Política e Gestão da Inovação - Perspectiva
Contribuição ao debate sobre o papel da inovação em medicamentos a partir da biodiversidade
Publicado na L'Encyclopédie du Développement Durable http://encyclopedie-dd.org/, França, em 11/03/2016.
- Autores:
- Glauco de Kruse Villas Bôas - Doutor em Ciências da Saúde Pública. Coordenador do Núcleo de Gestão da Biodiversidade e Saúde/NGBS, de Farmanguinhos/Fundação Oswaldo Cruz/FIOCRUZ, Rio de Janeiro. Principal articulador da Fundação Oswaldo Cruz/Ministério da Saúde. Membro do Grupo de pesquisa sobre “políticas e gestão do desenvolvimento de fitomedicamentos” do Conselho Nacional de Pesquisa do Brasil/CNPq.
- Christiane Gilon - Doutora em Sociologia. Socianalista do Centro de Análise das Práticas Profissionais/CAPP. Especialista em Pesquisa-ação e em redes de inovação. Professora pesquisadora do Laboratório Experice - Educação ao longo da vida/ETLV do Departamento de Ciência da Educação, Universidade Paris8, Saint Denis, França.
- Tradução de Maria da Conceição Monteiro – Doutora em Psicologia, Gestora do Projeto Socianálise do NGBS, Farmanguinhos/Fiocruz
- *Correspondência:
- glauco@far.fiocruz.br
Resumo
No momento em que os países estão engajados em acordos internacionais que visam controlar os problemas decorrentes das mudanças climáticas, espera-se que o investimento nas políticas de ciência, tecnologia e inovação representem, na verdade, a ponta de lança do desenvolvimento sustentável. Apresentamos aqui uma breve contribuição da rede de inovação em medicamentos da biodiversidade (RedesFito) para este debate. As inovações das RedesFito nascem nos espaços de Arranjos Eco-Produtivos Locais, situados nos principais biomas brasileiros, reunindo a cadeia produtiva, para discutir e colocar em prática os projetos baseados na perspectiva agroecológica.
Índice
- Introdução
- História das RedesFito
- Quatro projetos estruturantes
- Considerações finais
- Referências
1. Introdução
No contexto complexo de sucessivas crises econômicas e, diante do agravamento da crise climática e, considerando a inovação como a chave do desenvolvimento, algumas questões nos são colocadas: Que tipo de inovação poderia hoje induzir mudanças, à luz do novo paradigma verde? Que tipo de ciências, tecnologias, inovações e práxis são necessárias para defender uma economia sustentável neste novo paradigma?
Em resposta a estas questões, apresentamos uma contribuição das redes de inovação em medicamentos à base de plantas da biodiversidade brasileira, RedesFito. Todavia, antes de apresentar as RedesFito, é necessário descrever um quadro histórico do desenvolvimento sustentável, quarenta anos após a Conferência das Nações Unidas, realizada em Estocolmo e vinte anos após a realização da Eco 92, no Rio de Janeiro. É neste contexto que se situa esta pesquisa–ação.
O documento final da Conferência da Rio+20 descreve uma visão geral do futuro que queremos. Tem por objetivo estabelecer as diretrizes para as políticas de desenvolvimento sustentável, a partir do direito internacional, a saber: a soberania nacional sobre os recursos naturais; um ambiente favorável entre governo, instituições e sociedade civil; o crescimento econômico sustentável; o fomento e encorajamento à inovação, reduzindo a dependência tecnológica nos países em desenvolvimento; a garantia da saúde e melhores condições de vida; a luta contra as desigualdades sociais; a proteção do conhecimento tradicional e cultural; o investimento na capacitação de grupos pobres e vulneráveis; a inclusão social; a promoção do novo modo de consumo e produção sustentável. Ao mesmo tempo, a perspectiva de uma economia verde surge no novo panorama desenhado pela globalização.
A introdução do conceito de sustentabilidade no debate internacional trouxe agregado a discussão semântica sobre a utilização dos termos desenvolvimento, crescimento e progresso, revelando as tensões entre diferentes grupos de interesse (VILLAS BÔAS, 2013). Essa tensão aumenta, à medida em que o conhecimento, considerado um bem comum, e a informação passam a ser privatizados. Para muitos estudiosos, o crescimento, e não o progresso ou a evolução, é essencial para uma economia mundial. Mas para outros, seria possível alcançar um equilíbrio e bem-estar geral, sem um movimento permanente de crescimento gerador de uma poluição contínua (DALY, 1997). As soluções tecnológicas para os problemas devem resolver esta equação diante das ameaças climáticas desordenadas que figuram no quarto relatório de mudanças climáticas (IPCC, 2007). Em 2012, após a Conferência das Nações Unidas Rio + 20, e hoje, após a COP 21, a evidência da aceleração da mudança climática impõe aos governos a questão do desenvolvimento sustentável, criando grande expectativa na adoção de medidas concretas nos programas das nações, em favor do futuro que queremos.
No momento atual de mudanças vertiginosas, a elaboração das políticas de ciência, tecnologia e inovação requer um escopo maior, considerando a importância e centralidade da biodiversidae. O grande desafio atual é a transição para uma economia baseada no desenvolvimento sustentável. Esta transição pode ser analisada sob diferentes abordagens da economia:
- A primeira delas é de caráter liberal (neoclássica) hegemônica onde o mercado, considerado em perfeito equilíbrio, encontra suas soluções.
- A segunda, neoclássica, é mais sensível às questões ambientais e se apoia sobre um sistema de taxas, impostos para compensar a externalidade negativa, a poluição.
De acordo com Ignacy Sachs (2012), uma economia verde somente tem sentido se estiver ligada ao bem estar do conjunto da sociedade. O autor não acredita na "mão invisível" de Adam Smith. Na realidade, o livre jogo das forças do mercado é insensível aos problemas sociais. Diante da urgência de mudar as estratégias gerais de desenvolvimento, Sachs propõe um novo contrato social entre as nações e, dentro das nações, um diálogo entre planejadores, empresários, trabalhadores e sociedade civil, com base no respeito ao meio ambiente, a economia, a segurança alimentar, energética e a cooperação internacional.
- Um terceiro prisma, é aquele da economia evolucionária (NELSON, WINTER, 1982), que se opõe à visão neoclássica, apoiando-se na teoria dos paradigmas Técnico-Econômicos (DOSI, 1982). Os autores da vertente evolucionária reconhecem um novo paradigma "Técnico-Econômico Verde" ou "Teoria da Aprendizagem Verde", onde a indústria, assumindo seu papel de empreendedor, teria o potencial para realizar eco-inovações ao invés de poluir (ANDERSEN, 2008, 2008b, 2010).
- Um quarto prisma, também evolutivo, a economia ecológica, baseia-se na visão entrópica dos recursos naturais e a inexorabilidade da finitude da biosfera. Aqui, crescimento e desenvolvimento são diferenciados. A importância de um novo tipo de inovação é descrita por Georgescu-Reagan (1976).
Segundo Chesnais (2015), um novo modo de produção e consumo relacionam-se, portanto, numa ruptura paradigmática coperniana.
2. História das RedesFito
O Núcleo de Gestão da Biodiversidade e Saúde (NGBS) foi criado por um grupo de pesquisadores brasileiros, em 2006, para elaborar as bases conceituais, uma nova visão de P&D, abrindo um novo caminho para o desenvolvimento farmacêutico no Brasil: a inovação em medicamentos da biodiversidade. As premissas estratégicas (economia verde, teorias de aprendizagem, economia ecológica) apropriadas pelo NGBS, opõem-se às teorias econômicas neoclássicas, incluindo a proposta da economia verde da ONU (Rio + 20) considerado-as como insuficientes e ineficazes ou obsoletas, porque elas não compreendem a relação entre política, desenvolvimento, inovação, tecnologia, informação, conhecimento e meio ambiente.
2.1. A situação inicial
As diretrizes propostas em 2012, durante a Conferência Rio+20, para a formulação de novas políticas públicas, no contexto do desenvolvimento sustentável: afirmam a soberania nacional sobre os recursos naturais num quadro favorável entre governo, instituições e sociedade civil; promovem ainda a inovação e a redução da dependência tecnológica em países em desenvolvimento. Estas ambições seriam absolutamente comprometidas, não fossem as mudanças radicais na indústria farmacêutica.
Uma auditoria conduzida por uma empresa especializada revelou que o mercado farmacêutico mundial, em 2015, ficou em torno de 1,1 bilhões de dólares. Desde o início do século passado até os dias atuais, o desenvolvimento de medicamentos obedeceu à lógica da acumulação, utilizando as inovações, que têm um impacto positivo sobre a saúde, visando o lucro. Os países que possuem uma grande biodiversidade e os países em desenvolvimento têm muitas dificuldades para reduzir seus níveis de dependência tecnológica na indústria farmacêutica e não se lançam em programas de P&D impostos pelo modelo hegemônico.
No caso particular do Brasil, com a industrialização tardia, marcada pela venda sistemática dos laboratórios nacionais à indústria transnacional nos anos cinquenta e sessenta, a indústria farmacêutica foi marginalizada e marcada pelo fosso tecnológico crônico, apesar de sua posição atual, no sexto lugar em relação ao consumo mundial de medicamentos (IMS Health, 2016). O Brasil é dependente de insumos agrícolas, matérias primas e tecnologias necessárias, porque sua indústria farmacêutica está consideravelmente atrasada e encontra-se desprovida de políticas públicas que possam favorecer seu crescimento, inclusive em P&D. Somente duas iniciativas antes dos anos noventa: a criação da Central de Medicamentos (CEME) e a Companhia de Desenvolvimento Tecnológico (CODETEC). A primeira visava o desenvolvimento de medicamentos de origem vegetal e a segunda o desenvolvimento de matérias primas para a indústria farmacêutica nacional. As duas foram eliminadas pelo neo-liberalismo que mudou a economia brasileira nos anos noventa.
2.2 A inovação em medicamentos da biodiversidade
A partir dos anos 2000 foi anunciada uma mudança nas políticas públicas de estímulo à inovação na indústria farmacêutica brasileira. O caminho traçado pela Redesfito iniciou com a elaboração do conceito de inovação em medicamentos da biodiversidade para a condução de uma nova vertente de desenvolvimento. A ampliação dos saberes sobre a biodiversidade acompanha até hoje a história da medicina, da farmácia e da indústria farmacêutica. Historicamente, temos vários exemplos de medicamentos retirados da diversidade das espécies. Podemos citar aqueles retirados de plantas superiores como a morfina, um derivado da papoula, ópio (Papaver somniferum) e a aspirina, um derivado do salgueiro (Salix alba); de fungo, a penicilina (Penicillium notatum) ou aqueles medicamentos de origem animal como por exemplo, o anti-hipertensivo desenvolvido a partir do veneno da cobra jararaca (Bothrops de jararaca), entre outros.
De acordo com a Convenção da Diversidade Biológica (CDB, 1992) os medicamentos da biodiversidade seriam então aqueles que se originam na diversidade genética, de espécies e de ecossistemas. Esta definição foi possível graças ao avanço da microbiologia, da ecologia e da genética, em torno de disciplinas que até o fim do século XIX ainda não estavam organizadas, mas, que ao longo do século XX foram consolidadas. A definição de medicamentos da biodiversidade abrange, em particular, os medicamentos derivados de plantas superiores, com fundamental relação entre genes, espécies e ecossistemas. No caso das plantas, as substâncias farmacologicamente ativas (princípios ativos) estão relacionadas ao nosso metabolismo secundário, que por sua vez é influenciado pelo micro clima no qual vivemos, fatores nutricionais, entre outros (ecossistema). Em outras palavras, o conceito de inovação em medicamentos da biodiversidade define a inovação como um processo histórico, social e dinâmico (VILLAS BÔAS, 2013).
A definição de medicamentos da biodiversidade apresentada acima permite considerar, a inserção no mercado farmacêutico global, os países com elevada biodiversidade, como é o caso do Brasil, considerando que a maioria das espécies farmacologicamente ativas são de origem química ou biológica, obtidas a partir da biodiversidade. Assim, o desenvolvimento de medicamentos da biodiversidade pode ser considerado do ponto de vista ecológico e sustentável, observando as recomendações econômicas mencionadas na introdução deste artigo.
Em 2006, o Núcleo de Gestão da Biodiversidade e Saúde (NGBS) foi criado no Instituto de Tecnologia em Fármacos (Farmanguinhos), da Fundação Oswaldo Cruz (FIOCRUZ), que é uma instituição emblemática no desenvolvimento e produção de medicamentos estratégicos para a saúde brasileira. A institucionalização do NBGS ficou estabelecida, quando representou a FIOCRUZ na elaboração e implantação do Programa Nacional de Plantas Medicinais e Fitoterápicos-PNPMF (BRASIL, 2008).
A implantação deste programa previu a participação do NGBS junto ao grupo Diretor do Ministério da Saúde, também criado para apoiar a implementação dessa política (DIARIO OFICIAL, 2008). Desde o início, o NGBS defendeu uma gestão ascendente bottom up. Considerando a exuberância da biodiversidade brasileira, com suas múltiplas características geográficas, biológicas, econômicas, institucionais e sociológicas, o NGBS propõe uma organização em rede apoiada nos Arranjos Eco-Produtivos Locais (AEPL) em cada bioma brasileiro.
Uma pesquisa-ação realizada por Christiane Gilon e Patrice Ville também contribuiu para o desenvolvimento do conceito da rede (VILLE e GILON, 2013). Assim, durante nove anos de intenso trabalho, partindo da hipótese de que a inovação é um processo dinâmico, social, meio-ambiental e político, o NGBS desenvolveu as seguintes ações com diferentes atores da sociedade brasileira.
- Criação, em 2009, do Sistema Nacional das RedesFito, uma rede (RedesFito) voltada para inovação em medicamentos da biodiversidade, estruturada a partir dos principais biomas brasileiros. As RedesFito promovem as condições necessárias para o gerenciamento das diferentes dimensões do conhecimento tradicional. As RedesFito são acessada, através do portal: http://.redesfito.far.fiocruz.br (reorganizado em 2014).
- Construção de uma base de dados, a Plataforma Agro-ecológica de Fitomedicamentos oferece consultoria e serviços em botânica, genética, química, entre outros.
- Curso de Pós-Graduação em Gestão da Inovação em Fitomedicamentos, desenvolvido em dezoito meses, forma profissionais de diferentes áreas do conhecimento (médicos, farmacêuticos, biólogos...) para conduzir o projeto em rede, em todas as dimensões políticas, econômicas, farmacêuticas, meio-ambientes, social e, principalmente, em Socianálise que tem como proposta a animação das redes.
- Ensino a Distância – EAD
- Grupo de Pesquisa do Conselho Nacional de Pesquisa (CNPq) sobre políticas e gestão da inovação em fitomedicamentos.
- Publicação da Revista Científica – Revista Fitos. A missão deste periódico é a difusão do conhecimento científico, publicado em versão impressa e eletrônica. Há, também, uma publicação mensal eletrônica – Revista EWE, que divulga relatórios das ações e realizações das redes, permitindo aos atores divulgarem seus projetos.
- Os parceiros internacionais, especialmente, a Universidade Paris 8 (Acordo de Cooperação Internacional assinado em 2014 a partir de uma parceria informalmente iniciada em 2010 com trabalho de campo no Brasil) estudam as redes socianalíticas e as ciências da educação (particularmente, educação popular).
- Paralelamente, entre 2006 e 2009, o NGBS buscou recursos financeiros junto às Agências de Financiamento do Governo Federal, para alcançar três objetivos principais, visando sua organização: criação das RedesFito; organização dos AEPLs – Arranjos Eco-produtivos Locais e a elaboração do Portfólio em Inovação em medicamentos da biodiversidade, para apresentar as possibilidades reais de desenvolvimento, organizando da bases à sociedade aqui representada pelos atores de todos os segmentos da cadeia de produção e desenvolvimento.
Esse conjunto tem ajudado a estabelecer, gradualmente, um Sistema Nacional em Inovação em Medicamentos da Biodiversidade, construído a partir de Arranjos Eco-produtivos locais (AEPLs) reconhecidos em cada bioma. A Rede lida, de baixo para cima, com diferentes atores da cadeia de produção: associações e cooperativas agrícolas, instituições científicas e tecnológicas, empresas agrícolas e farmacêuticas, governo e organizações sem fins lucrativos, e por último, mas não menos importante, os atores dos movimentos sociais.
Os AEPLs são como as sinapses da rede, no que se refere à produção e circulação transversal de conhecimentos ou de informações, visando a aplicação de tecnologias inovadoras na produção de medicamentos da biodiversidade.
Atualmente as redes reúnem cerca de cinquenta AEPLs. O NGBS coordena vinte projetos estruturantes em inovação em medicamentos da biodiversidade no Brasil.
A primeira rede a ser organizada foi a RedeFito Amazônia, a partir de uma assembleia realizada com representantes do governo, das universidades e institutos de Ciência e Tecnologia, bem como das organizações sem fins lucrativos e da indústria farmacêutica. Na ocasião, foi constituído o Conselho Gestor da Rede Amazônia. Em seguida, usando a mesma estratégia, formaram-se: a Rede Mata Atlântica, inicialmente em torno de São Paulo e, posteriormente, no Rio de Janeiro e a RedeFito Cerrado, bem como as demais RedesFito. Atualmente existem os AEPLs identificados em todos os biomas (Amazônia, Caatinga, Cerrado, Pantanal, Mata Atlântica e Pampa). Esses arranjos são apoiados pelo Escritório de Gestão das RedesFito com sede no Rio de Janeiro. Além da identificação dos arranjos locais, a rede promove a articulação entre os atores no AEPL do mesmo bioma, assim como a interação dos AEPLs dos diferentes biomas. Em cada bioma, os diagnósticos participativos são o ponto de partida. A dinâmica se dá em reuniões locais, regionais e nacionais para difundir as ações que se inserem nesta nova perspectiva. Enfatizamos aqui que as Redesfito não são uma rede acadêmica nem uma rede industrial, mas sim uma rede do conhecimento. A implantação de redes por bioma, já é por si só uma inovação organizacional. A relação entre redes e inovação é reconhecida mundialmente como uma nova forma de organização, gerada pelas tecnologias da informação e da comunicação. Estas novas formas constituem uma alternativa para os diferentes agentes econômicos e sociais, face à forte concorrência entre as empresas, indústrias e países.
A dificuldade na obtenção de recursos para garantir a plena organização das redes, gerando a efetiva elaboração de projetos de desenvolvimento tecnológico de medicamentos da biodiversidade, levou os atores a pensarem outras formas de funcionamento para e captação de recursos, reafirmando a autonomia como principio básico para a realização de projetos estruturantes, rompendo com o modelo dominante patriarcal e protetor do Estado. A organização dos conselhos de representantes de cada bioma, resultou da necessidade de autonomia. A etapa seguinte permitiu discutir novos conceitos de organização e de infraestrutura. Ficou claro que todos os projetos devem incluir a perspectiva ecológica na produção de matérias primas, insumos agrícolas, ou medicamentos à base de plantas medicinais, utilizando os múltiplos sistemas de produção agoecológicos. Esta abordagem permitiu organizar a construção e a circulação do conhecimento, a capacitação dos agricultores, a aprendizagem favorável à criação de postos de trabalho que contribuem para o desenvolvimento regional sustentável. As Redes visam inovação e pressupõem o estabelecimento das relações de cooperação entre os diferentes atores, na troca de informações, seja para permitir capacitação tecnológica e industrial, seja para assegurar a produção e a comercialização dos produtos, resultantes do desenvolvimento regional (LEMOS, 1997).
A definição da identidade das RedesFito foi muitas vezes discutida, assim como a questão da comunicação entre os atores da rede. Um sistema geo-referenciado (FIGURA 1), em que é possível visualizar os AEPLs, foi desenvolvido para facilitar a identificação dos atores da rede e, consequentemente, a comunicação. Essa ferramenta agiliza o trabalho de gestão do Sistema Nacional de Redes que abrange: o desenvolvimento dos arranjos locais; a captação de recursos financeiros, a participação em reuniões, seminários e outras ações coletivas. Esse é um espaço permanente para mapear e identificar os atores e os projetos.
Um Observatório Socianalítico sobre o funcionamento das Redes será inaugurado em 2016. Na trajetória das RedesFito, diversos seminários e workshops temáticos tiveram suas origens durante a definição/redefinição dos conceitos que orientam as ações e pontuam a vida das redes: o III Seminário sobre as RedesFito e a política nacional de plantas medicinais e fitoterápicos, em 25 de agosto de 2009; IV Seminário sobre o papel dos arranjos locais, em 08 e 09 de dezembro de 2009; 1º Workshop sobre Biodiversidade e Inovação em Fitomedicamentos no Rio de Janeiro, em 04 de novembro de 2010; 1º Encontro da Rede-Rio sobre a Inovação em Medicamentos da Biodiversidade e Agroecologia, em 29 de novembro de 2012; V Seminário sobre Políticas e Estratégias para a Inovação em Medicamentos da Biodiversidade na perspectiva de Desenvolvimento Sustentável, em 04 de dezembro de 2013; a Roda de Conversa sobre o papel da P&D na Inovação em Medicamentos da Biodiversidade, em 30 de outubro de 2014; a Assembleia Socianalítica das RedesFito sobre o Portfólio Nacional de Inovação em Medicamentos da Biodiversidade, com a participação dos estudantes do curso de Gestão da Inovação em Medicamentos da Biodiversidade, em 25 de junho de 2015. Esses momentos de troca de experiências aproximam os atores, permitindo emergir os conflitos, os temas que são tabus, possibilitando avanço nas ações. Com a ajuda da Socianálise é possível corrigir as distorções observadas no trabalho de campo.
3. Quatro projetos estruturantes
Uma nova definição na macro-organização das RedesFito emergiu, após avaliação dos nove anos de trabalho e aprendizagem da equipe, que foi: a Rede existe onde existe a ação. Apresentamos abaixo três projetos ligados a iniciativas regionais e locais, além da proposição do Portfólio de Projetos para a Inovação em Medicamentos da biodiversidade, a qual foi reconhecida recentemente pelo Ministério de Ciência, Tecnologia e Inovação (Janeiro de 2016). São projetos estruturantes aqueles que refletem os princípios teóricos da inovação sustentável, como exemplo de demonstração e de legitimidade da inovação em rede.
3.1 Saúde e Plantas Medicinais do sistema de produção agroecológica no Extremo Sul da Bahia.
Neste projeto participam a FIOCRUZ, a Universidade de São Paulo (ESALQ/USP) e o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). O trabalho é desenvolvido em nove localidades diferentes, situadas em quatro Municípios da Bahia e visa: a inserção de Plantas Medicinais no Sistema de Produção Agroflorestal; o fortalecimento da utilização de Plantas Medicinais locais de forma integrada com as ações de saúde locais; a estruturação de uma área de produção agroecológica e de transformação de Plantas Medicinais em Inovação de medicamentos da biodiversidade nessa região; o monitoramento das condições de vida e de saúde nesses locais para o Sistema Unificado de Saúde do Brasil (SUS), em nível municipal e local, como mostram as FIGURAS 2 e 3.
Entre os resultados já alcançados neste projeto incluem-se a capacitação dos agentes de saúde pública e a gestão do conhecimento de plantas medicinais. É interessante destacar o resultado parcial da pesquisa em etnobotânica: cerca de 600 espécies de plantas medicinais foram identificadas por meio do conhecimento tradicional e popular, sendo a maior parte indígenas ou de espécies exóticas adaptadas, há séculos, aos ecossistemas. Esta pesquisa é o ponto de partida para a produção agroecológica em grande escala, garantindo recursos aos agricultores na produção, respeitando o meio ambiente e a biodiversidade, reduzindo custos de assistência social e possibilitando o acesso da população local à saúde.
3.2 O Projeto de Itapeva
A Fazenda Pirituba, ocupada pelo MST, é uma fazenda dividida entre os municípios de Itapeva e de Itaberá, no centro-sul do Estado de São Paulo. Há quatorze anos, aproximadamente, nela foi implementada a reforma agrária em parceria com Farmanguinhos. Desde o início, esta parceria visou o desenvolvimento de projetos com plantas medicinais. No curso dos últimos anos, houve uma aproximação entre a COOPLANTAS – uma cooperativa especial fundada por 30 mulheres nativas – que permitiu as RedesFito fazer uma análise histórica de todos os processos, visando desenvolver a metodologia agroecológica no centro de um arranjo ecoprodutivo local.
Na mesma lógica de ideias, como foi descrito nas páginas anteriores, a busca de autonomia financeira pelos próprios atores fez com que esta parceria tivesse recentemente algum sucesso com o Governo Federal (Ministério da Saúde) para financiar o projeto. O objetivo do Ministério é promover a fitoterapia nas Unidades Básicas de Saúde e, para tanto, financiar "a consolidação de arranjos locais para produção de Plantas Medicinais e de Medicamentos à base de plantas".
Para a COOPLANTAS esta seria a oportunidade de reforçar a organização do ecossistema de produção de plantas medicinais em parceria com as RedesFito e estabelecer relações com as universidades e as empresas, abrindo o caminho da inovação em medicamentos da biodiversidade.
3.3 O programa de Inovação em medicamentos da biodiversidade amazônica.
O Estado do Amazonas é considerado estratégico para desenvolver produtos e medicamentos derivados da biodiversidade, particularmente, os de origem vegetal. Esse programa visa uma articulação com os Institutos de Ciência, Tecnologia e Inovação (CTI), as universidades, as indústrias farmacêuticas, os setores de produção agrícola, assim como, as comunidades detentoras do conhecimento tradicional. O trabalho em rede proposto pelas RedesFito é considerado como uma contribuição essencial para o desenvolvimento dos Arranjos Eco-produtivos Locais, revelando o potencial para o desenvolvimento de medicamentos da biodiversidade regional. Em 2014, a RedeFito Amazônia participou do Fórum Estadual de Gestores de Ensino e Pesquisa do Amazonas, uma iniciativa da Secretaria de Ciência, Tecnologia, Inovação do Estado, em parceria com a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado (FAPEAM). Essa secretaria apoiou o trabalho em rede, visando alcançar o desenvolvimento e a produção de, pelo menos, um fitomedicamento da Amazônia. A Amazônia, que possui a maior biodiversidade do Brasil, paradoxalmente, não produz nenhum medicamento a partir da biodiversidade! Esse programa destaca-se pelo caráter pioneiro de P&D em rede, com foco na viabilidade de uma tecnologia verdadeiramente nacional, baseada na única vantagem competitiva na região amazônica: a sua sócio-biodiversidade. A fim de criar, através dessa experiência, os fundamentos da inovação em medicamentos da biodiversidade amazônica, o programa foi dividido em oito projetos: 1.Organizar e instalar um escritório de gestão da RedeFito Amazônica. 2. Cultivar e gerenciar plantas medicinais na Amazônia brasileira; 3. Organizar um banco de extratos vegetais; 4. Criar um banco de dados; 5. Implantar um programa de pós-graduação Lato Sensu em Gestão da Inovação em Medicamentos da Biodiversidade; 6. Desenvolver e apresentar um produto da biodiversidade regional; 7. Ampliar a difusão científica nesta área de conhecimento; 8. Promover a gestão, controle e articulação dos projetos da RedeFito Amazônia. Os Projetos 1, 5 e 6 foram aprovados e seu financiamento encontra-se em andamento.
3.4 Portfólio de Projetos de Inovação em Medicamentos da Biodiversidade.
Este projeto, inicialmente, descreve o panorama da política científica, de tecnologia e inovação em saúde, para propor uma linha de desenvolvimento de fármacos e de medicamentos no Brasil. O trabalho das RedesFito, construído a partir de Arranjos Eco-produtivos Locais (AEPL) e identificados nos principais biomas brasileiros, prepara este novo caminho. Como abordado durante a última Assembleia Socianalítica da Rede no Rio de Janeiro, não se tem as soluções, mas apenas um caminho. Parafraseando Edgar Morin (2011) não há soluções mas existe um caminho, um documento foi elaborado a partir do debate de 25 e 26 de junho de 2015, com a presença da equipe do NGBS/Farmanguinhos, os conferencistas (indústrias, políticos, pesquisadores), os estudantes do curso de Socianálise e os professores-socianalistas franceses Patrice Ville e Christiane Gilon. Essa proposta, direcionada aos Ministros da Saúde e da Ciência, Tecnologia e Inovação, visa legitimar as RedesFito e assegurar a validação do Portfólio de Inovações. Na presença de estudantes do Curso de Gestão da Inovação em Medicamentos da Biodiversidade, o Diretor de Farmanguinhos (FIGURA 6 – o 3º da esquerda) recebeu o documento das mãos de Glauco de Kruse Villas Bôas, Coordenador do NGBS, (2º da foto) para enviar aos seus destinatários. O projeto recebeu o apoio do Ministro da Ciência, Tecnologia e Inovação
4. Considerações finais
Há meio século que se fala da necessidade de uma nova economia, uma economia descarbonizada, uma economia decrescente para alguns teóricos, estacionária para outros, uma economia resultante do crescimento verde ou ainda ecológica. No entanto, aqueles que dominam o mercado não querem alterar o movimento perpetuado pela produção/consumo de produtos que se tornam obsoletos ou descartáveis seis meses após a sua venda. Assim, eles geram muito dinheiro e uma grande quantidade de lixo. A contribuição das RedesFito no debate da sustentabilidade, baseia-se em nove anos de trabalho de campo no modelo da transversalidade e mostra que é possível a construção de um novo caminho neste período histórico de mudança de paradigma. A experiência concreta dos atores das RedesFito mostra a necessidade de mudanças estruturais profundas, começando com a criação de novos programas científicos que reconheçam o fato de que, quanto mais conhecimento tivermos sobre a biodiversidade, maior será o potencial da biotecnologia e não o inverso. Os grupos de pesquisa de desenvolvimento tecnológico da indústria farmacêutica devem respeitar a Convenção sobre Diversidade Biológica e aceitar o conceito de inovação em medicamentos da biodiversidade, conforme já descrito neste trabalho, para enfrentar a concorrência e aproveitar as oportunidades oferecidas pela exuberante biodiversidade presente nos países em desenvolvimento, como o Brasil. A Política de Ciência, Tecnologia e Inovação deve ter um olhar crítico sobre o modelo econômico hegemônico, uma vez que este modelo traz a privatização do conhecimento e da informação.
O bloqueio do avanço do conhecimento, reduz os discursos de cooperação a uma pura retórica. Eles devem, portanto, considerar a complexidade e a transversalidade da organização de seus sistemas nacionais de inovação, contribuindo assim para um desempenho digno desses países no panorama internacional.
No Brasil, o conhecimento da biodiversidade resulta do conhecimento de cada bioma, e a produção deste conhecimento deve incluir uma perspectiva ecossistêmica. As relações interdisciplinares devem ser reforçadas, em particular entre os ecossistemas genéticos e químicos. Considera-se o conhecimento em sentido amplo, envolvendo todo o conhecimento acadêmico e não acadêmico (GIBBONS et al., 1997), o conhecimento tácito, bem como o conhecimento popular e tradicional.
Para entrar no novo paradigma verde é necessário ir além da reorientação das estruturas acadêmicas e produtivas, incorporar a perspectiva agroecológica, criar novos formatos organizacionais para gerir programas nacionais, tais como as que dizem respeito à inovação em medicamentos da biodiversidade.
As mudanças esperadas nas formas de produção e consumo, necessariamente, incluem eco-inovações. As RedesFito podem ser consideradas um importante sistema de gestão da inovação em medicamentos da biodiversidade. Ela responde a uma demanda crescente da sociedade, no que se refere à sustentabilidade sócio-ambiental. É uma ferramenta poderosa para a implementação da Política de Ciência, Tecnologia e Inovação em Saúde sustentável e transversal, porque promove a implementação de baixo para cima, do tipo bottom-up, do local ao regional e daqui em nível nacional.
No Brasil, o desenvolvimento realizado com base na visão contemporânea dos sistemas nacionais de eco-inovação, do desenvolvimento local e, neste caso, a partir de cada bioma é uma grande e única alternativa nos países em desenvolvimento. Nesse caso, o Brasil e os países em desenvolvimento que possuem uma grande biodiversidade podem encontrar novos produtos e promover um grande salto tecnológico na produção de medicamentos. É preciso quebrar o círculo vicioso da concorrência, não utilizando os mesmos parâmetros de desenvolvimento tecnológico para os medicamentos, utilizados pelos países em que a biodiversidade não se compara à do Brasil.
5. Referências
- ANDERSEN, M.M. 2010 — Eco-innovation in the globalizing and Learning Economy: the green of national innovation systems. 8th international conference – Globelics.
- BRASIL, Decreto nº 5.813, de 22 de junho de 2006. Política Nacional de Plantas Medicinais e Fitoterápicos. : Acesso em 09/2015.
- BRASIL 2008 — Programa Nacional de Plantas Medicinais e Fitoterápicos (PNPMF). http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/programa_nacional_plantas_medicinais_fitoterapicos.pdf. Acesso em 09/2015.
- CASSIOLATO, E.J. LASTRES, H.M.M. Sistemas de Inovação e desenvolvimento: as implicações de política. São Paulo em Perspectiva, v.19, n. 1, p. 34-45. 2005.
- CDB, Convenção da Diversidade Biológica. 1992. http://www.mma.gov.br/biodiversidade/convencao-da-diversidade-biologica. Acesso em 09/2015.
- CHESNAIS, F. Sustentabilidade socioambiental em um contexto de crise. In : Cassiolato, J.E. ; Podcameni, M.G. ; Soares, M.C. 1ª.ed., Rio de Janeiro: Epapers. 2015.
- DALY, H.E. Beyond Growth: the Economics of Sustainable Development. Freeman, p. 88-93. San Francisco. 1997.
- DOSI, G. Technological paradigms and technological trajectories. Research Policy, v.11, p. 3. 1982.
- GADELHA, C.A.G. Estado e Inovação: Uma Perspectiva Evolucionista, Rio de Janeiro, Revista de Economia Contemporânea, v.6, n.2, p. 85-117. 2002.
- GEORGESCU-ROEGEN, N. Energy and Economic Myths: Institutional and Analytical Economics Essays. Pergamon. Oxford. 1976.
- GIBBONS, M.; LIMOGES, C.; NOWOTNY, H.; SCHWARTZMAN, S.; SCOTT, P.; TROW, M. The New Production of Knowledge. London, Sage Publication. 1977.
- IMS HEALTH – disponível em http://www.imshealth.com/ , acessado em 2016.
- LEMOS, C.R. Redes Locais de Informação para Inovação Face à Globalização. Informare: Cadernos do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Informação v. 3, n. 1/2. 1997.
- NELSON, R.R. ; WINTER S.G. An Evolutionary Theory of Economic Change. Harvard University Press. 1982.
- MORIN, E. La voie, Pour l'avenir de l'humanité. Éditions Fayard, Paris. 2011.
- ONU, O Futuro que queremos Rio + 20. 2012. http://www.rio20.gov.br/documentos/documentos-da-conferencia/o-futuro-que-queremos/at_download/the-future-we-want.pdf. Acesso em 09/2015. Acesso em 06/2013.
- VILLAS BÔAS, G.K. Inovação em medicamentos da biodiversidade: uma adaptação necessária (ou útil) nas políticas públicas. Tese de Doutorado, Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP/FIOCRUZ), Rio de janeiro. 2013. 18. VILLE, Patrice; GILON, Christiane. Arcanes du métier de socianalyse institutionnel, Éditions de Sainte Gemme, – et autres textes disponibles sur le site www.socianalyse.net. 2014.
Sugestões de leitura da 'Encyclopédie:
- Alain Ruellan, Développement durable en Amazonie brésilienne, n° 9 mai 2006.
- Catherine Aubertin, La biopiraterie, n° 7, mai 2006.
- Ignacy Sachs, Les défits du second sommet de la terre de Rio de Janeiro, n° 163 juin 2012 (reprise d'un article de la revue Estudos Avançados).