de cooperação entre os ocupantes.

Um segundo elemento vem representado pelo peso fundamental que o tema da saúde comunitária teve, tanto na afirmação do papel da mulher, como no resgate de um sistema de práticas e saberes a ela tradicionalmente atribuído. Isto sai de um âmbito privado para tornar-se domínio público, inovando-se e adaptando-se, segundo as exigências do contexto.

Finalmente, o papel das plantas medicinais e dos remédios delas derivados representa um importante elemento simbólico no entorno do qual se constroem e veiculam novas formas de ritualidade e redes de sociabilidade dentro da comunidade.

A saúde é coisa de mulher!

Considerando os fatos e os acontecimentos que caracterizaram a sua história, pode-se constatar como o trabalho com as plantas medicinais nas comunidades sem-terra da Fazenda Pirituba, assumiu desde o princípio uma dupla dimensão, de gênero e participativa.

Isto aparece de maneira clara a partir de 1998, quando se estabelece num dos assentamentos da fazenda uma mulher originária do Espirito Santo, a Patrícia Apolinário, militante do MST com uma longa experiência nas questões de saúde e fitoterapia. Desse momento em diante abre-se uma década de grandes avanços na construção do conhecimento e na produção de fitomedicamentos. Um progresso, estreitamente ligado ao percurso de afirmação e emancipação social da mulher nas comunidades da fazenda.

Por um lado, o método de trabalho coletivo consentia às mulheres melhores formas de organização, o que lhe permitia alcançar recursos e objetivos que individualmente não teriam sido possíveis. Por outro, o seu trabalho começou a constituir um serviço cada dia mais essencial para os assentamentos, evidenciando o papel fundamental destas nas questões de saúde comunitária (Honório, 2005). No entanto, esse processo de afirmação começava a incentivar a aparição de dinâmicas conflituais (tanto na esfera pública como na privada), nas relações de gênero dentro da comunidade (Campos, 2003).

Um dos episódios marcantes, neste sentido, remete ao final dos anos noventa, quando a comissão de saúde colaborava com uma associação no-profit de Sorocaba (SP) num projeto de educação sobre as plantas medicinais. Duas por vez, várias vezes por mês, as mulheres de Pirituba prestavam ajuda nas comunidades rurais e urbanas mais desfavorecidas para transmitir o conhecimento adquirido através da própria experiência. Em troca, a associação teria fornecido os equipamentos necessários à construção de uma "ciranda infantil", numa das agrovilas da fazenda. Neste projeto estava envolvida também a cooperativa local, (até então composta e gerida exclusivamente por homens), que teria recebido importantes financiamentos, sem, no entanto, promover alguma atividade.

As testemunhas narram que, uma vez concluído o projeto, os homens resolveram se apropriar do espaço edificado e doado às mulheres para estabelecer em seu lugar o escritório da cooperativa. A comunidade perdeu, assim, um espaço fundamental para a educação dos jovens e das crianças, o que fez mobilizar todas as mulheres do assentamento. A pressão e os protestos foram tão fortes que, em contrapartida, os homens foram obrigados a conceder um pedido até pouco tempo antes inadmissível: abrir a participação das mulheres à cooperativa.

Patrícia Apolinário reconstrói assim toda a história:

"Nessa altura fomos envolvidos por uma ONG de Sorocaba num projeto de troca: nós oferecíamos cursos para as pessoas das favelas ou das pastorais, aonde explicávamos como trabalhar as plantas medicinais na comunidade, o uso, as propriedades. Ensinávamos métodos de cultivo alternativos e também discutíamos com eles o que era o conhecimento deles sobre as plantas, tentando fazer aquele resgate que nós mesmos fazíamos. Em troca desse trabalho eles [a ONG] doariam o material para a organização e a construção de uma ciranda infantil! Mas eles tinham uma parceria também com a Copava [cooperativa do assentamento], ao qual doariam tratores, computadores e muitas outras coisas, naquele período em troca do nosso trabalho... Só que quando a gente ganhou a ciranda, a Copava resolveu pegar esse espaço para montar o próprio escritório e nós ficamos sem espaço para atender as crianças. A indignação foi tanta que começamos a reclamar. Nós queríamos retomar com a Copava uma discussão, pois o nosso objetivo era que as mulheres fossem inseridas dentro da cooperativa para formar um setor onde pudessem desenvolver o artesanato, trabalhar com as plantas medicinais, montar padarias, criar hortas, produzir produtos funcionais e que fizessem bem pra saúde... Fizemos várias reuniões, mas eles não nos aceitavam dentro da cooperativa. Então, tivemos que lutar bastante porque a Copava não permitia mulheres para participar no processo de produção. Depois de muitas reclamações, a Copava resolveu abrir o espaço para as mulheres, e a partir daí abrir espaço para mais sócios, nós perdemos quinze mulheres. Não perdemos, ganhamos! Quinze mulheres que entraram a fazer parte do espaço de produção e decisão política da comunidade!" [Entrevista a Patrícia Apolinário, atual presidente da Cooplantas, Agrovila III, Fazenda Pirituba (SP), Abril 2014].

Grupo de mulheres que atualmente trabalha com fitomedicamentos em Pirituba
Figura 1

Este exemplo demonstra como o trabalho com as plantas medicinais desenvolvido pelas mulheres de Pirituba, começou a desestabilizar o equilíbrio das relações sociais e políticas dentro da comunidade assentada, a partir de uma dimensão de gênero. Mas se por um lado isto constituía um elemento reprodutor de certa conflitualidade, ao mesmo tempo, o trabalho com as plantas medicinais agia, para as mulheres do grupo, como elemento veiculador de significados identitários. Assumindo aquela imagem da "mulher responsável pelas necessidades básicas da população", estas acabaram por adquirir uma consciência sempre maior do próprio papel social dentro da comunidade, em particular pelo que se refere aos âmbitos de saúde e educação.

Um exemplo disso vem também da luta que estas conduziram para o estabelecimento de um Posto de Saúde Familiar (PSF) nos assentamentos. Pois nessa altura (meados da primeira década de dois mil) o acesso às estruturas de saúde pública revelava-se ainda cheio de riscos e complicações para os assentados. Cada um deles cumpria, em Pirituba, entre vinte e trinta quilômetros para chegar ao posto de saúde mais próximo (situado, dependendo dos casos, nas cidades de Itapeva ou Itaberá). Aí, sofria um atendimento de baixa qualidade, condicionado muitas vezes pela estigmatização (e a consequente marginalização) que afetava a figura do sem terra na cidade.

Tendo analisado a situação, o grupo de mulheres escolheu duas representantes de cada agrovila para levar o assunto à frente dos prefeitos e dos secretários de saúde do território e reivindicar a necessidade de um posto de saúde nos assentamentos. Mais uma vez, a tenacidade com a qual as mulheres enfrentaram este desafio, foi recompensada com um resultado histórico, que decretava uma virada nas relações entre administrações locais e "sem terra", reabilitando implicitamente (embora desde um ponto de vista mais simbólico que jurídico) a figura do assentado. Resultado desse foi a criação de um PSF dentro do território da fazenda, que servisse a todos os seus assentamentos.

Ora, ironicamente, o médico lotado em Pirituba revelou-se ser uma mulher, também experiente no trabalho com as plantas medicinais. O contato entre o médico e o grupo levou a uma intensificação e diversificação da produção, ao mesmo tempo a um aumento do consumo de fitomedicamentos entre os assentados.

Através dessa dupla dimensão de gênero e participativa, o trabalho com os fitomedicamentos, constituiu, então, em Pirituba, uma ferramenta de empoderamento social e simbólico da mulher (Campos, 2003). Isto por um lado é fruto do papel fundamental que desenvolveu nas questões de saúde (e educação) pública, através do qual as mulheres puderam redefinir o próprio poder de mediação nas relações políticas dentro da comunidade; por outro lado, graças ao peso que isto teve na construção de um conjunto de imagens, símbolos e representações que contribuíram para a afirmação de uma identidade de gênero. Ainda hoje, quando o sol que queima a roça arde as suas peles, ou as secas levam os seus cultivos; quando a burocracia cria obstáculos aos seus projetos e a falta de recursos impede novos avanços; cada vez que elas sofrem e resistem de forma coletiva, a construção desta identidade, reafirma-se através de uma frase que elas amam repetir: "Ninguém merece! Só Nós!".

Conclusão

Desde 2009, este grupo de mulheres se constituiu em cooperativa. Uma escolha condicionada em parte da necessidade de enfrentar os novos desafios e os projetos para o futuro. Esta ganhou o nome de Cooplantas e atualmente associa vinte duas mulheres e... dois homens! Ao longo destes anos o grupo experimentou grandes avanços no campo da experimentação e da fabricação de produtos fitoterápicos entre os quais se encontram pomadas, infusões, tinturas, xaropes, cremes, geleias, shampoos, sabonetes, óleos etc. Muito embora, hoje como ontem, o grupo continua enfrentando problemas burocráticos e de natureza política, ainda pela maioria conduzíveis a questões de gênero. A cooperativa possui atualmente um total de sete hectares de terreno onde se cultiva uma vasta variedade de plantas medicinais originárias do contexto local. A estes, juntam-se três hortas e um viveiro destinados à produção das mudas.

As mulheres da Cooplantas numa reunião com os representantes da Fiocruz, no âmbito do projeto APL. Fazenda Pirituba (SP)
Figura 2

A Cooplantas colabora com a Fiocruz no âmbito do projeto RedesFito, pelo qual constitui o APL de Itapeva. Entre os objetivos futuros, o grupo aponta a intensificação do trabalho com as plantas medicinais na esfera da agricultura familiar. Para além de trabalho coletivo, as mulheres pretendem promover o cultivo destes nos lotes de produção familiar para criar um retorno econômico para as famílias, baseado em um tipo de produção biodinâmica e agroecológica. Um objetivo ambicioso do qual, no entanto, não pode prescindir o incansável trabalho de educação, formação e inovação sobre os fitomedicamentos que estas promovem cotidianamente dentro da comunidade.

A isso, se junta talvez o maior desafio e desejo, resultante de um projeto apoiado pela Fiocruz, pelas RedesFito, pelo Departamento de Assistência Farmacêutica do Ministério da Saúde e outros atores: a criação de uma farmácia nos assentamentos, para a manipulação e a produção de fitomedicamemtos e a sua distribuição no SUS, nos postos de saúde da região.

Ontem como hoje, as mulheres de Pirituba continuam as suas obras, levando consigo a consciência de cumprir um trabalho diferente, inovador e de qualidade, que olha para a mudança dos atuais padrões de produção, afirmando a necessidade de um modelo agroecológico, e reivindicando a importância de um direito fundamental para o bom desenvolvimento de qualquer comunidade: o direito à Saúde.

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