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Perspectiva

A crise econômica mundial sem fim, interpretação e consequências

François Chesnais
Tradução: Glauco de Kruse Villas Bôas
Tradução da palestra proferida pelo Professor Emérito François Chesnais da Universidade Paris XIII, no 1° Seminário International da RedesFito: inovaçäo e biodiversidade na perspectiva da sustentabilidade, organizado pelo Núcleo de Gestão em Biodiversidade e Saúde – NGBS, Instituto de Tecnologia em Fármacos-Farmanguinhos/ Fundação Oswaldo Cruz.

O Senhor de Kruse Villas Bôas e os organizadores deste encontro me solicitaram falar sobre a situação econômica mundial neste novo ano da crise econômica e financeira mundial. De fato, a sua dimensão financeira teve início no começo de julho de 2007, ainda que seu momento paroxístico tenha ocorrido em setembro de 2008, com a falência do banco Lehmann na Wall Street, o que provocou o início da recessão mundial.

Começarei propondo uma interpretação para explicar o porquê se trata de uma crise similar, em sua amplitude, àquela de 1929, sendo entretanto, obviamente muito diferente em seu contexto mundial e em alguns dos seus traços específicos. Tentarei explicar porque a crise instalou-se em longo prazo, porque não há saída para a crise que se apresenta no horizonte, uma vez que os impactos do nosso sistema econômico capitalista no ambiente tornam-se fatores controladores da situação social e da política mundial.

O final de minha apresentação trará uma intervenção, talvez arriscada, no seu campo de pesquisa, visto que falarei de um dos modos de produção agrícola que destroem a biodiversidade.

Antes de começar, eu gostaria de dizer que, como europeu do oeste da Europa, eu me benefício de condições de trabalho das quais pesquisadores engajados e pesquisadores cidadãos de outros países nem de longe se beneficiam. Ainda temos alguns jornais relativamente livres, ou seja,  jornais cujo conteúdo não é totalmente ditado pelos proprietários  capitalistas; uma rádio pública de excelente qualidade bem independente do capital financeiro e de sucessivos governos; alguns canais de televisão com as mesmas características e, também,  uma proliferação de produções intelectuais, ensaios, de trabalhos críticos, poucos em economia, verdade seja dita; e muitos em filosofia política, em sociologia e em ecologia política. A produção teórica de Edgar Morin, que lamentavelmente, não está aqui hoje, é um testemunha dessa multiplicidade.

Uma época histórica radicalmente nova

Os cálculos feitos pelo Banco Mundial do PIB mundial per capita (per capita world GDP) mostram a queda da taxa de crescimento econômico desde 2010 e, em 2015 pela primeira vez, quando os números foram reunidos em valores absolutos. As elevadas desigualdades de rendimento significam um declínio na renda para uma grande proporção da população, em grande número de pessoas. Não para aquelas listadas nas estatísticas da extrema pobreza (1.90 dólares por dia), mas aquelas muito numerosas, que são descritas nos relatórios da Organização Mundial do Trabalho, para quem o desemprego e o emprego precário, na maioria dos países, deterioraram as condições de vida e aumentaram a vulnerabilidade, tendo ainda que lidar com políticas de austeridade dos governos, exacerbando ainda mais a situação.

A duração da crise, seus efeitos e a ausência de outra perspectiva além de uma quase estagnação, alimentam e são agravadas por uma crise ideológica e cultural multiforme. Na Europa e em suas formas específicas nos Estados Unidos, os sintomas mais graves são a forte ascensão do nacionalismo e a forte ressurgência do racismo. A crise econômica alimenta medos que podem ser facilmente direcionados contra certas comunidades, certos grupos, principalmente a população de origem árabe na Europa e nos Estados Unidos, os negros e, em menor escala, os latinos. A corrupção é endêmica nos sistemas políticos de muitos países. Em todo lugar a política se reduz aos esforços de alguns para se manter no poder e de outros para acessá-lo, através do todos os meios necessários. Isto os leva à uma hierarquização de problemas sujeitos ao debate público, em favor daqueles que alimentam os medos, e em detrimento daqueles que são decisivos no momento histórico da sociedade humana em que entramos. Isto dá uma dimensão ética à nossa atividade como pesquisadores e nos impõe uma responsabilidade particular de dizer as coisas, de explicar pelos meios de comunicação que dispomos, ainda que tão fracos, onde nós, a sociedade humana, estamos.

A acentuada perda de dinamismo do capitalismo, que certos economistas chamam de estagnação secular, é acompanhada de um esgotamento de recursos naturais e de mudanças climáticas, como resultado das emissões de CO2 que colocam fim a um período histórico muito, muito longo. Nós entramos em uma nova era geológica cujo começo e características são objetos de importantes debates. É sob a influência do capitalismo, dentro da moldura de uma sociedade mundial, hoje capitalista de parte a parte, que a humanidade entrou nesta fase totalmente nova de sua história. Abordarei a análise a partir de traços próprios e do movimento de expansão específico deste modo de produção, desta forma de organização da atividade econômica. Entretanto, cada pesquisador tem sua moldura analítica própria, sendo preferível especificá-la desde o início. A minha é marxista ou marxiana. Centra-se no movimento de acumulação do capital, suas forças motrizes e as contradições que elas geram. Por outro lado, como escreveu recentemente no jornal Le Monde um grande sociólogo francês Olivier Roy, a pesquisa em ciências humanas não é uma ciência exata, o pesquisador faz parte de sua própria pesquisa [1]. No meu caso, o pesquisador que vos fala foi militante político desde os 20 anos.

Diferentemente das crises civilizatórias da Primeira e da Segunda Guerra Mundial, cujo Holocausto foi o ponto culminante (o historiador inglês Ian Kershaw fez, recentemente, uma síntese importante «To Hell and Back: Europe, 1914-1949») das quais os países de fora da Europa escaparam, a crise que vivemos é mundial, é crescente e inclui uma dimensão de irreversibilidade, não presente em 1945. Juntamente com suas expressões estritamente econômicas incluindo a estagnação da taxa de crescimento mundial do PIB per capita (per capita GDP), a mudança climática, a perda da biodiversidade ou mais precisamente a escala planetária da extinção de espécies animais e vegetais, o esgotamento de muitas fontes não renováveis ou  muito lentamente renováveis, estão em ritmos diferentes em diversas partes do globo minando as condições ecossistêmicas necessárias à reprodução social e criando contextos de confronto político e social, nacional e internacional, de guerras entre classes, entre povos e Estados.

Um sistema que atinge seus limites sem as condições de superação

Como acabei de recordar, os fundamentos de minhas posições teóricas repousam, não exclusivamente, mas amplamente em Marx. Na revisão do livro "O Capital", que fiz ao curso dos últimos anos, à medida em que a crise global se estabelecia ao longo do tempo e que as perspectivas de sua fusão com as consequências das mudanças climáticas aumentaram, minha atenção voltou-se para o pleno florescimento de tudo o que faz do capitalismo um sistema consubstancialmente incapaz de confrontar as questões como a  finitude de recursos e de estabelecer limites aos danos causados aos ecossistemas que regem o clima. Eu tive conhecimento na ATTAC (Associação pela Tributação das Transações Financeiras para Ajuda aos Cidadãos) dos relatórios do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas-PIMC (IPCC), sobre dados científicos, permitindo formular vários cenários de laços retroativos positivos (positive feedback loops) de encadeamento cumulativos [2].

É por isso que hoje, como marxista, defendo, ao lado de um número muito pequeno de outros pesquisadores, uma posição não falada por alguns, sendo uma absoluta heresia para outros, que, por causa de sua relação destrutiva das condições ecossistêmicas que permitiram seu desenvolvimento, o capitalismo atingiu limites, não mais relativos e temporários, mas absolutos e definitivos [3].

A burguesia mundial em 1989-91 celebrou com Fukuyama "a vitória da democracia" e o "fim da história". O que nós experimentamos, foi o começo de uma história em que o caos tomou conta, o caos absoluto em algumas partes do mundo. Por enquanto, o capitalismo parece ser "o horizonte insuperável da humanidade" (François Furet), mas esse horizonte é de lutas impiedosas por recursos em via de rarefação e transformações nas condições climáticas. O que está surgindo serão tentativas de estabelecer um "tacão de ferro" global, para retomar o famoso romance de antecipação política de Jack London. Aqueles e aquelas que se engajarem em lutas para sair do capitalismo o farão pela ética. Eles terão talvez inventividade e força, mas o movimento da história não estará do seu lado.

A hipótese de uma perda do controle social radical

Como o antropólogo francês Alain Bertho escreveu em um artigo recente no Le Monde, a era moderna era aquela do "poder político subjetivo, como estratégia política do possível inscrito na História" [4]. Para Hegel, como herdeiro e último representante da filosofia do Iluminismo, há uma razão na história.  Quando Marx escreveu que os homens fazem a sua história nas condições que eles herdam o passado, ele apresenta estas condições como estado controlável no sentido de que o capitalismo, apesar da irracionalidade da sua racionalidade (caráter fetiche das relações estabelecidas entre os homens pelo mercado, as forças cegas da concorrência, etc.) criariam as condições objetivas e subjetivas para sua superação, um desenvolvimento e socialização dos meios de produção e um proletariado concentrado capaz de ser o agente de uma transição para um novo modo de produção.

Por sua vez, diante da crise dos anos 1930, Keynes desenvolveu a teoria econômica de um capitalismo controlável por meio de políticas governamentais apropriadas: no nível nacional, é claro, mas até mesmo no nível de um sistema monetário internacional concebido de forma cooperativa.

Na esfera política, os séculos XX e XXI experimentaram situações com efeitos históricos irreversíveis de longo alcance, como resultado de sequelas cumulativas, levando a uma perda acentuada de controle pelos atores originais. Os acontecimentos dos anos que antecederam a Primeira Guerra Mundial até o assassinato real de Sarajevo são o principal exemplo que abre o que tem sido justamente chamado de "Guerra Civil Europeia", que marca o início do declínio a longo prazo do seu lugar no mundo. Em uma escala qualitativamente menor, a invasão do Iraque por Bush e Blair é outra que as pessoas do Oriente Próximo e Oriente Médio estão pagando pelas intermináveis consequências no horizonte. Em ambos os casos, as dimensões econômicas ligadas aos interesses e rivalidades imperialistas não estiveram ausentes, mas o não-controle de determinadas situações políticas e a irreversibilidade de suas consequências permanecem explicáveis ​​por fatores políticos.

No caso da incapacidade de gerir recursos limitados e respostas às mudanças climáticas, o não-domínio é sistêmico.  Devemos procurar as causas disso em certas características constitutivas do capitalismo e na situação em que ele se encontra no fim de um período excepcionalmente longo de crescimento para certos países, incluindo os Estados Unidos na década de 1940, na Segunda Guerra Mundial e o caso de outros países, incluindo os da Europa Ocidental e do Japão nos anos 50.

No sistema capitalista, duas condições obrigatórias para uma acumulação e crescimento contínuo cada vez mais difíceis de alcançar

Ao simplificar as questões para o propósito da apresentação de hoje, pode-se dizer que o desdobramento e a expansão da produção capitalista exigem simultaneamente que as perspectivas de lucro levem as empresas a investir e uma demanda suficiente para vender as mercadorias produzidas. No entanto, mesmo em seu movimento, o capital torna essas duas condições cada vez mais difíceis. Ele levanta barreiras para si mesmo. Por um lado, a ampliação da escala de produção por meio de tecnologias, cada vez mais eficientes, reduz não apenas o custo, mas também a quantidade de lucro contida em cada unidade produzida, sejam máquinas ou bens de consumo. Ao mesmo tempo, cada empresa considera os salários como um custo que enfraquece sua competitividade. Procura soluções, substituindo os funcionários por máquinas, que hoje incluem softwares, mas também explorando as reservas de mão-de-obra ("exército industrial de reserva"), as pessoas do campo e os imigrantes. O resultado desejado é aumentar a concorrência entre os trabalhadores e impor salários mais baixos a eles. A consequência é a falta de demanda e uma tendência à superprodução de caráter endêmico. Isso é o que é chamado a primeira contradição do capitalismo, a segunda, da qual falaremos mais tarde, sobre as consequências de suas relações com a natureza.

Os resultados desse movimento contraditório são duplos. Em primeiro lugar, a concentração industrial e a formação de monopólios ou oligopólios no mercado para contrabalançar a queda da taxa de lucro em benefício de empresas cada vez maiores, como resultado da absorção ou fusão da queda nos lucros. Em seguida, as crises de superacumulação de capital, excesso de investimento em capacidade produtiva e superprodução de bens que periodicamente agitam o sistema e terminam apenas quando as duas condições de produção apresentadas acima são novamente satisfeitas.

Conforme se desenvolveu, o capitalismo teve mais e mais dificuldade em atingir seus objetivos. No primeiro paliativo, a primeira resposta foi o das últimas décadas do século XIX, com a expansão externa sob duas formas: 1ª - o crescimento dos Estados Unidos e a marcha em direção ao Oeste, que fizeram dos Estados Unidos o berço da primeira crise financeira e o espaço onde elas se reduziam; 2ª - a expansão da Grã-Bretanha, seguida por outros países europeus pelas conquistas coloniais e o estabelecimento de relações comerciais com os países da ocupação espanhola e portuguesa na América Latina. Vemos a internacionalização das crises, o surgimento de crises globais de superprodução.

O segundo paliativo, a segunda resposta foi a guerra. É por este meio que as potências capitalistas emergiram da crise de 1929. A Alemanha de Hitler eliminou o desemprego preparando a Segunda Guerra Mundial, e nos Estados Unidos a saída da crise foi feita definitivamente após sua entrada na guerra em 1942.

Os dois primeiros subperíodos do longo crescimento mundial contemporâneo

Circunstancialmente ao restaurar plenamente os dois requisitos de oportunidades de investimento e demanda solvente, ambos imensos, a Segunda Guerra Mundial lançou a longa fase de operação do capitalismo com recessões e crises financeiras circunscritas, mas sem crise global antes de 2008. Esta longa fase pode ser dividida em três sub-períodos.

No primeiro subperíodo, na Europa e no Japão a escala da destruição, portanto, dos investimentos em reconstrução e modernização foram o ponto de partida de uma longa fase de expansão da acumulação industrial que se esgotou no início dos anos 1970, pouco antes do chamado "choque do petróleo", que termina com a recessão global de 1974-75. A reconstrução e modernização proporcionaram oportunidades de negócios e oportunidades de investimento nos Estados Unidos, mas contaram com a Guerra da Coréia e de uma indústria de armas permanente para manter o crescimento. Na França, ainda nos referimos nostalgicamente aos "trinta gloriosos". Na América do Sul, foi a época de uma industrialização largamente auto centrada e de condições impostas às empresas estrangeiras (apogeu da Comissão Econômica para a América Latina e Caribe-CEPAL) e das políticas de substituição de importações.

Esta fase deriva da "Grande Depressão" dos anos 1930 e da Segunda Guerra Mundial, à fraqueza econômica e política dos bancos e da influência muito secundária dos mercados financeiros. Em países importantes, o sistema financeiro é o do crédito administrado, em outros, de uma aliança próxima entre o banco e a indústria, em benefício desta. Nos Estados Unidos, a separação entre bancos comerciais e bancos de investimento, imposta pela lei Steall-Glass de 1934, é rigorosamente aplicada. A única exceção é a Inglaterra, cuja cidade de Londres retoma seu papel de porto seguro de investimento financeiro e reduto de acumulação financeira distinta da acumulação industrial.

É, portanto, na Inglaterra que o segundo subperíodo se abre, em 1978. Com o apoio e o benefício da cidade, o partido conservador liderado por Margaret Thatcher lança a contra-revolução dita neoliberal, anti-trabalhista e neoimperialista, cujo programa foi preparado por Hayek. Esta, logo foi seguida por Ronald Reagan e ambos impõem passo a passo essa política a outros países. A liberalização, desregulamentação e interconexão dos mercados financeiros, a chamada globalização financeira, foi o primeiro passo. Os anos 1978-1982 viram a restauração do poder dos mercados financeiros e a implementação em um ambiente de crescimento muito mais fraco do que o período anterior, as políticas que estão começando a fazer uma redistribuição muito significativa da renda em favor dos proprietários de títulos da dívida pública, primeiro dos países do Terceiro Mundo e depois com os efeitos acelerados da acumulação financeira, a dos países capitalistas centrais, os Estados Unidos, o Japão e, em menor medida, a Europa. Quando as taxas de juros da dívida pública caem, os investidores vão para os mercados acionários.

O que se percebe no nível macroeconômico como uma mudança na distribuição da riqueza produzida entre capital e trabalho é baseada tanto no relativo, se não absoluto, declínio nos salários e no aumento dos dividendos, quanto nos mecanismos públicos de "transferência reversa", juros sobre a dívida pública e cortes de impostos sobre capital e riqueza. O processo é cumulativo. Quanto mais forte o capital se torna no campo das finanças, mais ele pode aumentar sua agressividade nas empresas, contra os trabalhadores e seus sindicatos. Na década de 1990, como Thomas Picketty e seus colegas calcularam para os Estados Unidos, as diferenças de renda e riqueza voltaram aos níveis anteriores a 1929.

2001-2007: uma crise retardada no tempo que só foi mais forte

Chegamos ao último dos três subperíodos da longa fase de crescimento. É de longe a fase mais curta desde que começou em 2001 e durou apenas sete anos, terminando em 2008. 2001 é o ano da adesão / cooptação da China à Organização Mundial do Comércio, após longos anos de negociações. A adesão da China à OMC e a abertura da Índia foram o auge da liberalização e da plena realização do mercado mundial, o espaço de desdobramento de capital. A China, em particular, representou para o capitalismo globalizado, um terreno de investimentos e um mercado com efeitos de treinamento para o crescimento das economias vizinhas da Ásia e das principais economias exportadoras de produtos de base na América Latina, Brasil e Argentina na liderança. Contraditoriamente, isso fez da China uma das bases da superacumulação e da superprodução, globalmente abundantes tanto pela quantidade de capacidade de produção quanto por seu impacto na distribuição de renda e, portanto, no tamanho da demanda efetiva em escala mundial. Vou explicar isso daqui a pouco.

É nos Estados Unidos que a atual crise global teve início entre 2007-2008 como uma crise financeira focada em ativos hipotecários. A razão é que entre 2001-2003 foi nos Estados Unidos, também, o início de uma forte mudança, no uso do endividamento como meio de apoiar a demanda doméstica, e nos setores de construção e investimento imobiliário o pilar de crescimento. O crescimento, sem precedentes, do crédito doméstico baseou-se na técnica financeira de titularização, que permite aos bancos e credores hipotecários converter seus créditos em títulos e vendê-los a investidores financeiros que assumem o risco. À medida que a bolha imobiliária se esgotava, as hipotecas não eram mais oferecidas apenas às famílias com renda relativamente alta e estável, mas também a outras que não estavam nessa situação. A desregulamentação acelerada revelou empresas hipotecárias se desenvolverem operando de modo fraudulento. Elas são as que estão diretamente por trás do mercado de empréstimos "subprime". Concomitantemente, os bancos criaram os chamados títulos "sintéticos", que consistem de uma montagem (a "embalagem") perfeitamente opaca de dívidas de origem e confiabilidade muito diferentes.

A concorrência internacional dos trabalhadores

Chegamos à explicação das características do nosso momento histórico. O primeiro processo econômico, social e político, que pesa na situação atual, e ajuda a definir esse momento histórico, é a competição dos trabalhadores em termos de salários, direitos sociais e condições de trabalho. É o resultado da liberalização dos intercâmbios comerciais e de investimentos diretos, tanto no âmbito da OMC como nos mercados únicos e nas zonas de livre comércio (a União Europeia, o NAFTA). O processo de concorrência dos trabalhadores começou no segundo subperíodo, mas observou-se um salto qualitativo com a incorporação da China e da Índia no mercado mundial. Houve aumento da força de trabalho global de 1,46 bilhão para 2,93 bilhões de trabalhadores, o que o economista norte-americano Richard Freeman chamou de "A Grande Duplicação". O "salário China", e, hoje, "salário Vietnã", se tornaram norma de referência. Esta competição, ainda mais agravada pelos acordos de livre comércio, cujo NAFTA é o exemplo na América Latina, molda a distribuição de renda em cada país e, portanto, a dimensão da demanda efetiva em escala global. Por outro lado, as empresas transnacionais investem onde os mercados são maiores e com crescimento mais forte, e onde, também os salários, os direitos sociais e a legislação sobre as condições de trabalho são os mais vantajosos.

O enfraquecimento dos trabalhadores que se deparam com o capital nos negócios tem consequências políticas. Ele carrega o medo, procura por um culpado, o imigrante latino ou africano de acordo com os continentes. Nós sentimos os efeitos na luta contra a mudança climática.

"Financeirização", globalização financeira e crises financeiras.

O segundo processo econômico, social e político que pesa na situação atual e que ajuda a definir o momento histórico é a "financeirização".

As expressões sociais são proteiformes, mas a base é a posição assumida no funcionamento do capitalismo contemporâneo pelo processo de "acumulação" particular da forma específica de capital que Marx chama de "capital portador de juros", também chamado de capital-dinheiro, cuja avaliação é feita através de aplicações financeiras em mercados de títulos especializados.

Durante o período que vai de meados da década de 1960 até o início da década de 1990, várias fontes vieram alimentar a centralização nas mãos de bancos e fundos de pensão e investimento financeiro de dinheiro, buscando valorizar-se financeiramente.  São os lucros não reinvestidos pelas empresas, aqueles que eles fazem em suas economias de origem e em seus mercados domésticos, e também os resultantes da repatriação de dividendos e royalties como resultado de investimentos diretos no exterior (IDE-Investimento Direto Estrangeiro). Estas são as rendas de petróleo das monarquias do Golfo. Houve fluxos de juros provenientes da dívida do Terceiro Mundo, além de fluxos de juros sobre empréstimos bancários internacionais para países em vias de industrialização no sudeste da Ásia.  Finalmente, há valores centralizados no seio do sistema financeiro nos países de sistemas de pensões financiados (fundos de pensão e fundos mútuos nos Estados Unidos, companhias de seguros na Europa). Após um longo processo de centralização inicial que passou quase despercebido, esses sistemas previdenciários tornaram-se a partir de meados da década de 1980, um dos pilares da acumulação financeira.

A acumulação financeira nos países no centro do sistema mundial, especialmente os do sistema de pensões do mercado financeiro, os levou a exigir a extensão internacional da liberalização financeira e da desregulamentação e privatização. Esses requisitos foram reunidos em um texto bem conhecido na América do Sul, o Consenso de Washington, um dos pilares da globalização financeira. Inevitavelmente, a acumulação financeira e a globalização assistem ao retorno de crises financeiras: grandes crises bancárias regionais nos Estados Unidos em 1980-1982, quebra do mercado de ações em Nova York em outubro de 1987, falência mexicana em dezembro de 1994, crise asiática de 1997-1998, Crise russa e resgate espetacular de um fundo de cobertura (hedge fund) em 1998, o crash da Nasdaq, em Nova York, em 2000 e, finalmente, a crise financeira de 2007-2008.

Ao longo do período houve absorções e fusões das quais saíram os vinte e tantos grandes bancos globais. As bancarrotas, espetaculares de 2008, resultaram em fusões que aumentaram ainda mais o movimento de concentração. A enorme quantidade de quantias de capital-dinheiro acumuladas nas mãos de bancos e fundos de investimento, a massa que busca se valorizar começou a causar lentamente o declínio do seu rendimento. Trabalhos estatísticos recentes mostram, em retrospectiva, que a partir de 1995 a taxa de juros sobre empréstimos começou a cair de forma muito constante. Voltaremos daqui a pouco às implicações e consequências desse sistema financeiro global de taxas de juros reais próximas de zero, se não negativas.

Nenhuma saída para a crise à vista:

1. As consequências do resgate do sistema financeiro e o papel estabilizador da China

Para tentar explicar porque oito anos depois de seu começo não há saída para a crise global à vista, podemos começar com a ação dos governos. Diferentemente da década de 1930, o pensamento crítico foi abafado e uma ação contra juros poderosos, inexistente: sem Keynes, nem Roosevelt. A inexistência de um sistema social diferente, completado pelo colapso da União Soviética e do socialismo real e o grande enfraquecimento do trabalho contra o capital, permite aos governos agir para conter a crise o mais rápido possível, sem atingir o modelo neoliberal e preservar o status quo. Há, para a grande diferença dos anos 1930, um acordo que deve, pelo menos temporariamente, agir de forma coordenada.   A ação conjunta dos bancos centrais dos países centrais com moeda própria (Estados Unidos, Reino Unido, Zona do Euro, Japão, Suíça) foi, portanto, acrescentada ao estabelecimento do G20.

A pedra angular foi a política financeira.  Com a única exceção do banco Lehmann, os bancos foram resgatados aumentando sua concentração nos Estados Unidos e na Europa, e no caso norte-americano de criação monetária sob forma inédita de compra de ativos invendáveis do Federal Reserve-Fed (Banco Central norte-americano). Isso dobrou o apoio estatal à indústria dos mesmos países, notadamente a do automóvel, até que uma parte das capacidades excedentes fossem absorvidas pelo fechamento de fábricas. Mas, ao mesmo tempo, a China foi solicitada a aumentar seus investimentos para continuar importando matérias-primas. O Brasil, por exemplo, conseguiu manter, até 2013, a ilusão de ter escapado da crise global.

O resultado dessas políticas tem sido um forte crescimento da concentração industrial e bancária, uma distribuição de lucros para o benefício das empresas cotadas na bolsa de valores, a destruição de uma fração muito pequena dos títulos de dívida, preservando desta maneira o peso econômico e político dos investidores financeiros, finalmente, por causa do lugar atribuído à China e as políticas solicitadas entre 2009-2010 ao seu governo, a persistência de uma situação de superacumulação e superprodução. Para isso, deve ser adicionado ainda o agravamento das desigualdades de renda e riqueza, como: o alargamento do fosso, o 1% e até mesmo os 0,1%.

Referindo-se às duas condições para o crescimento sustentado definidas acima – as perspectivas de lucro suficientes para impulsionar o investimento em larga escala e demanda suficiente para vender os bens produzidos - as respostas à crise não ajudaram em sua emergência, especialmente a partir de 2011, os investidores financeiros obtiveram na Europa, em particular, as políticas de austeridade dos governos e redução da dívida pública. A criação de ativos monetários na forma de ativos financeiros pelos bancos centrais tornou-se, mais do que nunca, o único instrumento de apoio à atividade econômica.

Não há saída para a crise à vista:

2. Novas tecnologias não levam ao crescimento

O uso de duas grandes respostas anteriores de saída para a crise está fechado. O capitalismo não tem nenhum exterior ao qual se expandir, "se não tivermos planos de nos instalarmos no planeta Marte". Não há sinal, felizmente, dos Estados Unidos ou da China para iniciar uma guerra mundial. A única possibilidade seria uma onda de novas tecnologias com propriedades análogas semelhantes às das grandes indústrias do final do século XIX e meados do século XX, aquelas de se abrirem a enormes mercados e fazerem um apelo massivo à contratação de trabalhadores cujos salários criariam parte da demanda. Aquilo que Ford teorizou e aplicou em sua empresa na década de 1920. As novas tecnologias não têm essas propriedades, especialmente porque, se estivessem unidas em certos pontos do sistema, teriam de ser fortes o suficiente para ter um efeito de treinamento global.

Em primeiro lugar, essas tecnologias contribuem, na maioria dos casos, principalmente para a melhoria dos objetos existentes (automóveis, por exemplo). Existem, é claro, exemplos como telefones inteligentes (smartphones), onde é possível considerar que existe um mercado massivo completamente novo. Mas, eles são produzidos sob condições de trabalho e salários muito diferentes daqueles do fordismo. Em segundo lugar, quando se trata de robótica, as novas tecnologias abrem, sobretudo, para as empresas que têm muitos setores, a possibilidade de substituir os homens pelas máquinas de uma forma particularmente radical. Eles são radicalmente "poupadores de mão-de-obra". O efeito será particularmente forte nos setores de serviços, não apenas no varejo, mas em todos aqueles onde as empresas podem impor a coprodução do serviço para o cliente. O futuro do carro é anunciado como sendo o do piloto automático. A Uber encomendou frotas de veículos autônomos, bem como grandes municípios para o transporte público.

O legado econômico, social e ideológico do crescimento muito longo

Os números do Banco Mundial sobre o crescimento do PIB per capita mundial, recordados no início da apresentação, confirmam o fim do crescimento muito longo. Isso nos deixa com o legado de um grau de desenvolvimento sem precedentes com características às quais Marx se referiu muito vagamente ao falar de um sistema dirigido pelas "forças cegas da competição", e fez emergir outros aos quais o pensamento em certos casos dedicou atenção, mas sem que seu caráter sistêmico fosse esclarecido. Farei, portanto, uma lista provisória de uma série de "fatos estilizados" [5] que me parecem caracterizar o capitalismo contemporâneo.

Há um primeiro grupo que diz respeito, digamos, a simplificar a economia. Este inclui:

Um segundo grupo de "fatos estilizados" diz respeito, para simplificar novamente, as dimensões sociais e culturais da ação estatal.

Um terceiro grupo de "fatos estilizados" está localizado mais diretamente na interface com a questão ecológica.

Esses fatos estilizados permitem compreender até que ponto a luta daqueles e daquelas que se mobilizam sobre as questões ecológicas será difícil.

A nova era geológica do Antropoceno

Devemos agora chegar à articulação entre crise econômica e financeira e crise ecológica. Podemos apresentá-las como se sobrepondo, como fiz em meus primeiros textos, mas é insuficiente. Como resultam do funcionamento do capitalismo, são portadores de interações que levam ao agravamento mútuo.

É aqui que sou obrigado a me aventurar em um terreno que é seu, e que me aproximo como profano, a saber, nossa entrada na nova era geológica do Antropoceno, onde ou "Homem" por suas atividades econômicas tornou-se a força geofísica que está mudando o planeta. Essa incursão é obrigatória porque, se o conceito foi desenvolvido a partir de pesquisas físicas e químicas, suas implicações são políticas e sociais, pois estabelece que, por causa de suas atividades, "o homem" transformou a biosfera ao ponto de poder ameaçar a capacidade do planeta de continuar a proporcionar a vida nas condições que foram aquelas dos séculos que viram o crescimento e a ascensão da modernidade.

Atividades com potencial para causar mudanças significativas no meio ambiente da Terra incluem, além das emissões de gases de efeito estufa responsáveis pelas mudanças climáticas:

Impacto desigual e impactos sociais das mudanças climáticas

O desafio da questão "ecológica" é a da durabilidade de algumas das condições "naturais" necessárias à reprodução econômica e social de sociedades específicas. Eu pego a noção dos trabalhos antropológicos importantes dos anos 1970, incluindo os de Maurice Godelier. Ele fez: "condições de reprodução (e não-reprodução) dos sistemas sociais, sob a dupla restrição de suas estruturas internas e seu ambiente ecológico", um de seus campos de pesquisa, usando até mesmo o termo, até então pouco utilizado, ecossistema.

No caso da mudança climática, as condições "naturais" necessárias para a reprodução social dependem da biosfera e de muitos ecossistemas, dos quais sabemos agora a grande fragilidade que têm (correntes marinhas, geleiras, florestas primárias, etc.). Os efeitos da mudança climática já são desastrosos para os habitantes indígenas do Ártico, da Groenlândia e do Himalaia, para os pastores da África Oriental, os ilhéus de pequenos Estados do Pacífico (ameaçados de imersão), os mapuches do Chile e os Guaranis da Argentina. Por enquanto, os efeitos sociais dos processos de degradação dos ecossistemas se manifestam de forma desigual e diferenciada no espaço global, representando um grande desafio político. Em alguns países capitalistas avançados, tal como o furacão Katerina mostrou em Nova Orleans em 2006, a capacidade de lidar com os chamados desastres "naturais" e especialmente suas consequências imediatas e mais distantes sobre as diferentes classes ou camadas sociais se tornaram fatores que aumentam e agravam as diferenciações sociais anteriores.

"Antropoceno" ou "capitaloceno"?

Essa observação é um convite para dar um passo adiante. O historiador ambiental americano Jason Moore observou, em trabalhos publicados, primeiramente na Internet e depois em um livro em 2015, o Capitalismo na Teia da Vida, Ecologia e Acumulação do Capital. Ele submete o conceito de Antropoceno à crítica relevante e argumenta que o termo mais justo seria o capitaloceno. Moore observa primeiro que, para os geólogos, há sempre a questão do início desta nova época geológica: depois de 1850, com o aumento de CO2 na atmosfera induzido pela revolução industrial, como a maioria dos pesquisadores argumenta? Ou desde a Segunda Guerra Mundial? Moore também argumenta que, se aceitarmos o conceito do Antropoceno, o homem em geral coloca-se diante da natureza, para o pior ou para o melhor, podemos mobilizá-lo para buscar a solução para o nível de CO2 do lado da geologia-engenharia ou para defender o neo-malthusianismo para países pobres.

Abordar a história de nossas sociedades usando o conceito de Antropoceno oculta o fato de que a transformação da biosfera pela atividade humana não foi produzida por ou para o benefício de todos os homens igualmente. As emissões de CO2 se intensificaram a partir do século XIX, ainda mais ao curso do crescimento de longo prazo, discutido em minha palestra. Entretanto, segundo Moore, o modo próprio do capitalismo de lidar com a natureza é bem anterior a revolução industrial, sendo durante as conquistas militares e ocupações coloniais posteriores a 1492 o verdadeiro ponto de virada na relação do homem com a natureza, onde grandes minas de Potosí e as plantações de cana das ilhas do Caribe tem seus primeiros campos de experiência e símbolos.

O surgimento do modo de pensar e tratar a natureza como deveria ser entendido, com a ajuda da atividade científica para ser domada e posta a serviço da atividade humana, deve ser visto de maneira contraditória, com dimensões positivas e negativas. Na Europa, essa ruptura epistêmica que começa com Copérnico e Galileu emancipou a sociedade da religião, do catolicismo, mas introduziu o dualismo do homem diante da natureza, fundamentando ideologicamente a ideia de que a natureza está aí para ser explorada e abriu o caminho para o saque sistemático. A fórmula de Descartes "Homem, mestre e possuidor da natureza" abriu o caminho para o modo capitalista de se comportar em seu ambiente geofísico, fornecendo o   fundamento filosófico. Nas sociedades, que são chamadas de primitivas, a percepção de que os homens fazem parte da natureza, embora distinta, perdura. Há mais: fora da Europa a partir do século XVI, a "descoberta" e conquista do México, e a extensão do domínio Espanhol e, em seguida, Português na América do Sul fizeram com que a designação de humanidade, o pertencimento à categoria "homem" fosse reservada desde o início a uma parcela da sociedade. As populações indígenas da América e, ainda, os escravos trazidos da África para o trabalho nas minas e nas plantações, foram excluídos, a eles foi negado o status de seres humanos.

A demanda por matérias-primas baratas e em quantidades ilimitadas e a "segunda contradição do capitalismo"

Estamos diante das consequências da proposição "Homem, senhor e possuidor da natureza". Estamos conscientes, graças ao trabalho dos cientistas do IPCC, dos ataques cada vez mais graves à biosfera e aos ecossistemas muito frágeis ligados a ela, que resultam das quantidades de emissões de CO2 devido aos nossos modos de produção e consumo. Desde a Cúpula da Terra no Rio em 1992, as conferências ambientais se sucederam, mas as mudanças foram marginais, na melhor das hipóteses. Numa abordagem marxista, a exploração ilimitada dos recursos naturais e o aumento contínuo das emissões de CO2 é consubstancial ao capitalismo.

Aqui, paro para fazer um parêntese importante. O frenético produtivismo do "socialismo real", um regime cuja maioria esmagadora dos trabalhadores não avaliou as carcteristicas senão após o colapso da URSS, baseava-se na exploração de homens e recursos amplamente análoga a do capitalismo. O ponto de partida da abordagem marxiana é uma passagem dos Manuscritos de 1857-58, onde Marx escreve que "o capital, enquanto representa a forma universal da riqueza – o dinheiro – é a tendência ilimitada e incomensurável a superar os seus próprios limites. Caso contrário, deixaria de ser capital, o dinheiro enquanto produtor de si mesmo". A realização pelo capital de seus atributos de "autômato", de "valor em processo" perpetuamente voltado para sua auto-reprodução, supõe duas condições.

A primeira é a alquimia, muito peculiar, que surge do encontro do dinheiro que se tornou capital com o trabalho vivo. Para que a "tendência absoluta de enriquecimento" seja realizada, é necessário que "a conversão do trabalho (atividade viva e eficiente) em capital" deve ser desimpedida. Nós já conversamos um pouco sobre isso. Hoje, a competição direta de trabalhadores de um país para outro e de um continente para outro, fornece ao capital a oportunidade de se apropriar das propriedades ou qualidades da inteligência e da energia humana em escala global e com o melhor custo.

A segunda condição é poder extrair sem limites as reservas de matérias-primas e energia. A exploração ilimitada da força de trabalho adquirida, a exploração ilimitada e o esgotamento dos recursos naturais e, agora, a produção e a venda de bens sem levar em conta as emissões de gases do efeito estufa, caminham juntos. Eles estão contidos na noção de capital e naquilo que é inseparável da produção infinita de mercadorias, hoje em grande parte socialmente inúteis. Um dos interesses do trabalho de Moore sobre o termo capitaloceno é enfatizar a maneira pela qual o capitalismo organizou e organiza, mais feroz do que nunca, a extração de matérias-primas pelo critério do "mercado barato", que é tratado de forma depreciada, degradante, deixando para trás o desperdício da exploração. O "modelo de negócio" de mineração e agronegócio também foi de terceirização de custos sociais de cada empresa, a começar pela saúde dos trabalhadores e pelos custos ambientais relacionados à sua produção.

No caso da exploração dos trabalhadores, as consequências para o capital são o limite que leva à venda dos bens/ das mercadorias. No caso dos custos ecológicos, a terceirização por cada empresa tem sua internalização no nível sistêmico. Eles estão gradualmente emergindo como uma nova forma de barreira, de limite para a produção capitalista, aqueles que o primeiro economista "eco-socialista" americano James O'Connor batizou muito cedo, em 1988, sem ser ouvido na época. "Segunda contradição do capitalismo".  Ao contrário da "primeira contradição" mencionada acima, estes não são limites do tipo que o capitalismo foi capaz de superar a fim de abrir décadas de expansão. Estes são limites absolutos, marcados pela irreversibilidade ou, pelo menos, por uma reversibilidade muito lenta, de um tipo para o qual parar a progressão da exaustão requer rupturas muito profundas com os modos dominantes de produção, ocupação do espaço e organização da vida social.  Em uma intervenção em 2012, defendi a necessidade de uma nova "ruptura epistêmica" e tentei explicar seu conteúdo político e social tanto quanto científico e tecnológico. Eu gostaria aqui de registrar com vocês a referência deste artigo [8].

A agricultura de monocultura, impasse produtivo e graves efeitos ecológicos: um exemplo francês

A agricultura de monocultura oferece um exemplo claro e definido, para o qual dados científicos estão disponíveis sobre como a produção capitalista estabelece seus próprios limites e procura repeli-los usando os mesmos métodos, aqueles que levam ao impasse, causa impactos ecológicos gravíssimos. Exemplos específicos desses laços de retroalimentação positiva (positive feedback loops) são características dos mecanismos de aquecimento e de mudança climática. A agronomia da sustentabilidade e as práticas alternativas atuais utilizadas pelos agricultores progressistas também mostram que esses impactos podem ser contidos ou mesmo revertidos, mas sob a condição de superar a resistência dos interesses econômicos e políticos das empresas que praticam a monocultura, bem como daquelas, muito poderosas, que lhes fornecem sementes, fertilizantes e pesticidas [9].

O laço de retroalimentação positiva e o impasse que levou à monocultura foram estudados no caso francês para a produção de cereais. Essa monocultura de cereais faz parte de um modelo agrícola que o PIMC (IPCC) estima ser responsável por seu nível de uso de insumos químicos e mecanização de 14% das emissões globais de gases de efeito estufa, quase o conjunto dos transportes mundiais. Mas é o impasse da forma de produção, como tal, que merece nossa atenção. Na década de 1970, a monocultura francesa de cereais foi desenvolvida com as recomendações de uma geração de agrônomos produtivistas e todo tipo de ajuda pública. Baseou-se na concentração de terras, desmatamento, mecanização, abandono da rotação de culturas e, naturalmente, pousio e a utilização maciça de insumos químicos. Em maior grau do que os fertilizantes químicos, os pesticidas estão no centro do modelo. Eles tornam possível produzir mais com menos recursos humanos. Estudos mostram que eles entraram em um círculo vicioso.  A alta dos rendimentos, constatada ao longo de quatro décadas, foi seguida por sua estabilização ou estagnação e em seguida, seu declínio. As causas são o declínio da fertilidade de um ecossistema que foi privado da diversidade trazida pela rotação de culturas e o aparecimento precoce e crescente de resistência das plantas aos pesticidas. Ao invés de reduzir, o uso de pesticidas se generalizou.

Então, passemos a um estudo da Confederação Camponesa que diz: "de uso casual a uso permanente, do curativo ao preventivo". Como resultado, a França é o primeiro país consumidor de pesticidas na Europa e o terceiro maior do mundo, afastando-se da diversidade. A força econômica e política de grandes empresas de sementes levou a uma padronização de sementes. No momento, as mobilizações contra a hostilidade geral para com as OGMs, aqui plantas geneticamente modificadas, proibiram o seu uso. As consequências ambientais e de saúde da monocultura, baseadas em produtos químicos, são muito sérias: destruição da biodiversidade, da flora e fauna (incluindo a das abelhas com consequências muito sérias para a polinização), poluição do solo e da água, mutação de alvos de pesticidas (insetos, ervas daninhas ...), doenças ocupacionais entre os agricultores, doenças crônicas entre os moradores locais.

A agricultura de monocultura, impasse produtivo e graves efeitos ecológicos: o caso da soja e da agropecuária no Brasil

Chego ao impasse produtivo e aos laços de retroalimentação positiva gerados pelas monoculturas em regiões tropicais ou semitropicais. Em 14% das emissões globais de gases de efeito estufa, devido ao nível de uso de insumos químicos e mecanização, o PIMC estima que deve-se acrescentar os 17% de emissões de CO2 são devidos ao desmatamento que acompanha as monoculturas tropicais, que são as plantações de eucaliptos e pinus para a indústria de celulose e o óleo de palma para a indústria de combustíveis, a produção de soja e cana-de-açúcar para biocombustíveis e a criação de espaços imensos para a criação extensiva de gado. "Não vou evitar o caso do Brasil, mesmo que seja extremamente delicado para um convidado estrangeiro fazer julgamentos sobre a escolha legítima, aqui neste caso as escolhas econômicas, de um país". Seja porque ele pode cometer erros factuais, seja porque ele se coloca externamente em relação às relações sociais de poder que sustentaram as escolhas. Em um dos textos que circulou para vocês, aquele escrito em inglês para o livro coletivo coordenado por Helena Lastres e José Cassiolato, em 2016, "O futuro do desenvolvimento"[10], comecei a fazê-lo com base em obras brasileiras e Internacionais. Uma síntese das pesquisas brasileiras e francesas publicadas pelo Instituto para o Desenvolvimento da Pesquisa (IRD) me ajudou a ampliar o argumento [11].

O Brasil está enfrentando um duplo impasse na extensão qualitativa das monoculturas de soja e do extenso sistema de produção de carne bovina: a redução do mercado de exportação e, no caso da soja, as crescentes dificuldades de rentabilidade e até mesmo durabilidade ou sustentabilidade do modelo.

As decisões empresariais e governamentais tomadas em meados dos anos 2000 para aumentar as matérias-primas agrícolas, especialmente a soja e a carne bovina, fizeram com que, na década de 90, parte dessas mercadorias flutuasse em torno de 40% nas exportações brasileiras entre 2007 e 2010, essa proporção aumentou rapidamente, atingindo metade do volume total, em detrimento de produtos manufaturados de valor agregado, como automóveis ou materiais e equipamentos. Sobre o plano fundamental do modo de inserção do Brasil na divisão internacional do trabalho, na configuração das trocas mundiais, é uma economia primarizada na qual a participação das suas exportações de matérias-primas no volume total de exportações do país é predominante. A primarização de uma economia a torna extremamente vulnerável, sujeita ao nível da demanda externa e à volatilidade dos preços das commodities. A crise econômica que o Brasil atravessa há dois anos, principalmente por causa da queda nas exportações, deve-se, em grande parte, às forças econômicas e políticas que decidiram essa política.

As questões sobre a sustentabilidade do modelo de cultura da soja, que vou resumir, foram feitas pelos painéis brasileiros e pelas equipes de pesquisa brasileiras e estrangeiras, cujo trabalho é citado em meu capítulo em inglês em "O futuro do desenvolvimento" [12]. Eles são tanto sobre os métodos de cultivo da soja quanto seu efeito retroativo sob o regime de chuvas. A monocultura de soja desenvolveu-se particularmente nas áreas de savana arborizada do Cerrado. A técnica básica é a mais primitiva, isto é, a derrubada e a queima da floresta da savana em imensos espaços, milhares, até centenas de milhares de hectares. O fogo libera nutrientes da vegetação queimada e produz uma camada de solo fértil sobre uma terra que, de outra forma, seria muito pobre. O cultivo da soja pode começar e dar bons rendimentos por alguns anos antes de começar a exigir quantidades crescentes de fertilizantes químicos, cujos efeitos estão diminuindo ano a ano. Por outro lado, a erosão de terras férteis também está em andamento por causa da mecanização da lavoura e da disseminação de herbicidas, sendo o mais utilizado o chamado glifosato. O uso da mecanização pode ser reduzido pela introdução de plantas geneticamente modificadas, que podem estabilizar a erosão e os rendimentos da terra novamente. Isto é acompanhado pela poluição dos cursos de água que afeta outros ecossistemas, notadamente o Pantanal. Vem o efeito do desmatamento sob o efeito das chuvas. A agricultura de soja precisa da chuva. Agora, o desmatamento da Amazônia sob o efeito do impulso para o norte do cultivo de soja e, especialmente, a exploração extensiva da pecuária, reduz o fluxo de vapor úmido transportando mais para o sudoeste, causando juntamente com o El Niño a severa seca que afetou alguns estados com a produção de soja em monocultura.

Estamos, portanto, diante de uma forma de produção que, simultaneamente, tem consequências globais muito sérias para o aquecimento da temperatura biosférica e destrói os alicerces sobre os quais foi construída.

Como e em que terreno lutar?

Como pesquisadores, nosso dever primário é dizer a verdade, explicar a situação e as questões, se possível em coletivos, em plataformas multidisciplinares comuns ou em agrupamentos associativos do tipo daqueles que criaram os Fóruns Sociais Mundiais.  Nossa segunda tarefa é ajudar a desconstruir, a partir de exemplos práticos concretos, a crença imposta pelo dominante de que não há alternativas aos modos atuais de produção ou que, se houver custa muito caro. A terceira é aproveitar todas as oportunidades para nos colocarmos ao lado daqueles que se engajam em combates no terreno ecológico, que é frequentemente aquele em que as questões são simultaneamente gerais e de preservação das condições sociais da existência. É a capacidade de se basear na realidade das ameaças que pode abrir a possibilidade de propor vias alternativas.

Para citar uma professora militante, que é membro como eu, da Attac, Geneviève Azam:

"[...] uma das contribuições do altermundialismo é ter ajudado a desconstruir, a partir de alternativas concretas, a crença imposta pelos dominantes de que não há alternativa para o sistema atual. Este é um avanço fundamental. Anteriormente, a "alternativa" era apresentada como uma noção global e abstrata. Hoje, ela está ancorada em iniciativas que não são anedóticas. Algumas são de caráter sistêmico".

Este foi o caso na França, com a luta dos pequenos e médios agricultores organizados na Confederação dos Agricultores contra as culturas com sementes organicamente modificadas, o que resultou em uma proibição que ainda não foi completamente revogada. Foi também no meu país de exploração de gás de xisto o palco de grandes combates, de verdadeiras revoltas auto-organizadas, unindo muitas aldeias.

Na França, no contexto político deletério dos governos de Sarkozy e Hollande, que os jovens lutaram contra o que chamamos de "grandes projetos inúteis", uma linha ferroviária que exige a perfuração de túneis e o deslocamento da população, um aeródromo inútil em uma área de alta biodiversidade, uma barreira no seu terreno de politização. Essas lutas valorizam convergências pela base, a diversidade das experiências. Hoje, na França, o desafio é saber se certificar de que o potencial das convergências excede a soma das especificidades de cada componente e que cada luta se alimenta da visão coletiva para aprofundar a sua própria e que os contornos de uma alternativa mais global pode emergir.

Referências