Comunicação Breve

Ponto de vista sobre o que tem para comer

Point of view about what you have to eat

http://dx.doi.org/10.17648/2446-4775.2019.755

Jardim, Jomar Gomes1*;
Jardim, Alessandra Q. Bertoso dos Santos2;
Paixão, José Lima da3.
1Universidade Federal do Sul da Bahia, Centro de Formação em Ciências Agroflorestais, Campus Jorge Amado, Rua Itabuna s/n, Rod. BR-415, Ferradas, CEP 45613-204. Itabuna, BA, Brasil.
2Sítio Oiti, região da Serra dos Vinte, Município de Itacaré, BA, Brasil.
3Universidade Estadual de Santa Cruz, Campus Soane Nazaré de Andrade, Rodovia Jorge Amado, km 16, Salobrinho, CEP 45662-900, Ilhéus, BA, Brasil.
*Correspondência:
j.jardim@yahoo.com.br

Resumo

Este trabalho visa expor de forma simples e objetiva experiências desenvolvidas por três amigos em realizar oficinas denominadas "comer o que tem" com o intuito de promover e manter acesa a chama do conhecimento tradicional sobre a alimentação à base de vegetais. Em aproximadamente três anos, foram realizadas seis oficinas e duas palestras sobre o tema para um público de aproximadamente 500 pessoas. Destaca-se que a maioria do público foi de agricultoras e agricultores familiares. As oficinas foram realizadas em pequenas propriedades com cultivos em sistemas agroflorestais de base orgânica. Ressalta-se que a troca de experiências entre o público tem sido constante e fundamental, onde todos aprendem. Além de ampliar nosso repertório quanto a preparação dos pratos, tem servido de incentivo para levarmos a ideia adiante. Após esse tempo, muitas demandas têm surgido, e já pretende-se formalizar a ideia através de um projeto de extensão, buscando atingir um público mais amplo.

Palavras-chave:
Conhecimento tradicional.
Oficinas.
Alimentação.
Sistemas Agroflorestais.
Agricultores familiares.

Abstract

This work aims to expose in a simple and objective way experiences developed by three friends in carrying out workshops denominate to "eat what they have", in order to promote and keep alive the flame of traditional knowledge about vegetable based food. In approximately three years, sex workshops and two lectures on the subject were held for an audience of approximately 500 people. It is noteworthy that the majority of the public were from women farmers and family farmers and were carried out on small farms with crops in organic-based agroforestry systems. It is emphasized that the exchange of experiences among the public has been constant and fundamental, where everyone apprehends. In addition to expanding our repertoire regarding the preparation of the dishes, it has served as an incentive to carry the idea forward . After that time, many demands have arisen, and we already intend to formalize the idea through an extension project seeking to reach a wider audience.

Keywords:
Traditional knowledge.
Offices.
Food.
Agroforestry Systems.
Family farmers.

Introdução

Tema Gerador: Segurança alimentar no campo

De alguns encontros entre três amigos em um sítio de agricultura familiar no início de 2015, após testarem algumas receitas, surgiu a ideia de montar um curso (oficinas) onde as experiências pudessem ser compartilhadas. A ideia inicial foi testar receitas tradicionalmente utilizadas por seus avós e manter acesa a chama cultural sobre o uso de plantas na alimentação. Posteriormente, percebeu-se que além do resgate cultural, seria um caminho para promover uma alimentação saudável e de baixo custo à população menos favorecida.

A convivência com as comunidades rurais trouxe uma riqueza de conhecimento e nos fez pensar em diversas alternativas de alimentos não-convencionais utilizando plantas como base. O mais interessante é que muitos dos pratos já eram ou são utilizados de forma simples pelas populações tradicionais rurais, onde o conhecimento é passado de geração em geração ao longo de séculos. Entre os objetivos principais, destaca-se a valorização do conhecimento popular e a divulgação de opções simples e barata para uma alimentação saudável à base de plantas pouco utilizadas, mas geralmente abundantes no meio rural.

Descrição da experiência

Nossas iniciativas coincidiram com a atual promoção do conhecimento sobre as chamadas Plantas Alimentícias Não-Convencionais – PANC, principalmente após a publicação do livro: "Plantas alimentícias não-convencionais (PANC) no Brasil: guia de identificação, aspectos nutricionais e receitas ilustradas[1]. Salientamos, entretanto, que o tema já vinha sendo tratado por Kinupp, que desenvolveu sua tese nesta temática e tem disponibilizado vasto material promovendo o assunto em defesa da soberania alimentar da população frente a forte dependência dos alimentos industrializados.

Embora Kinupp esteja ligado a uma instituição de ensino e pesquisa, ainda não foi formalizada qualquer ação como projeto. Porém, algumas oficinas e palestras envolvendo diversos públicos têm sido realizadas com certa frequência. A maioria das ações por nós desenvolvidas, foi direcionada a comunidades tradicionais como assentados, indígenas, agricultoras e agricultores familiares da região sul da Bahia que mantém seus cultivos em sistemas agroflorestais e de base orgânica. Nas oficinas as quais denominamos "comer o que tem", os pratos são montados, na maioria das vezes, sem saber quais são as plantas que irão compor as receitas usadas como base. Há quase três anos, temos trocado diversas experiências e complementado de forma substancial o nosso cardápio inicial de pratos à base de plantas alimentícias tradicionalmente utilizadas por populações da Bahia e do Brasil.

Resultados e Discussão

Desde a inciativa de testar as receitas em 2015 e após alguns encontros, entre conversas, risos, testes, troca de experiências e muitas ideias e ideais, já se passaram quase três anos. Neste período, foram efetuadas seis oficinas e duas palestras para um público de aproximadamente 500 pessoas.

O público foi bastante diverso, desde estudantes do ensino fundamental e médio, universitários, professores, agricultoras e agricultores familiares, assentados, indígenas, crianças e adultos. Com todo este público houve sempre troca de experiências e novas ideias foram sendo postas em práticas e/ou aperfeiçoadas. Após cada uma das experiências, novas demandas, muitas, foram surgindo, tantas que ainda não foi possível realizar todas. Ao retornar de cada atividade, cada um de nós continuou testando pratos em casa, seja a partir de leitura, vídeo ou qualquer material compartilhado por uma verdadeira rede de simpatizantes e profissionais que se constitui informalmente com as atividades, ou simplesmente a partir da visualização de uma iguaria presente no quintal de casa e que tenha despertado a lembrança de uma alimentação do passado ainda tão presente em cada um de nós. A maioria destas experiências vem sendo registrada através de fotografias ou na memória de cada um de nós de forma que são repetidas nos encontros para "comer o que tem". A seguir são relatadas algumas das experiências que consideramos mais significativas.

Dos primeiros encontros, apenas entre os três autores para realizar alguns pratos, surgiu a primeira oficina realizada no Assentamento Terra Vista, em 20 de abril de 2016 (FIGURA 1A). A atividade foi iniciada com uma caminhada de, aproximadamente, três horas na cabruca (sistema de cultivo de cacau sob a mata raleada) e, em um fragmento de Mata Atlântica (área de Reserva Legal do assentamento), onde foram coletados todos os ingredientes utilizados posteriormente (FIGURA 1B). Participaram da oficina aproximadamente 15 pessoas, e foram preparados 11 pratos que alimentaram com sobra mais de 20 pessoas. Destaca-se aqui dois pratos inéditos e que teve muito boa aceitação, o primeiro um molho pesto, a partir de sementes de pequi-preto (Caryocar edule Casar. Caryocaraceae) e um doce feito com o caule jovem de mamão-de-veado (Jacaratia heptaphylla (Vell.) A.DCCaricaceae, (FIGURAS 1C, D e E).

FIGURA 1: Oficina no Assentamento Terra Vista, em 20/04/16.
Figura 1
Legenda: A - grupo saindo para a coleta; B - materiais coletados para o preparo dos pratos; C - detalhe do caule de mamão-de-veada sendo preparado; D e E - sementes de pequi-preto abertas e molho pesto preparado com estas.

A segunda experiência, bastante significativa, foi realizada no Sítio Oiti, município de Itacaré, Bahia, para estudantes de graduação do Bacharelado Interdisciplinar em Ciências da Universidade Federal do Sul da Bahia, uma estudante do Instituto Federal Baiano, Campus Uruçuca com a participação de amigos e familiares dos organizadores. Neste encontro participaram 22 pessoas e foram elaborados aproximadamente 15 pratos, utilizando como base diversas espécies coletadas a partir de uma caminhada em uma roça de cacau-cabruca na propriedade. Deste encontro, surgiu um trabalho de final de curso para uma estudante do IFBaiano, segundo informações a nós repassadas, sem maiores detalhes. Possivelmente outras ideias surgiram, como uma declaração por parte de alguns estudantes de que "no futuro buscariam seus lugares no campo", ou seja, a partir dessa experiência, eles tinham a certeza de que a vida no campo seria suas apostas para o futuro. Com isso, concluímos ali que um dos nossos objetivos estava sendo posto em prática, a transmissão de conhecimento e a perpetuação do conhecimento cultural. Além disso, percebe-se pelos depoimentos que há uma tendência atual de retorno ao campo, o que também corrobora com nossos objetivos.

Após algumas atividades em um período relativamente curto, o maior desafio foi um convite para preparar alimentação para cerca de 300 pessoas para o II Encontro de Mulheres da Teia dos Povos: Mulheres na luta por terra, território e agroecologia, promovido pela Teia dos Povos no Assentamento Terra Vista, Arataca, Bahia na semana da mulher de 05 a 09 de maio de 2018. De início uma proposta muito ousada que chegou a nos assustar, mas decidimos aceitar propondo preparar apenas uma degustação para um público menor em relação aquele universo. Contudo, para nossa surpresa, no principal dia do evento a coordenação solicitou o nosso apoio para preparar uma moqueca de jaca para servir como prato principal no almoço do encontro. Como forma de colaborar, aceitamos o desafio e foi neste momento que o nome da oficina fez bastante sentido: "comer o que tem", já sem ter a exata percepção estávamos preparando um almoço de grandes proporções utilizando a mesma concepção de uma alimentação saudável e a partir de plantas colhidas na floresta ou em sistemas agroflorestais. Ao final, preparamos o almoço para todos utilizando como base, plantas alimentícias alternativas (ex., banana verde, cansanção, capim-santo, jaca, jasmim, ora-pro-nóbis, pupunha e taioba) para c. 300 pessoas participantes do II Encontro de Mulheres organizado pela Teia dos Povos.

A última experiência até o momento, da qual veio o convite para este relato, foi realizada no I Encontro Territorial de Agroecologia do Extremo Sul da Bahia cujo tema foi: "Integrando experiências agroecológicas do Extremo Sul da Bahia". O evento ocorreu no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Baiano, campus Teixeira de Freitas e teve a participação de um público bastante diverso, desde agricultores familiares assentados, professores e estudantes. Neste evento, realizamos uma oficina que teve a participação de muitos estudantes do ensino médio e superior e de agricultoras e agricultores totalizando 20 pessoas (FIGURA 2A). A coleta dos principais ingredientes se deu na horta e arredores do próprio campus e foram preparados dez pratos que alimentaram mais de 30 pessoas. A participação de todos foi fundamental para a finalização dos pratos no horário do almoço e a avaliação dos resultados foi bastante positiva (FIGURA 2B, C e D).

FIGURA 2: Oficina com a participação de alunos do ensino médio/superior e de agricultoras e agricultores. Preparação dos pratos.
Figura 2
Legenda: A - Participantes da oficina de "comer o que tem" no I ETA, Teixeira de Freitas, Bahia; B e C - Estudantes preparando bolinho de cansanção com arroz, C: detalhe do bolinho de sansanção; D - Ora-pró-nobis ao molho de queijo, um dos pratos preparados a oficina.

Agradecimentos

Aos nossos ancestrais (os povos indígenas) que, por tentativa e erro, deixaram um grande legado e do qual não é exagero afirmar, que é a base da nossa alimentação e dela hoje dependemos para sobreviver. Aos povos negros que, com sua sabedoria, criaram diversas fusões e excelentes sabores que tanto influenciou a nossa culinária. Às companheiras e companheiros agricultores familiares que constantemente nos comovem com sua simplicidade e grande generosidade na troca de saberes e experiências.

Referências

  1. Kinupp VF, Lorenzi H. Plantas alimentícias não convencionais (PANC) no Brasil: guia de identificação, aspectos nutricionais e receitas ilustradas. São Paulo: Instituto Plantarum de Estudos da Flora, 2015; 768p.