Artigo de Pesquisa

Uso de plantas medicinais por idosos adscritos à atenção primária em Porto Alegre/RS e potenciais interações planta-medicamento

Use of medicinal plants by the elderly at primary health care in Porto Alegre/ RS and potential herb-drug interactions

http://dx.doi.org/10.32712/2446-4775.2020.801

Scheid, Taína1*;
Fajardo, Ananyr Porto1.
1Hospital Nossa Senhora da Conceição, Grupo Hospitalar Conceição, Gerência de Ensino e Pesquisa. Rua Francisco Trein, 596, 3° andar, Bloco H, Cristo Redentor, CEP 91350-200, Porto Alegre, RS, Brasil.
*Correspondência:
tainascheid@yahoo.com.br

Resumo

O objetivo deste estudo foi pesquisar a utilização de plantas medicinais por idosos diabéticos, hipertensos e polimedicados vinculados à Unidade de Saúde Costa e Silva, Porto Alegre/RS e descrever potenciais interações entre as plantas e os medicamentos utilizados, conforme literatura. Vinte e dois idosos foram entrevistados sobre as plantas medicinais utilizadas, forma e frequência de preparo, local de obtenção e conhecimento sobre possíveis efeitos adversos das plantas. Demonstrou-se que além dos medicamentos prescritos estes idosos têm como prática de cuidado o uso de chás medicinais, destacando-se a marcela (Achyrocline satureioides) e a camomila (Matricaria chamomilla). A prática é exercida através de conhecimentos aprendidos nas famílias e predomina a noção de que as plantas medicinais não oferecem riscos à saúde. Contudo, a maioria das espécies mencionadas possui descrição de potenciais interações com medicamentos (ex. gengibre e anticoagulantes) e/ou modificações fisiopatológicas que podem ser prejudiciais no contexto de polimedicação e doenças apresentadas pelos entrevistados (ex. alecrim e indução do metabolismo de fármacos; poejo e risco de hepatotoxicidade).  Conclui-se necessária a avaliação e orientação sobre o uso de plantas medicinais pelos serviços de saúde na atenção aos idosos polimedicados, levando em consideração a maior vulnerabilidade desta população aos potenciais riscos aqui descritos.

Palavras-chave:
Fitoterapia.
Diabetes mellitus.
Hipertensão arterial.
Polimedicação.
Achyrocline satureioides.
Zingiber officinale.

Abstract

The study aimed to investigate the use of medicinal plants among polimedicated elderly people with diabetes and hypertension from a primary health service in Porto Alegre/RS and conduct literature research on potential herb-drug interactions. Twenty-two elderly were interviewed about medicinal plants, its preparation, frequency of use, place of acquisition, and knowledge about possible side effects. The results showed that, in addition to the prescribed drugs, these elderly people use medicinal herbs as their self-care practice (mainly Marcela, Achyrocline satureioides and chamomile, Matricaria chamomilla). Knowledge about plants is learned in families and the notion that medicinal plants are harmless prevails. However, most of the species mentioned have a description of potential interactions with drugs and/or physiopathological modifications that may be prejudicial in the context of polypharmacy, diabetes, and hypertension presented by the interviewees. For instance, ginger and anticoagulants; rosemary and drug metabolism induction; pennyroyal and hepatotoxicity risk. The results of this study reinforce the need for guidance of polymedicated elderly on the use of medicinal plants by health services, taking into account the greater vulnerability of this population to the potential risks described here.

Keywords:
Phytotherapy.
Diabetes mellitus.
Hypertension.
Polypharmacy.
Achyrocline satureioides.
Zingiber officinale.

Introdução

Um dos principais desafios a ser enfrentado pela atenção primária à saúde (APS) é o cuidado qualificado da população com múltiplas doenças crônicas, como diabetes mellitus (DM) e hipertensão arterial sistêmica (HAS). DM e suas complicações constituem as principais causas de mortalidade precoce na maioria dos países e, em brasileiros acima de 60 anos, a taxa de mortalidade é ao menos cinco vezes maior do que entre indivíduos entre 30 e 59 anos[1]. A HAS atinge cerca de 30% da população adulta, mais de 60% dos idosos, contribuindo direta ou indiretamente para metade das mortes por doença cardiovascular e junto com DM, suas complicações têm impacto elevado na perda da produtividade do trabalho e da renda familiar, redução e/ou perda da autonomia para realização das atividades diárias, piora da qualidade de vida e alto custo para o sistema de saúde[2].

Esta situação vem sendo enfrentada pela Unidade de Saúde Costa e Silva (USCS), localizada em Porto Alegre, RS, em cujo território há, aproximadamente, 1.000 usuários diagnosticados com HAS e DM, correspondendo a cerca de 20% da população cadastrada[3]. Destes, 16% está com 60 anos ou mais de idade, o que traz ainda mais desafios, pois o idoso vivencia diversas modificações fisiológicas próprias desta etapa da vida que exigem medidas diferenciadas de cuidado[4].  Os idosos com HAS e DM geralmente também utilizam vários medicamentos. O uso de cinco ou mais medicamentos (polimedicação) é frequentemente observado na população idosa e predispõe a uma maior ocorrência de efeitos adversos e interações medicamentosas[5].

Diversos estudos têm mostrado que as pessoas utilizam terapias complementares envolvendo o uso de plantas medicinais para o tratamento de suas enfermidades[6-9], algo próximo a 85% da população em países em desenvolvimento[10]. Alguns destes estudos apresentaram dados de prevalência do uso de plantas por pessoas com HAS e DM. É o caso da pesquisa realizada entre usuários de uma unidade de saúde em Passo Fundo/RS, segundo a qual 62,4% dos entrevistados relataram que utilizavam plantas medicinais como adjuvante no manejo de suas doenças[11]. O uso de plantas medicinais, drogas vegetais e preparados delas obtidos para o tratamento de enfermidades é prática milenar denominada Fitoterapia, considerada também uma prática integrativa e complementar, e institucionalizada no âmbito do SUS por meio da Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares no SUS[12] e da Política Nacional de Plantas Medicinais e Fitoterápicos (PNPMF)[13]. Estas regulamentações vêm ao encontro do que está sendo preconizado pela Organização Mundial da Saúde (OMS) sobre realizar ações rumo à legitimação das medicinas tradicionais e das práticas integrativas e complementares[10], indicando que o uso de plantas medicinais consiste em uma alternativa terapêutica muito valiosa à APS, dada sua eficácia, baixo custo, facilidade de obtenção e compatibilidade cultural com as pessoas[14].

Uma das propostas que emergiram a partir do Programa Nacional de Plantas Medicinais e Fitoterápicos[15] decorrente da PNPMF, foi a necessidade de promover e reconhecer as práticas populares e tradicionais de uso de plantas medicinais e remédios caseiros. Assim, o presente estudo teve como objetivo aplicar esta proposta no âmbito da APS, buscando-se conhecer o uso popular de plantas medicinais junto a idosos diabéticos, hipertensos e em polimedicação. Os aspectos estudados foram: levantamento das principais plantas medicinais consumidas, forma de preparação, frequência de uso, local de obtenção e o que seus usuários sabem sobre seus benefícios e riscos, visto que muitas pessoas acreditam que as plantas medicinais não oferecem riscos à saúde, como mostrou o inquérito realizado em Passo Fundo/RS[11]. Considerando-se que se trata de um grupo com maior vulnerabilidade à ocorrência de efeitos adversos e interações medicamentosas[5,16,17] realizou-se pesquisa em literatura sobre as potenciais interações planta-medicamento entre as plantas mencionadas com mais frequência e os principais medicamentos prescritos e/ou utilizados pelos idosos. Pretendemos trazer contribuições ao conhecimento sobre a prática popular envolvendo o uso de plantas medicinais, e ao cuidado das pessoas com HAS e DM, incentivando o uso de plantas medicinais de forma racional e segura.

Materiais e Método

Trata-se de um estudo realizado entre usuários da Unidade de Saúde Costa e Silva (USCS), localizada na zona norte de Porto Alegre/RS. A USCS é uma das doze Unidades de Saúde do Serviço de Saúde Comunitária (SSC) de o Grupo Hospitalar Conceição (GHC). A partir da consulta aos dados do Sistema de Informações do SSC-GHC e prontuários de família em maio de 2017, foram identificados 136 usuários que preenchiam os seguintes critérios de inclusão: homens e mulheres com idade igual ou maior do que 60 anos, portadores tanto de HAS quanto de DM, e em uso de cinco ou mais medicamentos (polimedicados). Através de sorteio (programa Microsoft Excel versão 2007) foram selecionados 54 usuários para participar da pesquisa, resultando em uma lista com 28 mulheres e 26 homens. O número de sorteados foi determinado através de cálculo de tamanho amostral considerando a proporção de uso de plantas medicinais de 0,85[18] e erro máximo de estimativa de 10%. Após contato telefônico e/ou através da entrega de carta-convite pelas agentes comunitárias de saúde, 22 usuários aceitaram participar, tendo sido entrevistados pela pesquisadora em suas residências, em aposento que preservasse o sigilo da interação. Cada usuário foi entrevistado em uma única ocasião e as entrevistas ocorreram entre junho e outubro de 2017. As pessoas não entrevistadas enquadram-se nas seguintes categorias: 10 pessoas não foram encontradas após três tentativas de contato, sete recusaram-se a participar, cinco mudaram-se do território e cinco exerciam atividade laboral em turno integral, impedindo sua participação nos horários disponíveis para a interação. Além destes, três usuários não puderam participar após constatar-se que não possuíam HAS e/ou DM (erro de registro), um usuário fora incluído no Programa de Atenção Domiciliar (critério de exclusão) e outro havia falecido na época do contato telefônico. A interação com os usuários ocorreu através de entrevista semiestruturada e as informações obtidas foram registradas por escrito. Os participantes estão identificados pela letra "P" seguida de um número de ordem aleatória para preservar o sigilo das informações prestadas.

O estudo foi realizado respeitando-se a Resolução 466/2012,[19] e aprovado em 17 de fevereiro de 2017 pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Grupo Hospitalar Conceição (CEP-GHC, protocolo nº 17007). Através da assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido foi formalizada a participação voluntária dos usuários.

Os nomes científicos foram atribuídos às plantas a partir de pesquisa em repositórios de informações botânicas[20,21] e literatura[22] por meio dos nomes populares relatados e pela descrição dada pelos usuários e/ou registro fotográfico das hortas caseiras, quando existentes. Não foram realizadas coletas e identificação botânica das espécies vegetais.

As fontes de informação utilizadas para identificação das interações planta-medicamento foram: monografias de fitoterápicos e plantas medicinais da Organização Mundial da Saúde[23,24], European Scientific Cooperative on Phytotherapy[25] e Comissão E[26]; Memento fitoterápico da Farmacopeia Brasileira[27]; bases de dados[28,29] a partir da pesquisa a periódicos empregando-se combinações dos termos "interações", "interações planta-medicamento", "herb-drug interactions", com os nomes científicos das espécies vegetais em questão.

Resultados e Discussão

Perfil sóciodemográfico

Foram entrevistados 22 usuários com idade entre 60 e 81 anos, sendo a maioria mulheres (14). A maior parte dos participantes sabia ler e escrever (21), embora muitos não tenham estudado além do quinto ano do Ensino Fundamental (14). Nenhum dos participantes atuava formalmente no mercado de trabalho; 16 recebiam aposentadoria e 6 sempre exerceram, exclusivamente, atividades relacionadas ao cuidado do próprio lar, sem ter contribuído com a Previdência Social. Os entrevistados residiam com, pelo menos, uma pessoa em casa, e sua renda per capita era de aproximadamente um salário mínimo, o que representa cerca da metade daquela observada em Porto Alegre, porém semelhante à renda per capita do Rio Grande do Sul[30].

Perfil de utilização de plantas medicinais

Vinte dos 22 usuários entrevistados relataram usar plantas medicinais no cuidado de sua saúde. Este resultado, embora não se tratando de estudo de prevalência, vem ao encontro dos dados da OMS sobre a abrangência do uso de plantas medicinais entre a população em geral nos países em desenvolvimento, cuja prevalência é de aproximadamente 80%[18], e de outros estudos conduzidos no âmbito da APS brasileira com percentuais semelhantes[8,11,31].

As plantas medicinais utilizadas pelos entrevistados estão listadas na TABELA 1, bem como a indicação referida, forma de preparo e frequência de uso das 10 espécies mais frequentemente mencionadas.

TABELA 1: Principais plantas medicinais utilizadas, indicações mencionadas, forma de preparo e frequência de uso. Porto Alegre/RS, 2017.
Planta medicinal (n=) Usos referidos Forma de preparo* (n=) Frequência de utilização (n=)
Marcela (11)
Achyrocline satureioides (Lam) DC.
"Dor de estômago", "Fígado", "Enjoo", "Colesterol alto", "Refeição pesada", "Dor de cabeça" Infusão (8)
Decocção (3)
Diariamente (1)
Esporadicamente, em caso de sintomas (10)
Camomila (7)
Matricaria chamomilla L.
"Calmante", "Para dormir", "Dor de cabeça, de estômago", "Digestivo", "Alergia, picada de bicho" Infusão com água (6)
Infusão com leite (3)
Compressas (1)
Diariamente (3)
Esporadicamente, em caso de sintomas (4)
Boldo (7)
Plectranthus barbatus Andrews
"Dor de estômago", "Após refeições pesadas", "Digestivo", "Fígado", "Amargor da boca", "Ressaca", "Enjoo" Infusão (3)
Decocção (1)
Maceração em água fria (3)
Diariamente (1)
Esporadicamente, em caso de sintomas (6)
Guaco (6)
Mikania glomerata Spreng.
"Gripe, tosse", "Bronquite" Decocção (1)
Adição da infusão sobre açúcar caramelizado (6)
Diariamente (0)
Três vezes ao dia, em caso de sintomas (4)
Duas vezes ao dia, em caso de sintomas (2)
Jambolão (5)
Syzygium jambolanum (Lam.) DC.
"Diabetes" Infusão (5) Diariamente (3)
Diariamente, cerca de 1-2 litros (2)
Babosa (4)
Aloe vera (L.) Burm.
"Cicatrizante", "Mal-estar do estômago", "Preventivo do câncer" Aplicação da mucilagem obtida das folhas diretamente sobre a pele (3)
Maceração em água fria (2)
Esporadicamente, em caso de sintomas (4)
Capim cidró (4)
Cymbopogon citratus (DC.) Stapf
"Gripe", "Resfriado" Infusão (2)
Decocção (2)
Esporadicamente, em caso de sintomas (4)
Gengibre (3)
Zingiber officinale Roscoe
"Dor de estômago", "Dor de garganta", "Inflamações na garganta", "Resfriado", "Tudo, até câncer". Infusão (1)
Decocção (1)
Maceração em água fria (1)
Diariamente (1)
Esporadicamente, em caso de sintomas (2)
Poejo (3)
Mentha pulegium L.
"Gripe" Decocção (1)
Adição da infusão sobre açúcar caramelizado (2)
Esporadicamente, em caso de sintomas (3)
Alecrim (3)
Rosmarinus officinalis L.
"Gripe", "Bronquite", "Digestivo", "Para palpitações". Infusão (2)
Adição da infusão sobre açúcar caramelizado (1)
Esporadicamente, em caso de sintomas (3)
Outras plantas citadas:
Quiabo, abacate, arnica, carqueja, alcachofra, agrião, guiné, erva-doce, laranjeira, bergamoteira, limoeiro, manjericão, alface, malva, tansagem, canela do brejo, mirarruira, pata de vaca, insulina, losna, canela, beringela, hortelã, salsa, gervão, erva de nossa senhora, alho, ipê roxo, quebra-pedra, cidreira, espinheira santa, canela de velho, picão, graviola, sene, mil-homens, catinga-de-mulata.

(n=) Número de usuários que mencionaram o uso. * Algumas pessoas mencionaram mais de uma forma de preparo.

O repertório de plantas mais utilizadas assemelha-se com o encontrado por outros estudos conduzidos na região sul do Brasil nos quais a camomila (Matricaria chamomilla L.) e a marcela (Achyrocline satureioides (Lam) DC) figuram no topo da lista[9,11,31]. Enquanto a camomila é uma espécie exótica de origem europeia, cultivada em muitos países por suas propriedades terapêuticas bem estabelecidas[32], a marcela é uma planta nativa bastante reconhecida na medicina popular regional possivelmente como herança das tradições indígenas sul americanas (marcela = eloyatei-caá em Tupi-guarani)[33].No Rio Grande do Sul este reconhecimento é bastante expressivo, tendo sido instituída como planta medicinal símbolo do estado[34].

Muitas das espécies apresentadas na TABELA 1 também têm sua importância medicinal reconhecida em outras regiões do Brasil, pois compõem a seleção de espécies vegetais das hortas medicinais do Projeto Farmácias Vivas[14]. Além disso, as plantas mais citadas aqui fazem parte da Relação Estadual de Plantas Medicinais de interesse do Sistema Único de Saúde no Rio Grande do Sul[35], e sete aparecem na Relação Nacional de Plantas de Interesse ao SUS (RENISUS)[36]. Estas listas apresentam as espécies medicinais com potencial para gerar produtos de interesse ao Sistema Único de Saúde (SUS) e propõem-se a servir de base para agendas nacionais e estaduais de prioridades de pesquisa em saúde, no que se refere a plantas medicinais tanto para sua utilização como chá medicinal como para projetos de inovação farmacêutica[15]. Percebe-se assim coerência entre o repertório de plantas utilizadas pelos entrevistados e àqueles visados pelas políticas públicas com o objetivo de ampliar o conhecimento e fomentar o uso seguro e racional.

Quanto às indicações terapêuticas das plantas, constatou-se que a maioria dos usos referidos pelos idosos (TABELA 1) encontra embasamento na literatura científica[23,24,27].

Em relação ao preparo das plantas medicinais, a forma predominante é o chá (20 menções), denominação geral dada para preparações envolvendo as técnicas de infusão e decocção[37]. A maioria dos entrevistados relatou que utiliza os chás esporadicamente, e para o tratamento de enfermidades percebidas como de curta duração (autolimitadas), como por exemplo, gripes e resfriados, distúrbios gastrointestinais (dispepsia, náusea) e cefaleia (TABELA 1). Entretanto, foram feitas menções sobre o uso diário, intensivo e prolongado (1 e 2 litros de chá/dia ao longo de várias semanas) de algumas plantas medicinais para o manejo do diabetes, como o jambolão e a pata de vaca, sobre as quais não existem recomendações conclusivas para embasar esta indicação terapêutica e posologia. Nenhum dos participantes relatou interromper o uso dos medicamentos prescritos em favor dos chás, porém entre os que faziam seu uso intensivo para o diabetes era comum mencionarem que tomavam o chá em lugar da água. Esta é uma questão relevante porque nestes casos relatou-se consumir grandes quantidades das preparações, contendo princípios ativos vegetais, cujos efeitos sobre a saúde são ainda indeterminados. Também existe a possibilidade de interação dos chás com os medicamentos, como será abordado adiante.

Em se tratando de pacientes diabéticos, outra preocupação emergente é a adição de açúcares às preparações medicinais, algo que não foi relatado como uma prática comum entre os entrevistados. Entretanto, uma das preparações utilizada para o manejo de resfriados, tosse e dor de garganta - o xarope ou lambedura - envolve a adição de açúcar, como descrito:

"Primeiro derreto o açúcar na panela, largo a água fervente, e depois coloco as plantas todas – agrião, guiné, guaco, alecrim – e deixo abafado, para depois tomar" (P22).

Um terço dos entrevistados relatou utilizar o xarope frequentemente nos casos de sintomas respiratórios. Esta prática não foi reconhecida como prejudicial pelos participantes, mesmo depois de rememorada sua condição diabética. Sendo esta uma preparação comum envolvendo os chás para o manejo de gripes e resfriados[6,9], e sendo bem conhecido o fato de que infecções agudas ocasionam uma desregulação no controle glicêmico durante seu curso[38], é importante abordar a questão com os usuários e fazer proposições de modo a adequar a prática à condição diabética.

O conhecimento sobre o uso medicinal das plantas foi frequentemente citado como proveniente da família:

"A mãe usava muito chá, e plantava, me criei assim" (P20) e "O pai ia para o mato buscar as plantas e vinha com o cesto... é de onde aprendi. Eu só não ia para o mato porque tinha medo de cobra" (P2).

Outra usuária lembrou como o pai costumava tratar episódios de coqueluche:

"O pai me levava para o mato nas primeiras horas da manhã para pegar sereno. [Ele] colhia a flor... não lembro o nome. Era uma flor amarela parecida com um girassol, que tinha uma batatinha branca dentro. Depois raspava essa batata com mel e açúcar, e dava para a gente para curar a tosse comprida." (P11).

Muitos também mencionaram que o conhecimento veio de tempos remotos, nem sempre bem determinados, através do emprego das expressões "vem da tradição", "veio dos ancestrais", "criei-me com isso" e de relatos de que aprenderam a usar as plantas com a família, desde a infância.

O consumo de plantas medicinais embasado em conhecimentos repassados pela família reforça a cultura do cultivo, pois demonstra a preocupação com a disponibilidade imediata do recurso terapêutico[8]. Apesar disto, a principal forma de aquisição das plantas para uso medicinal (37 menções) foi através da compra em supermercados ou pequenos mercados locais, e observou-se que menos da metade das residências visitadas possuía qualquer tipo de horta caseira. O cultivo próprio (26 menções) parece ser limitado pelas pequenas áreas físicas residenciais disponíveis para esta finalidade, e possivelmente é o motivo pelo qual também se adquirem as ervas através da colheita em vizinhos, praças e terrenos baldios nos arredores (19 menções). Ainda, mencionou-se a aquisição das ervas no Mercado Público Municipal de Porto Alegre/RS (15 menções) e de erveiros – pessoas com vasto conhecimento popular sobre as plantas, e que as comercializam geralmente de casa em casa (seis menções). Esta é uma preocupação porque é sabido que o cultivo em hortas caseiras proporciona um maior contato com as plantas e também conhecimento sobre sua identidade e vitalidade, algo que não é possível garantir quando são adquiridas no comércio, onde geralmente são vendidas na forma seca e rasuradas. Brandão, Freire e Vianna-Soares[39] avaliaram diversas amostras de camomila provenientes de farmácias, ervanárias e mercados em Minas Gerais e constataram que, apesar de constituírem-se majoritariamente da espécie em questão, a maioria estava com os capítulos florais destruídos, havendo sofrido redução significativa nos princípios ativos, além de apresentarem contaminação por insetos. Estes dados não são incomuns, como mostram trabalhos conduzidos em outros estados brasileiros para avaliar a qualidade das plantas medicinais comercializadas[40,41].

É interessante ressaltar que a pergunta inicial da entrevista - "O Senhor (a) usa algum remédio de planta medicinal - por exemplo, chás, compressas, garrafadas?" - foi inicialmente respondida negativamente por sete dos vinte usuários que usavam plantas medicinais. Uma das usuárias foi taxativa:

"Não... eu não tomo nada. Só o que o médico me dá. Morro de medo de usar ervas. A única coisa que eu tomo é suco de ameixa com couve e aveia"(P19).

A confirmação do uso, neste e nos outros casos, deu-se com a continuidade da interação, geralmente após pergunta sobre como manejavam problemas corriqueiros de saúde (gripe, dor de garganta, dor de estômago etc.). No caso de P19, a contradição apareceu após relatar que sofria de insônia:

"Para dormir melhor eu uso a camomila. Misturo [a camomila] com água quente e às vezes com leite, tomo todos os dias, senão fico desesperada".

Os entrevistados não perceberam espontaneamente a aparente contradição e, quando questionados sobre a negativa inicial da pergunta sobre o uso de plantas medicinais, não souberam explicar o motivo, embora achassem graça disto.

Neste sentido, pondera-se que é possível que o termo usado na pergunta – remédio de planta medicinal – não tenha sido compreendido por alguns como pretendido pelas pesquisadoras. Daquilo que foi registrado é plausível pensar que o autocuidado realizado através do uso de chás nem sempre é associado a um remédio, mas sim a hábitos culturais das famílias e das relações sociais:

"Lá onde me criei, no terminal do mundo, só comíamos o que plantávamos. Não consigo imaginar minha vida sem [os chás]" (P13) e "[...] Quando vem visita precisa do chimarrão, facilita a conversa [...] Sempre que vem visita lá de fora [menciona a cidade distante], preparo o chimarrão e ponho cidreira, hortelã" (P6).

A noção de inocuidade dos chás e demais preparações de plantas também esteve presente entre a maioria (12 dos 22 entrevistados):

"Prefiro a erva ao remédio – esse tem química. O chá medicinal é muito difícil fazer mal" (P4) e "As plantas não fazem mal, senão eu já teria morrido!" (P10).

Contudo, houve relatos de determinadas situações desagradáveis nas quais os idosos ponderaram que o uso de plantas também pode envolver efeitos adversos:

"Uma vez comecei a usar o jambolão. Durou um dia. Tomei duas vezes e comecei a sentir uma palpitação, nunca mais usei" (P16) e "Minha irmã usava jambolão que nem água. Daí começou a ter problemas, ficar magra, magra. Eu acho que foi desse chá para o diabetes. Porque assim, isso é diferente de um chá que se usa poucos dias" (P14).  "Eu nunca usei chá para o diabetes, nunca. Minha irmã usava jambolão, e a mãe, insulina [planta]. Ficaram cegas! E a mãe perdeu pé." (P18).

Para o grupo de entrevistados, contudo, quando houve a menção e busca sobre orientações sobre o uso medicinal das plantas durante a consulta médica, em qualquer momento da vida, os relatos foram de que isto não trouxe esclarecimentos sobre a segurança ou riscos potenciais desta prática, tendo prevalecido a percepção de que os profissionais ficavam indiferentes a ela. Nota-se aí uma clara necessidade de diálogo, na tentativa de convergir os saberes, e assegurar a qualidade deste recurso terapêutico milenar, além de promover a educação continuada dos profissionais de saúde sobre a prática da fitoterapia e a valorização dos conhecimentos populares e autonomia dos indivíduos em seu cuidado de saúde. Sobre este aspecto uma das antigas pautas da OMS[42] já sustentava que, para integração das medicinas tradicionais e suas práticas à atenção primária, havia a necessidade do ensino de princípios destas aos profissionais e estudantes de saúde, a fim de promover o diálogo, a comunicação, o bom entendimento e, finalmente, a integração.

Potenciais interações planta-medicamento

As entrevistas confirmaram a ocorrência de polimedicação entre os idosos, algo que havia sido inferido previamente pelos registros mais recentes em prontuário. Cada usuário utilizava em média 7,1 (DP ± 2,3) medicamentos diferentes diariamente, demonstrando que a polimedicação entre idosos é um fenômeno comum e crescente, o qual está relacionado, entre outras coisas, ao aumento da longevidade e de doenças crônicas associadas[5]. De fato além de diabetes e hipertensão a maioria dos idosos entrevistados (20) relatava possuir enfermidade crônica adicional, sendo as mais comuns: dislipidemia, depressão e artrose. A própria polimedicação é um fator de adoecimento, visto que contribui para a menor aderência farmacoterapêutica e maior risco de interações e efeitos adversos, lesões e hospitalizações[5], tendo já sido demonstrada forte associação entre polimedicação e impacto clínico negativo na vida das pessoas[43].

Observou-se que em média 6,0 (DP ± 2,0) dos medicamentos utilizados foram prescritos, o que demonstra a ocorrência de automedicação. Cerca da metade (13) dos entrevistados relatou utilizar ao menos semanalmente medicamentos analgésicos e/ou anti-inflamatórios não prescritos (paracetamol, diclofenaco e ibuprofeno). Entre aqueles que relataram o uso diário de analgésicos (4), era comum também o uso de produtos contendo associações de fármacos analgésicos, anti-inflamatórios e relaxantes musculares – sendo alguns destes últimos considerados medicamentos inapropriados para os idosos[44].

Os medicamentos mais utilizados, conforme princípio ativo e número de menções: metformina (15), sinvastatina (13), hidroclorotiazida (12), losartana (10), ácido acetilsalicílico 100 mg (9), omeprazol (8), paracetamol (8), catopril (7), anlodipino (4), glibenclamida (4), insulina NPH (4). A maioria das classes farmacológicas dos medicamentos utilizados corresponde à terapêutica para doenças apresentadas pelos participantes: HAS, DM, dislipidemia. Evidencia-se a utilização rotineira do paracetamol por automedicação, sugerindo que existem condições dolorosas persistentes que não estão sendo reconhecidas pelo serviço de saúde. Cabe destacar também a presença do omeprazol entre os principais medicamentos usados diariamente e por tempo prolongado, apesar de não haver registros entre os usuários de condições clínicas para as quais o fármaco é formalmente indicado.

Em relação às possíveis interações entre os medicamentos e as plantas mais utilizadas, entende-se aqui a "interação planta-medicamento" como os possíveis efeitos fisiológicos e/ou tóxicos resultantes do consumo, ao mesmo tempo ou dentro de pouco tempo, de plantas medicinais e medicamentos, sendo que esses efeitos diferem daqueles de quando cada um dos itens é consumido isoladamente[17]. As potenciais interações, considerando-se as 10 plantas mais utilizadas, bem como os efeitos adversos e contraindicações ao uso identificados em literatura estão descritos na TABELA 2.

TABELA 2: Interações medicamento-planta, efeitos adversos e contraindicações ao uso das 10 plantas mais utilizadas. Porto Alegre/RS, 2017.
Planta Potenciais Interações Medicamento-planta Efeitos adversos e Contraindicação
Achyrocline satureioides (Lam) DC. Uso oral e tópico: não existem interações descritas na literatura pesquisada. Indivíduos com conhecida sensibilidade ou alergia às plantas da família Asteraceae (ex. camomila) podem ter reações de hipersensibilidade também à marcela[24,27].
Matricaria chamomilla L. Uso oral: compostos cumarínicos presentes na camomila podem interferir com anticoagulantes, como a varfarina[27,45]. O efeito ocorre apenas em caso de uso prolongado e altas doses[33]. Risco de sangramentos [33].
Uso tópico: não existem interações descritas na literatura pesquisada. A presença de lactonas sesquiterpênicas nas flores de camomila poderá desencadear reações alérgicas em indivíduos sensíveis, e tem sido descrita dermatite de contato para algumas preparações[27]. Deve-se ter cuidado particularmente com as compressas oculares, seu uso não deve ultrapassar poucos dias[46]. A camomila é contraindicada a indivíduos com conhecida sensibilidade ou alergia às plantas da família Asteraceae (ex. marcela)[24,27].
Plectranthus barbatus Andrews Uso oral e tópico: não existem interações descritas na literatura pesquisada.
Mikania glomerata Spreng. Uso oral:
- Pode potencializar o efeito de medicamentos anticoagulantes[33].
- Preparações que possibilitem a fermentação podem favorecer a transformação das cumarinas em dicumarol, substância anticoagulante[47].
- Risco de sangramentos[33].
Syzygium jambolanum (Lam.) DC. Estudo in vitro demonstrou aumento no tempo de coagulação sanguínea após incubação com extrato de jambolão[48]. Embora não existam recomendações específicas, sugere-se que pessoas com riscos de sangramentos e em uso de anticoagulantes orais tenham cautela na ingestão de preparações contendo o jambolão.
Aloe vera (L.) Burm. Uso oral: a ingestão de preparações contendo o exudato amarelo presente próximo à casca da babosa resulta em modificações no peristaltismo, podendo levar a menor absorção de medicamentos administrados por via oral[24]. -Redução no efeito terapêutico dos fármacos ingeridos concomitantemente.
- Uso oral de babosa é contraindicado nos casos de obstrução intestinal, constipação crônica, desidratação com depleção de eletrólitos; também não deve ser utilizada por indivíduos com doenças intestinais inflamatórias, hemorroidas, e problemas abdominais não diagnosticados cujos sintomas envolvem dor, náusea e vômitos[24,26].
- Diuréticos tiazídicos, como a hidroclorotiazida, atuam sinergicamente na redução do potássio[24]. - Hipocalemia e em casos mais severos, rabdomiólise, anormalidades renais e arritmias cardíacas[24].
- Redução na concentração e/ou efeitos dos hormônios tireoidianos T3 e T4[33].
Uso tópico: não existem interações descritas na literatura pesquisada para a via tópica. - O gel de babosa é contraindicado a indivíduos com conhecida alergia às plantas da família Liliaceae (ex. tulipas, lírios)[24].
Cymbopogon citratus (DC.) Stapf Uso oral e tópico: não existem interações descritas na literatura pesquisada.
Zingiber officinale Roscoe Uso oral: O gengibre pode afetar o tempo de sangramento e parâmetros imunológicos, de modo que pode potencializar os efeitos de medicamentos anticoagulantes e antiagregantes plaquetários (ex. varfarina, AAS)[24,33]. - Risco de sangramentos. Os pacientes que tomam medicamentos anticoagulantes ou que apresentam distúrbios da coagulação sanguínea devem consultar seu médico antes de se automedicar com gengibre[24].
- Contraindicado para pessoas com cálculos biliares, irritação gástrica e hipertensão arterial[27].
Mentha pulegium L. Uso oral: pode interferir na absorção de medicamentos contendo ferro[33]. - Possível redução no efeito terapêutico do medicamento.
- Um dos componentes da planta, a pulegona, pode causar hepatotoxicidade quando ingerido excessivamente[33,49]. Recomenda-se uso esporádico e em quantidade máxima de duas xícaras/dia preparadas com 1-2 gramas (planta seca) ou até 4 gramas (planta fresca)[14].
Rosmarinus officinalis L. Uso oral:
- O cineol, principal componente do óleo essencial e de preparações aquosas do alecrim, possui efeito indutor sobre sistemas enzimáticos responsáveis pelo metabolismo de fármacos: citocromo P450 1A1, 2B1/2, 2E1, glutationa transferase e quinona redutase[23].
- Fármacos metabolizados por estas enzimas serão afetados[23], com possível redução do efeito terapêutico.
- Não são conhecidas interações com medicamentos[25].
Uso tópico:
- Não existem interações descritas na literatura pesquisada para a via tópica.
- Existem descrições da ocorrência de dermatite de contato e fotossensibilidade [23].
- Deve-se evitar a aplicação de banhos quentes contendo alecrim em pessoas com grandes áreas de feridas na pele, em situações febris e de inflamações agudas, na hipertensão e em casos de distúrbios circulatórios severos[25].

Dentre as potenciais interações planta-medicamento identificadas, poucas descreviam interações específicas com os medicamentos em uso pelos participantes da pesquisa. A descrição mais frequente trata-se da interação entre medicamentos que interferem na coagulação sanguínea - varfarina e ácido acetilsalicílico (AAS) - e plantas como a camomila, o guaco, o gengibre e o jambolão, podendo favorecer a ocorrência de sangramentos[27,33,45]. Isto pode ter maior importância nos casos onde se faz uso diário dos chás, como foi mencionado para o manejo de condições como insônia (camomila), diabetes (jambolão) e gripes e resfriados (guaco) (TABELA 1). Entretanto, a severidade e significância clínica destas interações não foram estabelecidas.

O uso interno de Aloe vera (L.) Burm. (babosa), através de sucos e macerados contendo as folhas, é outro item a ser destacado. As folhas contêm em seu interior mucilagem transparente e rica em polissacarídeos, indicada para aplicação tópica por suas propriedades cicatrizantes[27], diferentes do encontrado na região próxima à casca, onde se concentram antraquinonas, com propriedades laxativas[24]. Desta forma, a ingestão da babosa assim como relatada por alguns dos usuários para problemas do trato gastrointestinal (TABELA 1) pode desencadear efeito laxativo e purgativo, podendo levar a menor absorção de medicamentos administrados por esta mesma via[24], o que pode comprometer seu efeito terapêutico. A utilização conjunta com medicamentos como a hidroclorotiazida pode resultar em hipocalemia e, em casos mais severos, rabdomiólise, anormalidades renais e arritmias cardíacas[24,26]. Esta é uma questão relevante quando se considera que a hidroclotiazida é um dos fármacos de primeira linha no tratamento da hipertensão[2] e utilizada por mais da metade dos entrevistados.

O poejo (Mentha pulegium L.) tem o potencial de interferir na absorção de medicamentos contendo ferro[33], podendo ocasionar redução em sua biodisponibilidade. Quando o poejo é utilizado sob a forma de chás, xaropes ou quaisquer outras preparações de uso interno recomenda-se que seja utilizado esporadicamente e que a quantidade ingerida não seja superior a duas xícaras ao dia, nas quantidades de planta fresca ou seca descritas na TABELA 2[14], pelo risco de hepatotoxicidade da pulegona, um terpeno presente na planta[33,49]. Ainda que os entrevistados tenham relatado usá-lo esporadicamente, esta é uma questão relevante, pois o risco de danos hepáticos decorrente do uso de ervas e medicamentos é maior em pessoas idosas e polimedicadas[50]. O aroma e sabor agradáveis do chá de poejo, intensificados pelo dulçor das preparações contendo açúcar (xaropes) podem ser um estímulo ao consumo mais vigoroso, o que incrementa a necessidade de orientações a respeito dos cuidados com a ingestão desta planta.

Ao gengibre (Zingiber officinale Roscoe), utilizado principalmente para o alívio de inflamações de garganta, resfriados e problemas gástricos (TABELA 1), atribui-se o potencial de interagir com fármacos anticoagulantes e antiagregantes plaquetários (ex. AAS) podendo ocasionar sangramentos[24,33]. Gengibre e AAS também podem favorecer o surgimento de irritações gástricas, algo relevante quando cerca da metade dos entrevistados utiliza AAS e omeprazol – um medicamento para o tratamento de gastrite – sem que se tenha descrito uma doença gastrointestinal bem definida. Apesar de apenas três entrevistados relatarem o uso de gengibre medicinalmente, não se pode descartar que ele esteja sendo consumido rotineiramente nos preparos culinários, algo que não foi investigado. O gengibre também é contraindicado para pessoas hipertensas, condição vivenciada pelos entrevistados[27].

O alecrim (Rosmarinus officinalis L.) possui efeito indutor sobre sistemas enzimáticos responsáveis pelo metabolismo de fármacos (TABELA 3)[23], podendo resultar na redução do efeito terapêutico dos medicamentos metabolizados por estes sistemas.

A marcela (Achyrocline satureioides (Lam) DC.) - planta de maior menção entre os entrevistados, apesar de constar já na primeira edição da Farmacopeia Brasileira, de 1929[51], recebe sucintas informações sobre interações nos compêndios oficiais.  O Formulário de Fitoterápicos da Farmacopeia Brasileira[52] descreve que a tintura pode potencializar o efeito de insulina, barbitúricos e outros sedativos, porém não fica claro se este efeito está relacionado à presença de álcool na preparação, ou à planta propriamente. Não foram encontradas outras descrições sobre possíveis interações planta-medicamento na bibliografia consultada. Isto demonstra a necessidade de esforços no sentido de ampliar o repertório de informações orientadoras, principalmente das espécies medicinais brasileiras, para orientar o profissional de saúde em sua prescrição ou indicação dessa terapia na APS.

Conclusão

Neste trabalho estudou-se a forma de utilização de plantas medicinais entre idosos vinculados a um serviço de APS e que sofrem de agravos crônicos. Ficou evidenciado que além dos vários medicamentos que lhes são prescritos para HAS, DM e outras comorbidades, a maioria tem como prática de cuidado o uso de chás e outras preparações de plantas. Nem sempre houve o reconhecimento de que esse cuidado da saúde com as plantas tratava-se de remédio, ou que existiam riscos e efeitos adversos. O conhecimento sobre elas é habitualmente proveniente da própria família, passando de uma geração para outra. As plantas mais utilizadas por estes idosos são semelhantes ao que mostraram estudos etnobotânicos brasileiros, principalmente da região sul do país. Interações potenciais entre os medicamentos e as plantas utilizados foram identificadas, mas nem sempre a literatura sistematizada sobre o tema (monografias, memento) trouxe informações sobre as espécies de maior utilização. Concluiu-se a necessidade de avaliação e orientação sobre o uso de plantas medicinais pelos serviços de saúde na atenção aos idosos polimedicados, levando em consideração a maior vulnerabilidade desta população aos potenciais riscos aqui descritos.

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