Estado da Arte

O Processo de Regulamentação do Acesso aos Recursos Genéticos: a Convenção sobre Diversidade Biológica e outros Tratados

The Access to Genetic Resources Legislation Process: The Convention on Biological Diversity and other Treaties

Ferro, A. F. P1*;
Assad, A L. D.2;
Bonacelli, M. B.3
1Programa de pós-graduação em Política Cientifica e Tecnológica do Departamento de Política Científica e Tecnológica, Instituto de Geociências, Universidade Estadual de Campinas - GEOPI/IG/UNICAMP, Cidade Universitária Zeferino Vaz - Distrito de Barão de Geraldo C.P. 6152, 13083-970, Campinas, SP, Brasil
2Pesquisadora associada do Grupo de Estudos sobre a Pesquisa e a Inovação GEOPI/IG/UNICAMP
3Professora do Departamento de Política Científica e Tecnológica e pesquisadora do GEOPI/IG/UNICAMP
*Correspondência:
anaflaviaferro@yahoo.com

Resumo

A Convenção sobre Diversidade Biológica foi aberta para assinatura em 1992 e tem hoje 188 países signatários. Seus principais objetivos são a conservação e uso sustentável da biodiversidade e a repartição justa e eqüitativa dos benefícios derivados de sua utilização, lançando mão dos direitos de propriedade como um dos incentivos à sua conser­ vação. No entanto, há lacunas no texto da Convenção que fazem com que seja considerado vago ­ principalmente em aspectos relacionados a direitos de propriedade, - entrando em conflito com demais fóruns internacionais, como a OMC, a OMPI, a UPOV e a FAO. De modo geral, os conflitos são com relação à obrigatoriedade de consentimento prévio informado dos detentores da biodiversidade e da repartição de benefícios, à necessidade de declaração de origem dos recursos genéticos e do conhecimento tradicional associado para solicitação de patentes, ao tipo de benefício a ser repartido e à adoção de um Regime Internacional de Acesso e Repartição de Benefícios. Há assim a necessidade de que se chegue a um consenso quanto à implemen­ tação das diretrizes da Convenção em consonância com os demais tratados, bem como com os interesses dos diversos stakeholders a fim de garantir a integridade dos recursos biológicos.

Unitermos:
Biodiversidade.
Biotecnologia.
Convenção sobre Diversidade Biológica.
Tratados Internacionais.
Direitos de Propriedade intelectual.
Regulamentação..

Abstract

The Convention on Biological Diversity was adopted in 1992 and has been signed by 188 countries up to now. The main goals of the Conven­ tion are the conservation and sustainable use of biodiversity, and the fair and equitable sharing of the benefits from the use of genetic resources. Property rights are considered one of the main incentives to biodiversity conservation. Nevertheless, many gaps can be found in the text of the Convention, which make it vague in many aspects - especially in those related to property rights, - therefore revealing conflicts between the Convention and other international organizations, for instance the WTO, the WIPO, the UPOV and the FAO. In general, the conflicts are related to the compulsory character of the prior informed consent of the country of origin of genetic resources as well as of the benefit­sharing, to the necessity of disclosing the origin of genetic resources and associated traditional knowledge in patent applications, to the nature of the benefits to be shared, and to the adoption of an International Regime on Access and Benefit­Sharing. Hence, it is urgent that the Convention and the related treaties be implemented in a mutually supportive manner, and that the interests of the many stakeholders are respected so that the integrity of

Key words:
Biodiversity.
Biotechnology.
Convention on Biological Diversity.
International Treaties.
Intellectual Property Rights.
Legislation..

Introdução

A Convenção sobre diversidade biológica (CDB) foi aberta para assinatura durante a Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento (Rio-92), em junho de 1992. Entrou em vigor em dezembro de 1993 e tem hoje 188 países signatários,2 os quais vêm tentando adequar sua legislação às diretrizes da Convenção. A CDB foi criada por iniciativa da ONU e faz parte do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA). A elaboração da CDB foi uma tentativa de suprir a falta de incentivos para internalizar as externalidades3 geradas pelo uso da biodiversidade, cuja disponibilidade depende de seu uso sustentável, assim como da conservação ambiental (OECD, 1995). Seus principais objetivos são a conservação da diversidade biológica, a utilização sustentável de seus componentes e a repartição justa e eqüitativa dos benefícios derivados da utilização dos recursos genéticos.4 Este terceiro objetivo é decorrente da demanda dos países em desenvolvimento, ricos em biodiversidade (AZEVEDO, 2005), porém sem as competências adequadas para obter os benefícios que esta pode proporcionar, muitas vezes sendo expropriados desta pelos interesses dos países que detêm a necessária capacidade técnico-científica, assim como o necessário capital. Normalmente esta exploração está ocorrendo à margem da lei, por meio da biopirataria, não beneficiando populações locais detentoras do conhecimento tradicional associado5 a estes recursos (GURGEL, 2004). Dessa forma, se fez fundamental considerar a necessidade de medidas que, de alguma forma, garantissem uma parcela dos ganhos provenientes da exploração da biodiversidade aos países que a fornecessem.

Nesse sentido, a CDB lança mão dos direitos de propriedade como um dos incentivos aos beneficiários da biodiversidade para promover sua conservação e uso sustentável. Assim, por meio do Artigo 15, estabelece direitos de propriedade sobre recursos genéticos,6 fazendo com que a biodiversidade deixe de ser um patrimônio comum à humanidade e passe a estar sujeita à soberania nacional. A repartição de benefícios proveniente da comercialização de recursos genéticos com os países que os detém é outra forma de encorajar esforços de conservação (BRAGDON; DOWNES, 1998). Além disso, a CDB sugere que o conhecimento, inovação e práticas provenientes de comunidades locais e indígenas são úteis para o uso e conservação da biodiversidade e que, portanto, têm direitos sobre ela, sujeitos à legislação nacional (DUTFIELD, 2002 apud SAMPATH, 2005). Assim, caberia aos governos nacionais reconhecer esses direitos e providenciar mecanismos para o exercício desses direitos para que as comunidades possam ter participação nos benefícios gerados pela comercialização de recursos biológicos (SAMPATH, 2005).

A CDB reconhece, diferentemente dos acordos ambientais internacionais que a precederam, que a biodiversidade, assim como sua conservação, está inserida em um contexto econômico, devendo ser tratadas sob uma abordagem intersetorial que englobe do nível local ao global. (WRI et al., 1992). De forma geral, prevê: a manutenção das condições gerais mais fundamentais para a conservação e uso de recursos genéticos, as diretrizes e as normas coletivas de manutenção de material in situ e ex situ; as formas de cooperação entre participantes de utilização coletiva de recursos genéticos, dos instrumentos de controle, incentivo e financiamento de pesquisa e desenvolvimento de produtos e processos baseados nestes recursos; as responsabilidades dos países em estabelecer políticas de C&T e programas de educação que subsidiem a implementação da Convenção (DAL POZ et al., 2004). No entanto, há muitas lacunas no texto da CDB, principalmente com relação à repartição de benefícios. Como destacado por Sampath (2005), a CDB não estabelece mecanismos diretos de compensação dos países provedores de recursos biológicos - pelo uso destes recursos - que possam ser utilizados especificamente para fins de conservação. Além disso, a CDB não define compensação “apropriada” pelo uso dos recursos genéticos. Finalmente, apesar de serem mencionadas formas de repartição de benefícios, a CDB não traz diretrizes sobre que tipo de benefício deve ser repartido em quais circunstâncias. Dessa forma, seu texto acaba por ser considerado vago, ambíguo e impotente, em muitos aspectos relacionados a direitos de propriedade, entrando em conflitos legais, mesmo que indiretos, com demais fóruns internacionais que tratam de questões relacionadas a este tema.

Possíveis controvérsias da CDB com outros acordos internacionais

Vários fóruns internacionais têm tratado do acesso aos recursos genéticos e a repartição de benefícios advindos de sua utilização, como a OMC,7 o Comitê Intergovernamental sobre Propriedade Intelectual e Recursos Genéticos, Conhecimentos Tradicionais e Folclore (IGC), da OMPI;8 a UPOV,9 a FAO,10 entre outros. As diferenças conceituais entre grandes acordos internacionais, como a CBD e a OMC-TRIPS,11 além da distribuição desproporcional da biodiversidade e das biotecnologias entre os diferentes países, têm sido considerados os maiores impedimentos para a implantação de mecanismos dinâmicos e transparentes de regulamentação e monitoramento do acesso,12 da repartição de benefícios, da transferência de tecnologias, da propriedade intelectual, do financiamento, da biossegurança e outras atividades relacionadas aos recursos genéticos e ao conhecimento tradicional associado (GUPTA, 2004 apud ASSAD; SAMPAIO, 2005). O Quadro 1 permite a visualização de forma sintética das principais características e pontos levantados em cada um desses fóruns.

Dentre os fóruns e tratados analisados, o TRIPS e a UPOV são os que parecem apresentar maiores conflitos com relação a CDB, embora existam argumentos de que não há incompatibilidade jurídica entre eles. Ainda assim, a implementação conjunta da CDB e do TRIPS nos países membros da OMC não tem sido simples. Uma novidade trazida pelo TRIPS é tornar obrigatório aos países signatários garantir a proteção da propriedade intelectual de formas vivas - embora, como visto no Quadro 1, as legislações nacionais possam excluir da patenteabilidade plantas e animais, exceto microorganismos, assim como processos biológicos essenciais para a produção de plantas ou animais, exceto os processos microbiológicos [Artigo 27(3)(b)]. No entanto, de acordo com este mesmo artigo, é necessária a criação de mecanismos efetivos de proteção de variedades de plantas, mesmo que por sistemas sui generis. Este artigo do TRIPS - o qual está em revisão - está relacionado com a CDB no que diz respeito ao acesso aos recursos genéticos, ao conhecimento tradicional associado e à repartição de benefícios. Questiona-se, por exemplo, se os direitos de propriedade intelectual convencionais consistem em um mecanismo satisfatório de proteção do conhecimento tradicional e se os direitos de propriedade intelectual sobre invenções biotecnológicas podem levar à apropriação indevida do conhecimento tradicional.

Quadro 1: Análise comparativa de fóruns internacionais que apresentam alguma relação com a CDB
Fórum e/ou Tratado Principais Pontos Relação com a CDB
FAO/Tratado Internacional sobre os Recursos Fitogenéticos para a Alimentação e a Agricultura Reconhece os direitos soberanos dos Estados sobre seus próprios recursos fitogenéticos; prevê um Sistema Multilateral de Acesso Facilitado e Repartição de Benefícios, viabilizado por um Acordo de Transferência de Material (ATM). O acesso engloba a utilização e conservação na pesquisa, melhoramento e capacitação; a repartição dos benefícios deverá se dar por meio do pagamento de benefícios monetários e não-monetários, intercâmbio de informação, transferência de tecnologia e capacitação.
OMC/TRIPS Objetivos: reduzir as distorções do comércio internacional e fomentar uma proteção adequada aos direitos de PI; os países signatários podem excluir a patenteabilidade de plantas e animais - exceto microorganismos - e processos biológicos essenciais para a produção de plantas e animais - exceto processos microbiológicos. Não exige a declaração de origem dos recursos biológicos para solicitação de patentes; reconhece primordialmente os direitos de PI em detrimento dos direitos soberanos dos Estados sobre os recursos biológicos; não prevê a repartição eqüitativa de benefícios entre titular da patente e provedor do recurso biológico.
OMPI/IGC Foro para debate e diálogo acerca da relação entre propriedade intelectual e os conhecimentos tradicionais, recursos genéticos e expressões culturais tradicionais. Negociação quanto à adoção de um regime internacional e discussão sobre a divulgação da origem dos recursos genéticos e do conhecimento tradicional associado na solicitação de patentes.
UPOV/Convenção Internacional para a Proteção de Novas Variedades de Plantas Objetivos: assegurar que os membros da União reconheçam o desenvolvimento de novas variedades pelos melhoristas garantindo-lhes um direito de PI com base em conjunto de princípios claramente definidos”; prevê uma forma sui generis de proteção intelectual de novos cultivares. Os melhoristas precisam ter acesso a todas as formas de material; a repartição de benefícios é tratada na forma da isenção dos melhoristas*; há preocupação quanto a outras medidas de repartição de benefícios que poderiam introduzir barreiras ao progresso do melhoramento e utilização dos recursos genéticos.
*permite o uso de materiais de propagação da variedade protegida sem autorização prévia para os fins de obtenção de outras variedades
Fonte: elaboração própria

De todo modo, o Conselho do TRIPS tem recebido propostas para que o solicitante de patente que envolva uso de recurso genético tenha que revelar a fonte ou país de origem do material biológico/genético e/ou conhecimento tradicional associado, apresentar provas de CPI13 e o acordo de repartição de benefícios com o fornecedor do recurso biológico. No entanto, ainda não se alcançou nenhum consenso nessa questão (CDB, 2005) estando este assunto na pauta das discussões da 8ª Conferência das Partes da Convenção sobre diversidade biológica, a ser realizada no Brasil em março de 2006. Outro ponto de conflito é com relação ao Artigo 16 da CDB, que trata da transferência de tecnologia a fim de atingir os objetivos da Convenção. Não fica claro se a transferência de biotecnologias, por exemplo, deve ser uma das formas de repartição de benefícios em contratos de bioprospecção e em que condições (SAMPATH, 2005). Este mesmo artigo também trata do impacto que os direitos de propriedade intelectual podem ter sobre o uso e conservação da biodiversidade, ou seja, sobre os objetivos da Convenção.

Em nível nacional são necessárias medidas complementares, que incluem os regimes de regulação - como a Lei de Proteção de Cultivares14 - e políticas de administração de contratos que façam valer as disposições do Artigo 27 dos TRIPS (DAL POZ et al., 2004). No Brasil, o acesso e a remessa de componentes do patrimônio genético e o acesso a conhecimentos tradicionais associados é regulamentada pela MP 2186-16/01. O Decreto nº. 3.945 de 2001, modificado pelo Decreto nº. 4.946 de 2003, criou o Conselho de Gestão do Patrimônio Genético (CGEN)15 no âmbito do MMA, iniciando suas atividades em abril de 2002. Ao CGEN compete deliberar e emitir autorização específica sobre as solicitações de acesso a conhecimento tradicional associado e acesso e remessa16 de componente do patrimônio genético para fora do país para quaisquer das finalidades: pesquisa científica, bioprospecção17 ou desenvolvimento tecnológico. A MP 2186-16/01 dispõe, em seu art. 31, que “a concessão de propriedade industrial pelos órgãos competentes, sobre processo ou produto obtido a partir de amostra de componente do patrimônio genético, fica condicionada à observância desta Medida Provisória, devendo o requerente informar a origem do material genético e do conhecimento tradicional associado, quando for o caso”, ou seja, apresentar anuência prévia, garantia de repartição de benefícios e autorização do CGEN. É neste dispositivo que reside um dos pontos de maior controvérsia, tanto nacionalmente - conforme se verifica no CGEN -, como internacionalmente - conforme se verifica nas discussões no âmbito da CDB, OMPI e OMC. Na prática, no entanto, a medida ainda não foi implementada pelo Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI). É argumentado que a dificuldade reside no fato de que a exigência de qualquer novo requisito à concessão de patentes resultaria no descumprimento, por parte do Brasil, do TRIPS. No âmbito da OMPI, as discussões refletem a falta de consenso entre os Estados membros com respeito ao foro apropriado para debater assuntos relativos a este tema. Os países desenvolvidos sustentam a necessidade de que um Regime Internacional de Acesso e Repartição de Benefícios18 seja elaborado em consonância com, por exemplo, a OMPI e a OMC. Esta posição pretende fazer com que as questões de propriedade intelectual, mesmo aquelas relacionadas à biodiversidade e conhecimentos tradicionais associados, sejam tratadas apenas por estes foros, nos quais o poder de intervenção destes países é bem maior. Os países em desenvolvimento - entre eles o Grupo de Paises Megadiversos (GPM)19 - por sua vez, rejeitam esta posição, pois entendem que a CDB deve ser a referência fundamental quando se tratar da biodiversidade e do conhecimento tradicional associado; inclusive com liberdade para fazer propostas relacionadas aos direitos de propriedade intelectual no âmbito de um Regime Internacional. Neste contexto, é pertinente o comentário de Barbieri (1997):

Também não há uma posição clara para a questão da propriedade intelectual nas áreas de biotecnologia, outro problema polêmico que tende a colocar em campos opostos os países desenvolvidos e os não desenvolvidos que possuem uma grande diversidade biológica, conforme já comentado. A Agenda 21 toca neste assunto de grande importância como quem não quer criar caso com ninguém; ela apenas menciona que nos países em desenvolvimento a proteção inadequada dos direitos de propriedade intelectual é um dos fatores que impede o desenvolvimento e a aplicação acelerada da moderna biotecnologia.

O Quadro 2 mostra alguns pontos de discordância entre os países membros da OMPI com relação às exigências a serem adotadas para a solicitação de patentes.

Quadro 2: Pontos de discordância entre países membros da OMPI com relação às exigências a serem adotadas para a solicitação de patentes
Países em desenvolvimento Defendem a adoção de Grupo Africano20 Brasil Alguns países europeus
Certificado de Procedência Legal (garantindo assim CPI e repartição de benefícios) Defende a impossibilidade de patenteamento de seres vivos Defende o poder controlador do Estado e adoção de um Regime Internacional Aceitam a divulgação de origem como regra internacional, desde que considerada de caráter voluntário, não vinculante
Fonte: elaboração própria

Comentários Finais

O contexto de implementação da legislação de acesso aos recursos genéticos, ao conhecimento tradicional associado e à repartição de benefícios é ainda muito heterogêneo entre os países signatários da CDB. Falta ainda o estabelecimento de diretrizes mais claras e consensuais, principalmente com relação a questões como propriedade intelectual e repartição de benefícios. Como apontado por Ceas et al. (2000, apud SAMPATH, 2005), sendo o TRIPS o tratado mais recente e mais detalhado sobre direitos de propriedade intelectual, este iria prevalecer sobre a CDB, de acordo com o Artigo 30 da Convenção de Viena sobre a Lei de Tratados. Assim, para que seja possível garantir que os países detentores da biodiversidade possam proteger a integridade de seus recursos biológicos e usufruir os benefícios de sua exploração por outros países, se faz necessário que os países signatários da CDB cheguem a um consenso quanto ao tratamento da mesma com demais tratados em vigor, bem como a criação de mecanismos efetivos de implementação de suas diretrizes que levem em consideração os interesses dos diversos stakeholders. Não se trata esta de uma tarefa fácil, merecendo, por isso mesmo, maior concentração de esforços em âmbito nacional e internacional para acelerar a resolução destas questões. O desenvolvimento de uma estrutura legal, institucional, reguladora e administrativa; que possua condições de cumprir os objetivos preconizados na CDB, constitui um dos maiores desafios dos Estados signatários (GURGEL, 2004).

Como argumentado por Assad e Sampaio (2005), do uso tradicional até a disponibilização de um produto no mercado, passando pela comprovação científica, existe um longo e custoso trabalho, que envolve diferentes competências e formas de atuação, muitas delas com enormes riscos técnicos e financeiros. O incentivo a esse trabalho se faz ainda mais importante por se tratar esta de uma situação ímpar, uma vez que a questão de acesso e uso de recursos biológicos apresenta de forma nítida o conflito de interesses entre os países detentores de tecnologia e os que detêm diversidade biológica. Os primeiros buscam consolidar a legitimidade internacional para a apropriação de ativos intelectuais intangíveis, como genes e procedimentos biológicos incorporados em biotecnologias, para garantir os ganhos derivados de seu valor econômico; enquanto os últimos defendem a manutenção de recursos genéticos por meio de legislação cuja especificação de conteúdo científico, tecnológico e inovativo é pouco aprofundada (DAL POZ et al., 2004). Sampath (2005) argumenta que a falta de clareza em alguns pontos da CDB e nas interações desta com outros acordos internacionais - especialmente o TRIPS - acaba por prejudicar atividades importantes, como a bioprospecção, uma vez que as responsabilidades de usuários e provedores da biodiversidade não podem ser definidas sem que se resolvam estes conflitos. A definição clara de regras que orientem a repartição de benefícios, ainda que num ambiente de incerteza e risco elevado, são essenciais para a construção e manutenção de redes de desenvolvimento, dos comportamentos de colaboração e compartilhamento de ativos, de captação de recursos financeiros de diferentes fontes e na diminuição de custos de transação (DAL POZ et al., 2004).

Para que os países megadiversos possam explorar seus recursos, devem desenvolver mecanismos de proteção dos resultados provenientes de suas atividades de pesquisa e desenvolvimento, de modo a garantir benefícios e incentivar quem faz o investimento e realiza a P&D no próprio país. A participação de todos os interessados diretos é essencial, para a elaboração, promulgação e aplicação de políticas, leis, regras e regulamentação de acesso e repartição de benefícios que sejam efetivamente internalizadas nos países detentores de biodiversidade. Os possíveis impactos nas atividades de pesquisa científica e desenvolvimento tecnológico também devem ser atentamente considerados na elaboração de medidas nacionais de acesso e repartição de benefícios. Finalmente, é necessário saber explorar e elaborar enfoques criativos para obter o consentimento e a repartição de benefícios com as comunidades locais e indígenas, detentoras do conhecimento tradicional (CDB, 2005).

Referências

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AZEVEDO, P. F. A Nova Economia Institucional. In: FARINA, E. M. Q.; AZEVEDO, P. F.; SAES, M. S. M. Competitividade: mercado, estado e organizações. Ed. Singular, São Paulo, 1997.

BARBIERI, J. C. Desenvolvimento e Meio Ambiente: as estratégias de mudanças da Agenda 21. Petrópolis, RJ, Ed. Vozes, 3ª edição, 1997.

BRAGDON, S. H. e DOWNES, D. R. Recent policy trends and developments related to the conservation, use and development of genetic resources. Issues in Genetic Resources: i-42, 1998.

CDB - CONVENÇÃO SOBRE DIVERSIDADE BIOLÓGICA. Homepage oficial. Disponível em: www.biodiv.org. Acesso em abril de 2005.

DAL POZ, M. E.; SILVEIRA, J. M. F. J.; FONSECA, M. G. D. Direitos de propriedade intelectual em biotecnologia: um processo em construção. In: Silveira, J. M. F. J.; Dal Poz, M. E.; Assad, A. L. (orgs). Biotecnologia e recursos genéticos: desafios e oportunidades para o Brasil. Campinas, Instituto de Economia/FINEP, 2004.

GURGEL, V. A. Proposta de criação da Agência Na­ cional sobre Diversidade Biológica - ANDB. Centro de desenvolvimento Sustentável. Universidade Nacional de Brasília. Teses/Independent Papers, p. 755-767, 20 de maio de 2004.

OECD - Organisation for Economic Co-operation and Development Saving Biological Diversity: Economic In­ centives. Paris: OECD, 1995.

SAMPATH, P. G. Regulating bioprospecting: institutions for drug research, access, and benefit­sharing. USA: United Nations University Press, 2005.

WRI - World Resources Institute, et al. Global Bio­ diversity Strategy: guidelines for action to save study and use Earth’s biotic wealth sustainably and suitably. Washington DC: World Resources Institute, 1992.

Notas

2 Destaca-se que até o presente momento os Estados Unidos não são signatários da CDB, contudo participam de todas as reuniões da COP, como observadores e estão implementando internamente diretrizes e normativas sobre este tema.
3 Efeitos de uma determinada ação sobre terceiros não diretamente engajados nessa ação (Azevedo, 1997)
4 “...mediante, inclusive, o acesso adequado aos recursos genéticos e a transferência adequada de tecnologias pertinentes, levando em conta todos os direitos sobre tais recursos e tecnologias, e mediante financiamento adequado” (CDB, 2005: art. I).
5 Segundo a Medida Provisória 2.186-16/01, art. 7º, inciso II, conhecimento tradicional associado é informação ou prática individual ou coletiva de comunidade indígena ou de comunidade local, com valor real ou potencial, associada ao patrimônio genético.
6 A CDB adota os termos “material genético” e “recursos genéticos”. O primeiro abrange todo o material de origem vegetal, animal, microbiana ou outra, que contenha unidades funcionais de hereditariedade. Já os recursos genéticos são considerados como o material genético de valor real ou potencial. A legislação brasileira não adota os termos propostos pela CDB e sim o termo “patrimônio genético” - contido na Constituição Federal - que é mais amplo, englobando “a informação de origem genética, contida em amostras do todo ou de parte de espécime vegetal, fúngico, microbiano ou animal, na forma de moléculas ou substâncias provenientes do metabolismo destes seres vivos e de extratos obtidos destes organismos vivos ou mortos” (MP 2186-16/01 Art. 7º, inciso I).
7 Organização Mundial do Comércio
8 Organização Mundial de Propriedade Intelectual
9 Union for Protection of Plant Varieties
10 O Brasil é membro da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), mas até o momento não ratificou o Tratado que trata dos recursos fitogenéticos para alimentação. Esta solicitação está no Congresso Nacional, desde outubro de 2004, tendo recebido voto favorável do relator.
11 Acordo sobre os aspectos de direitos de propriedade intelectual relacionados com o comércio (Trade - Related Aspects of Intellectual Property Rights)
12 De acordo com a Orientação Técnica (nº 01) emitida pelo CGEN, acesso ao patrimônio genético é ‘a atividade realizada sobre o patrimônio genético com o objetivo de isolar, identificar ou utilizar informação de origem genética ou moléculas e substâncias provenientes do metabolismo dos seres vivos e de extratos obtidos destes organismos’. Este conceito é diferente de coleta que é a retirada do organismo, no todo ou em parte, de seu ambiente ou habitat natural.
13 Consentimento Prévio Informado
14 Lei nº. 9.456, de 25 de abril de 1997.
15 Todos os instrumentos jurídicos e a legislação citados estão disponíveis na página eletrônica do Ministério do Meio Ambiente - http://www.mma.gov.br/port/CGEN/index
16 Remessa, de acordo com a MP 2.186-16/01, é o envio, permanente ou temporário, de amostra de componente do patrimônio genético com a finalidade de acesso para pesquisa científica, bioprospecção ou desenvolvimento tecnológico.
17 Método ou forma de localizar, avaliar e explorar sistemática e legalmente a biodiversidade existente em determinado local; tem como objetivo principal a busca de recursos genéticos e bioquímicos para fins comerciais.
18 Os elementos a serem considerados em um Regime Internacional seriam: 1) certificado de origem / fonte / procedência legal, que seria uma espécie de documento que atesta, de uma só vez, a origem daquele recurso genético ou conhecimento tradicional associado, a existência de CPI e a garantia de repartição de benefícios; 2) um sistema sui generis de proteção a conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade; 3) mecanismos de solução de controvérsias e previsão de sanções de diferentes naturezas, pactuadas consensualmente por todas as partes envolvidas.
19 O Grupo dos Países Megadiversos reuniu-se pela primeira vez no México, em fevereiro de 2002. De acordo com a “Declaração de Cancun”, um de seus principais objetivos é lutar pela criação de um regime internacional de caráter vinculante que promova e proteja efetivamente a divisão justa e eqüitativa de benefícios do uso da biodiversidade e de seus componentes. Outras três reuniões ocorreram em Cusco, Peru (2002); em Kuala Lumpur, Malásia (2003); e na Índia (2005), para preparar posição conjunta em favor de um Regime Internacional de Acesso e Repartição de Benefícios.
20 Formado por 53 países africanos membros da OMPI, como Algéria, Angola, Camarões, Cabo Verde, Congo, Egito, Etiópia, Gâmbia, Quênia, Madagascar, Marrocos, Moçambique, Nigéria, Senegal, Somália e África do Sul.