Estado da Arte

A Construção do Atual Sistema de Propriedade Intelectual. II. GATT, OMC, TRIPS, as Negociações Bilaterais e suas Conseqüências na Indústria

The Construction of the Present Intellectual Property System. II. GATT, WTO, TRIPS, Bilateral Negotiations and Consequences for Industry

Londe, C. R. O.1
1Associação dos Laboratórios Farmacêuticos Nacionais - ALANAC, Rua Sansão Alves dos Santos 433, 8o andar, 04571-090, Brooklin, São Paulo, SP
*Correspondência:
londe@pop.com.br

Resumo

O objetivo deste artigo, organizado em duas partes, é introduzir o leitor ao tema propriedade intelectual. Na primeira parte do artigo, destacamos o que é a PI, incluindo seus principais aspectos históricos, e as transformações pelas quais passou o sistema de proteção à PI, até a formação da OMPI (Organização Mundial da Propriedade Intelectual), e as discussões ocorridas dentro dessa organização. Na segunda parte do artigo, será destacada a transformação do GATT (General Agreement on Trade and Tariffs) na Organização Mundial do Comércio (OMC), bem como serão analisados os principais tratados internacionais que regem este assunto. Também se procederá a uma comparação com a legislação nacional (principalmente a Lei nº 9.279, de 14 de maio de 1996) para, ao final, concluir que um país que deseje ser soberano no Século XXI não pode descuidar de nenhum aspecto relacionado à propriedade intelectual, e muito menos sucumbir às ameaças de países desenvolvidos, que desejam, cada vez mais, tornar a PI um instrumento de dominação, enquanto sabe-se que ela deveria ser um instrumento de fomento ao comércio internacional, de distribuição de riqueza e de diminuição das desigualdades entre os países "desenvolvidos" e "em desenvolvimento". As referências bibliográficas a renomados autores e também aos textos legais, bem como aos textos originais dos tratados e leis, permitem ao leitor, caso haja interesse, um maior aprofundamento no tema.

Unitermos
Propriedade Intelectual.
OMPI.
GATT.
OMC.
TRIPS.
Pipeline..

Abstract

The aim of this paper, organized in two parts, is to provide the reader for an introduction to the intellectual property. In the first part of this paper, we will focus what means IP and its main historical aspects and the transformations which the IP protection system passed through until the formation of WIPO (World Intellectual Property Organization) and the discussions that took place at this organization. In the second part, it will be focused the transformation of GATT (General Agreement on Trade and Tariffs) into the WTO (World Trade Organization), as well as a comparison between the main treaties concerning IP with Brazilian internal legislation (mainly Law 9.279/1996) concluding that any country wishing to keep its sovereignty during the XXI Century must take close care of all matters related to IP and can not accept the threats of industrialized countries, which try to turn IP into a tool to amplify the economical domination, while it is known that IP should be used to develop international trade and to diminish the astonishing differences between "industrialized" and "under development" countries. The indication of other publications about IP as well as the indication of the original version of the legal texts (treaties and laws), allow the reader to go deeper into this subject.

Key words
Intellectual Property.
WIPO.
GATT.
WTO.
TRIPS.
Pipeline..

Introdução

Na primeira parte deste artigo (LONDE, 2006), foi discutida a Propriedade Intelectual desde seus primórdios, em Roma Antiga, até a criação da Organização Mundial da Propriedade Intelectual (OMPI) e os tratados sob sua responsabilidade. Nesta segunda parte, são analisadas as discussões que se realizaram fora da OMPI, a transformação do GATT (General Agreement on Trade and Tariffs) em OMC (Organização Mundial do Comércio) e a subseqüente construção do acordo TRIPS (Trade Related Aspects of Intellectual Property Rights), até as conseqüências práticas da atual política de proteção à Propriedade Intelectual (PI).

Discussões paralelas à OMPI

Dentre as muitas frentes de ação, paralelas à OMPI, comandadas pelos países desenvolvidos, as duas principais são os acordos bilaterais e as discussões no âmbito do GATT/OMC. Nas discussões comerciais entre os Estados Unidos e os demais países, o governo norte-americano se utilizava de uma vigorosa legislação interna que permitia ao presidente norte-americano eliminar práticas comerciais consideradas injustificáveis pelos Estados Unidos, através de retaliações comerciais. Trata-se da Section 301, prevista no Trade Act de 1974, e colocada à disposição da proteção à propriedade intelectual por força do Trade Act de 1984. Posteriormente, o Congresso norte-americano tornou essa legislação ainda mais severa, permitindo a criação de uma “lista negra” de países, no que concerne ao respeito à propriedade intelectual. Esse endurecimento recebeu o nome de “Special 301”, também chamado de Omnibus Trade and Competitiveness Act of 1988.

Não se faz necessário mencionar que uma retaliação da maior economia do mundo, que enfrenta atualmente uma balança comercial extremamente deficitária (ou seja, compra de outros países mais do que exporta, em média) pode ter conseqüências desastrosas sobre muitos países. Estes, amedrontados, alteraram sua legislação interna objetivando não serem enquadrados na lista negra e tentando manter e mesmo aumentar o fluxo comercial com os Estados Unidos. Um exemplo que pode ser usado para um melhor entendimento da influência que os Estados Unidos e também outros países desenvolvidos exercem sobre as políticas relativas à propriedade intelectual de outros países são as negociações sino-norte-americanas.

Negociações Sino-Norte-Americanas

A pesquisadora chinesa Hong Xue, em seu artigo Between the Hammer and the Block: China´s Intellectual Property Rights in the Network Age, publicado no University of Ottawa Law and Technology Journal (XUE, 2005) descreve como os Estados Unidos e outros países do Ocidente (The Hammer) influenciaram diretamente a forma como são tratados atualmente os direitos relativos à propriedade intelectual naquele país e também como o setor privado interno (The Block) tem resistido à proteção à PI:

With the economic development in China and the tremendous expansion of foreign direct investment, the Western economic powers, stemming largely from the United States, have been increasingly using economic and political resources to press China to upgrade IPR [intellectual property rights] protection levels, expand the IPR scope and strenghten IPR enforcement. (grifo nosso)

A autora também descreve que a Special 301 já comentada na primeira parte do artigo, desde que entrou em vigência, em 1989, tem sido um pesadelo para a China, e que o governo dos Estados Unidos obteve sucesso assegurando os interesses das indústrias química e farmacêutica1, indústria musical, de filmes e outras indústrias de entretenimento, bem como os fabricantes de programas para computador. A influência vai ainda mais além, já que os sistemas chineses de patentes, copyright, marcas e outros sistemas de direitos provenientes da propriedade intelectual foram substancialmente revisados, com base na Special 301. Tal influência ocidental, principalmente norte-americana, gerou insatisfação e preocupação no setor privado chinês, e tanto os países ocidentais quanto o setor privado interno tentam influenciar os legisladores, o Poder Judiciário chinês e também o SIPO (State Intellectual Property Office, o equivalente chinês ao INPI brasileiro), no sentido de melhor salvaguardar seus interesses.

Entretanto, apesar das reações internas chinesas as negociações sino-norte-americanas foram decisivas e incisivas em alterar a legislação chinesa relativa à propriedade intelectual em troca de investimentos externos e de mercado para exportação. Para uma análise mais aprofundada dessas reações, sugerese a leitura dos itens 3.2. Enforcement Blocked Back, 3.2.1.Toyota´s Defeat, 3.2.2. Viagra Patent Invalidated e 3.2.3. General Motors Lost its Case, todos do texto já citado acima (XUE, 2005).

É importante salientar que as negociações descritas se iniciaram antes da adesão da China ao TRIPS e se prolongam até os dias atuais, quando tanto a China quanto os Estados Unidos são signatários do TRIPS. Imaginava-se que, se os países em desenvolvimento e em menor desenvolvimento relativo assinassem o Acordo TRIPS, haveria o abandono, por parte dos países desenvolvidos, das tentativas bilaterais de padronização dos direitos de propriedade intelectual. Entretanto, não é o que se observa, como fica claro no caso já citado das negociações sino-norteamericanas e de resto como também se observa em várias outras tentativas bilaterais empreendidas pelos países desenvolvidos mesmo após a adesão ao TRIPS.

GATT (General Agreement on Trade and Tariffs) e OMC/WTO (Organização Mundial do Comércio - World Trade Organization)

O GATT é um acordo internacional que remonta a 1947, período pós 2ª Guerra Mundial, em que os países buscavam formas de sair da grave crise econômica em que muitos deles se encontravam (principalmente países europeus e Japão). Entretanto, apesar de o tema Propriedade Intelectual constar do acordo desde sua primeira negociação, foi na Rodada do Uruguai, que teve início em 1986 e terminou em 1994, com a publicação da “Ata Final da Rodada do Uruguai”, também chamado de “Acordo Constitutivo da Organização Mundial do Comércio - OMC”, que o tema teve reconhecida sua relevância. O final da Rodada Uruguai marca, portanto, a transformação do GATT em OMC. Este tem por objetivo, segundo o artigo 3º, item 2, de seu Acordo Constitutivo (Agreement Establishing The World Trade Organization), de: ser o foro para as negociações entre seus Estados membros acerca das relações comerciais multilaterais descritas nos seus Acordos constitutivos, bem como o foro para negociações ulteriores entre seus membros neste domínio, bem como se encarregar da aplicação dos resultados destas negociações, conforme decisão da Conferência Ministerial (OMC, 1994a).

A inclusão da Propriedade Intelectual no GATT/OMC se deveu a dois fatores principais: o fato de a OMPI não possuir poderes para garantir o cumprimento da legislação relativa à PI em todos os países membros e também a ausência de acordo entre esses países quanto à revisão das Convenções de Paris e de Berna, que perdurou por mais de trinta anos, já reportado anteriormente (LONDE, 2006). Para os países desenvolvidos, há também uma outra motivação, que é a vinculação da PI ao comércio internacional. Em outras palavras, isso significa que, se um país que fizer parte do GATT/OMC e puder comercializar de forma mais livre e com menos barreiras com um maior número de países, ele terá que garantir os direitos relativos à propriedade intelectual no seu território. Ao conjunto de normas relativas à PI se deu o nome de TRIPS: Trade Related Aspects of Intellectual Property Rights, que se encontram descritas no Anexo 1-C do Acordo Constitutivo da OMC.

É importante salientar que um dos princípios do Acordo Constitutivo da OMC é que um país não pode aderir apenas a parte do Acordo; ou o país adere ao acordo como um todo ou não adere a nada (Princípio do Single Undertaking). Em outras palavras, se um país quer participar de regras mais justas (na verdade, consideradas mais justas pelos países desenvolvidos) e com menos barreiras ao comércio internacional, ele terá que garantir os padrões de proteção à PI estabelecidos no TRIPS.

TRIPS - Trade Related Aspects of Intellectual Property Rights

O TRIPS (OMC, 1994b) envolve não apenas as patentes, mas também os direitos autorais e conexos, marcas, desenhos industriais, proteção de informações confidenciais, indicações geográficas e topografia de circuitos integrados. Os direitos autorais e conexos foram internalizados no Brasil pela Lei nº 9.610, de 19 de fevereiro de 1998, os direitos relativos aos circuitos integrados foram internalizados pela Lei nº 9.609, de 19 de fevereiro de 1998. A Lei nº 9.279, de 14 de maio de 1996 regulamenta os direitos relativos a patentes, marcas, desenhos industriais, indicações geográficas e proteção de informações confidenciais. O caráter de padronização do TRIPS pode ser visualizado em dois princípios fundamentais, além do princípio do Single Undertaking já citado:

Princípio do Tratamento Nacional: de acordo com o item 3(1) do TRIPS, um país é obrigado a conceder aos nacionais dos demais países membros da OMC tratamento não menos favorável que o outorgado a seus próprios nacionais com relação à proteção da PI;

Princípio da Nação Mais Favorecida: é um princípio já consagrado no Direito Internacional e trazido pelo artigo 4º do TRIPS, que estatui que “toda vantagem, privilégio ou imunidade que um Membro conceda aos nacionais de qualquer outro país será outorgado imediata e incondicionalmente aos nacionais de todos os demais Membros”. Em outras palavras, um país não pode, em regra, tratar com privilégios ou dificuldades os nacionais de um país membro da OMC.

Esses dois princípios admitem exceções, previstas no próprio TRIPS, mas o importante a se perceber é que ambos conduzem a uma padronização dos direitos relativos à propriedade intelectual, que é exatamente o que pretendiam os países desenvolvidos durante as negociações do GATT, cuja Ata Final levou à formação da OMC.

Outro aspecto relevante a respeito do Acordo TRIPS é que ele estabelece padrões mínimos de proteção à PI, ou seja, os países membros da OMC podem, a seu critério, estabelecer critérios mais rígidos de proteção, mas não podem ser obrigados a fazê-lo. Isso na teoria, pois na prática há muita influência dos países desenvolvidos na política interna de proteção à PI de muitos países em desenvolvimento e em menor desenvolvimento relativo, como já foi visto nas negociações sinonorte-americanas e também como será visto posteriormente nas negociações bilaterais. Essa influência se reflete nas tentativas dos países desenvolvidos de aumentar a proteção à PI pela via de acordos bilaterais, da mesma forma como faziam anteriormente à entrada em vigor do TRIPS. A diferença é que, após o TRIPS, os acordos bilaterais passaram a prever normas TRIPS-plus, que obrigam os países a concederem uma proteção mais rígida aos itens já previstos no TRIPS; e TRIPS-extra, que obrigam os países a conceder proteção não prevista no TRIPS.

Negociações Bilaterais - Acordos de Livre Comércio

As negociações bilaterais sino-norte-americanas constituem um excelente exemplo da ingerência norteamericana na política interna de outros países quanto à proteção à PI. Entretanto, essas negociações se iniciaram antes da publicação do Estatuto da OMC e, portanto, antes da publicação do TRIPS, apesar de se estenderem até os dias atuais. Após a publicação da Carta da OMC, podem-se citar dois acordos de livre comércio bilaterais (Free Trade Agreements; FTA): os acordos realizados entre Estados Unidos e Chile e entre Estados Unidos e Singapura que, segundo o Relatório Anual do United States Patent and Trademark Office (uma espécie de INPI norte-americano) (USPTO, 2003) “proporcionarão maiores níveis de proteção da propriedade intelectual em um número de áreas cobertas pelo TRIPS” conforme se pode verificar a seguir:

Free Trade Agreements The United States is committed to a policy of promoting increased intellectual property protection. In this regard, we are making progress in advancing the protection of these rights through a variety of mechanisms, including through the negotiation of free trade agreements (FTAs). We are pleased that the FTAs with Chile and Singapore will provide for higher levels of intellectual property protection in a number of areas covered by the TRIPs Agreement. We are also seeking higher levels of intellectual property protection and enforcement in the FTAs that are currently under negotiation with Australia, Central America, Morocco, and the Southern Africa Customs Union, and in the ongoing negotiation of the Free Trade Area of the Americas. (grifo nosso)

Cabe ressaltar, no trecho acima, um outro aspecto relevante: os Estados Unidos continuarão utilizando os FTAs em discussão, inclusive nas negociações para a formação da ALCA - Área de Livre Comércio das Américas. Esse aspecto é enfatizado na continuação do trecho citado acima, onde os Estados Unidos citam países que consideram ter um nível inadequado de proteção à PI e afirmam que usarão todos os meios para pressionar tais países, entre os quais se inclui o Brasil:

USTR will continue to use all statutory tools, as appropriate, to improve intellectual property protection in such countries where it is inadequate, such as Ukraine, Russia, Brazil, Peru, Ecuador, Bolivia, Venezuela, the Dominican Republic, Pakistan, Thailand and Turkey including through implementation of the Generalized System of Preferences and other trade preference programs. (grifo nosso)

As Patentes Pipeline

Além das negociações bilaterais, os países desenvolvidos utilizam outros mecanismos para garantir uma extensão de seus direitos relativos à propriedade intelectual. No Brasil, pode-se citar a má utilização que algumas indústrias estrangeiras fazem e/ou fizeram de institutos previstos na legislação nacional como, por exemplo, as patentes pipeline previstas na Lei no 9.279, de 14 de maio de 1996.

Inicialmente, o pipeline é colocado como um instrumento que permitiu que fossem concedidas patentes sobre objetos e substâncias que não eram patenteáveis de acordo com a Lei no 5.772, de 21 de dezembro de 1971, e que representa “uma exceção ao conceito básico de patenteabilidade e funcionou como uma espécie de ‘revalidação’ de patentes requeridas no exterior”, desde que obedecidos os requisitos estabelecidos pela nova lei, conforme observa DANNEMANN (2000a):

• Até a data do depósito do correspondente pedido brasileiro, o objeto daquela patente não fosse colocado em qualquer mercado por iniciativa da titular;

• Também até a data do depósito brasileiro, terceiros não houvessem realizado sérios e efetivos preparativos para exploração daquela patente no Brasil; e

• Que o referido pedido brasileiro fosse depositado dentro de 1 ano a contra da data de publicação da lei (DANNEMANN, 2000b);

O que ocorreu foi que, muitas empresas estrangeiras, apesar de não se enquadrarem nos requisitos descritos acima, pleitearam uma grande quantidade de pedidos de patentes pipeline, na tentativa de obter, no Brasil, uma proteção patentária a que não tinham direito. Tal comportamento reflete de maneira fiel, a posição de muitos países desenvolvidos que, quando se encontram em condição de cobrar que os outros cumpram suas obrigações, agem incisivamente, defendendo ao máximo a proteção aos direitos relativos a propriedade intelectual. Já quando se encontram no dever cumprir com legislações ou de respeitar os direitos de outros países, agem da forma que lhes interessa, descumprindo ou desrespeitando requisitos das legislações nacionais locais. O Brasil entra no rol das ‘vítimas’ deste tipo de atitude; bastando citar o exemplo do exaustivo levantamento realizado pela Associação dos Laboratórios Farmacêuticos Nacionais (ALANAC) sobre dados do INPI, quando foram computados os depósitos de 1063 pedidos de patentes pipeline, sendo 778 relacionados à área farmacêutica. Este procedimento, assim constatado, aponta claramente para a má fé na prestação de informações por indústrias farmacêuticas estrangeiras, já que ALANAC identificou “declarações de não-comercialização” para pedidos de patentes pipeline de produtos comercializados no exterior ou no Brasil antes de maio de 1996, “métodos de tratamento”, não permitidos em lei, pedidos sem atividade inventiva ou sem descrição completa e inteligível do pedido; descrições não traduzidas (texto em inglês, total ou parcialmente); associações de drogas antigas, processos farmacotécnicos e fórmulas ensinadas nas Faculdades de Farmácia do país desde a década de 60, entre outros.

Distorções do Sistema TRIPS

O Acordo TRIPS tem o condão de promover a proteção à PI, estabelecendo padrões mínimos. Essa proteção, no que concerne às patentes, se concretiza em uma troca entre particular e governo: o particular divulga sua invenção, tornando-a pública e disponível para toda a sociedade, enquanto o governo lhe dá um monopólio provisório para a utilização daquela novidade. Contudo, há alguns meios de se estender artificialmente a duração dessa proteção.

Na indústria farmacêutica, tais tentativas se revelam, entre outras formas, através de drogas me-too, que são aquelas que foram preteridas na fase clínica do processo de desenvolvimento de novos princípios ativos e possuem estruturas químicas muito parecidas com a estrutura do princípio ativo que chegou ao mercado.

Entretanto, se foram preteridas, entende-se que não tinham características tão contundentes quanto às características da molécula que atingiu o mercado. Segundo a indústria farmacêutica norte-americana, “apenas uma em cinco mil drogas testadas chega ao mercado”. (ANGELL, 2003a). Entretanto, entre 1998 e 2002, 415 novas drogas foram aprovadas pelo FDA (Food and Drug Administration) dos EUA, das quais apenas 14 por cento eram drogas realmente inovadoras. Outros 9 por cento eram drogas antigas que foram alteradas de alguma forma que as transformaram, na visão do FDA, em melhoramentos significativos. E os 77 por cento restantes? Incrivelmente, todas eram drogas me-too, classificadas pela Agência como sendo “não melhor do que drogas já no mercado para tratar a mesma condição” (ANGELL, 2005b).

Esse prolongamento artificial ocorre da seguinte forma: quando uma determinada droga está na iminência de ter sua patente expirada, o detentor desta patente lança uma droga me-too no mercado, iniciando-se um novo prazo de proteção, mesmo com a ausência do elemento inovação, essencial à concessão da proteção patentária. O lançamento de tais drogas possui um efeito devastador na indústria de genéricos, pois, ao proteger a droga me-too, a detentora da patente retira do mercado a droga que originou o metoo, o que impede, pela legislação sanitária, a concessão de registro para um genérico, devido à ausência de uma droga de referência para os estudos de bioequivalência. Todas essas manobras, aliadas a estratégias de marketing que transferem para a droga me-too os usuários da droga que a originou, impedem, na prática, o lançamento de genéricos, o que só contribui para aumentar a diferença tecnológica entre os países e também o grau de desenvolvimento tecnológico entre as empresas.

Conseqüências do TRIPS na Indústria Farmacêutica Nacional

A indústria farmacêutica brasileira, bem como dos demais países em desenvolvimento e em menor desenvolvimento relativo, encontra-se em uma posição de inferioridade tecnológica em relação à indústria farmacêutica dos países desenvolvidos. E esse comentário não se aplica apenas à indústria química e farmacêutica, podendo ser estendido à indústria como um todo. Dessa desigualdade nasce uma dicotomia de posições. Por um lado, as indústrias dos países desenvolvidos desejam o maior nível possível de proteção à PI, pois precisam ver garantidos seus altos investimentos em inovação. Por outro lado, as indústrias dos demais países aproveitam a uma ausência de uma rígida legislação quanto à PI para diminuir o gap tecnológico entre elas. E estas posições se refletem, obviamente, nos posicionamentos dos governos respectivos, que se manterá até, hipoteticamente, todos os países se encontrarem em um nível menos díspar quanto à PI. Especificamente no caso brasileiro, e de alguns outros países como Índia, África do Sul e China, existe uma grande desigualdade dentro da própria indústria, existindo algumas indústrias farmacêuticas nacionais com uma capacidade de inovação relativamente grande e outras com pouca capacidade, mesmo em comparação com as demais indústrias nacionais.

Levando-se em consideração os fatores acima, podese concluir que, da forma como o TRIPS tem sido aplicado no Brasil, ele se configura em um instrumento de manutenção do status quo atual, ou seja, TRIPS não fomenta, da forma como aplicado, o desenvolvimento da indústria nacional, o que pode ser verificado, exemplificativamente, por dois fatores. O primeiro diz respeito ao baixo número de pedidos de patente depositados no Brasil, e o segundo, à pequena participação dos nacionais nos pedidos brasileiros; ambos em comparação com países como Estados Unidos, Japão, Coréia, Austrália e Rússia, conforme se pode observar no gráfico abaixo (MCT, 2004).

Figura 1
Fonte: Coordenação-Geral de Indicadores - ASCAV/SEXEC. Site do Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT, 2004), com base em dados da OMPI, do INPI. (1) refere-se ao ano de 1999; (2) refere-se ao ano de 2000; (3) refere-se ao ano de 2003.

Para que o Brasil possa sair do labirinto em que se colocou ao assinar o TRIPS sem se encontrar em condições tecnológicas suficientes para lutar de igual para igual no mercado mundial globalizado, a saída é utilizar as liberalidades que o acordo TRIPS faculta aos países assinantes, tais como a licença compulsória. Tal comportamento, mais pró-ativo, permitiria, em primeiro lugar, desenvolver tecnologicamente a indústria nacional e só então entrar na luta de gigantes que é a concorrência mundial nos setores químico e farmacêutico. Cabe lembrar que a licença compulsória não se configura (como alguns insistem em afirmar) em um desrespeito à legislação, já que o TRIPS, principalmente em seus artigos 30 e 31, prevê a possibilidade de os países signatários adotarem exceções aos direitos exclusivos conferidos por uma patente. A conclusão é que o Brasil não pode manter o modelo atual, no qual ele não se utiliza - ou se utiliza forma muito tímida - das possibilidades legais e previstas no próprio acordo TRIPS. Não se trata, em hipótese alguma, de incitar os brasileiros ao desrespeito a um acordo internacional ou à lei, muito menos de defender a pirataria e práticas de concorrência desleal. Trata-se sim de defender a soberania do país, que cada vez mais dependerá da sua capacidade tecnológica e da proteção a esta conferida.

Agradecimentos

O autor agradece ao CNPq, pela bolsa RHAE concedida, (Processo 551895/2005-5) à ALANAC sob coordenação do Dr. A. C. Siani; e também ao profissional Henrique U. Tada, da ALANAC, pelas profícuas discussões e valiosas sugestões.

Referências

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ANGELL, M. The truth about the drug companies - how they deceive us and what to do about it. Random House Trade Paperbacks, New York, p.75, 2005b

DANNEMANN, SIEMSEN, BIGLER; IPANEMA MOREIRA, Propriedade Intelectual no Brasil, PVDI Design, Rio de Janeiro, p. 466, 2000a

DANNEMANN, SIEMSEN, BIGLER; IPANEMA MOREIRA, Propriedade Intelectual no Brasil, PVDI Design, Rio de Janeiro, p. 467, 2000b

LONDE, C.R.O. A Construção Do Atual Sistema De Propriedade Intelectual. I. Aspectos Históricos, Conformação Atual E Conseqüências Na Indústria. Fitos, vol. 1, n.3, p.30-35, 2006

MCT: MINISTÉRIO DA CIÊNCIA E TECNOLOGIA. Depósito de patentes de invenção nos escritórios nacionais em relação ao produto interno bruto (PIB), 2004. Disponível em http://www.mct.gov.br/index.php/content/view/9238.html, acesso em 11/04/2006.

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XUE, H. Between the Hammer and the Block: China´s Intellectual Property Rights in the Network Age. University of Ottawa Law and Technology Journal, v.2, n.2, p.291-314, 2005. Disponível em: http://www.uoltj.ca/articles/vol2.2/2005.2.2.uoltj.Xue.291-314.pdf, acesso em 11/06/2006.