Comunicação Breve

O regime alimentar corporativo e a resistência desde os mercados alternativos e agroecologia

The corporate food regime and resistance from alternative markets and agroecology

http://dx.doi.org/10.32712/2446-4775.2020.892

Corbari, Fábio1*;
Zonin, Wilson João1;
Costa, Patrícia Inês1;
Piña, Lenin Contreras2;
Garcia, Sandra Ramírez2;
Ruíz, Gabriela Vásquez2.
1Universidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE), Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Rural Sustentável, campus Marechal Cândido Rondon, Rua Pernambuco, 1777, Centro, CEP 85960-000, Marechal Cândido Rondon, PR, Brasil.
2Universidad Autónoma Chapingo - UACh, (Doctorado en Desarrollo Rural Regional – DCDR), Carretera Federal México-Texcoco Km 38.5, Chapingo, 56230 Texcoco, México.
*Correspondência:
fabio.corbari@hotmail.com

Resumo

O presente trabalho tem como objetivo discutir alguns aspectos sobre o regime alimentar corporativo e a resistência a esse sistema a partir da agroecologia e mercados alternativos. Para isso, realizamos observações diretas em experiências de mercados alternativos e agroecologia e analisamos estudos sobre agroecologia e sistemas agroalimentares, com ênfase no caso do México. Concluímos que a agroecologia, relacionada à agricultura familiar e os mercados alternativos, em sua lógica inerente contra hegemônica, estaria lidando com todos os elos da cadeia do sistema agroalimentar, com possibilidades de influenciar os territórios através da configuração dos espaços rurais e áreas urbanas em favor dos requisitos alimentares, sociais, econômicos e políticos dos atores fora da lógica do capital.

Palavras-chave:
Agroecologia.
Regime alimentar.
Mercados alternativos.
Corporativo.

Abstract

This paper aims to discuss some aspects about the corporate food regime and resistance to this system from agroecology and alternative markets. To this end, we make direct observations on experiences of alternative markets and agroecology and analyze studies on territories, agroecology and food systems, with an emphasis on the case of Mexico. We conclude that agroecology, related to family agriculture and the alternative markets, in its inherent logic against hegemonic, would be dealing with all links in the chain of agrifood system, with possibilities to influence the territories through the configuration of rural areas urban areas in favor of food, social, economic and political requirements of actors outside the logic of capital.

Keywords:
Agroecology.
Food regime.
Alternative markets.
Corporate.

Introdução

No meio rural, o modelo de desenvolvimento modernizante iniciado no período pós-guerra prometeu avanços tecnológicos, produtivos e um progresso social do agricultor através dos benefícios que a Revolução Verde proporcionaria. Embora, a abertura de mercados agrícolas, exportação de matérias primas, implantação de pacotes tecnológicos que promoveram o uso intensivo de mecanização, insumos químicos e agrotóxicos, a produtividade das culturas e a modernização das áreas rurais realmente aconteceram, as contraindicações desse modelo trouxeram miséria, desigualdade, fome e morte, intensa concentração de terras e renda no campo [1]. Além disso, a crise e deterioro ambiental proveniente de um modelo de extrativismo, as mudanças climáticas, a imigração e êxodo rural massivo e o domínio de grandes empresas multinacionais e impérios alimentares sobre o conjunto do circuito produtivo e alimentar [2] são problemas que estimulam a necessidade de repensar o rural e um novo modelo de desenvolvimento.

A partir das grandes transformações que impulsionaram o capitalismo nas duas últimas décadas do século XX, as estruturas produtivas e territoriais foram transformadas em todo o planeta. Estes ajustes temporários de espaço de capital [3], ou os efeitos territoriais da crise e reestruturação de capital [4], implicaram, dentre muitos fenômenos, o domínio de corporações transnacionais neoliberais, particularmente nas estruturas agroalimentares. Isso não só modificou a dieta "tradicional" de milhões de pessoas, como gerou processos de devastação alimentos e aguçou as lógicas de desmantelamento da agricultura familiar e camponesa com base em políticas de livre mercado e desregulamentação ambiental.

Desse modo, esse artigo tem como objetivo analisar as implicações dessas transformações enfatizando não só a lógica deletéria imposta pelas corporações neoliberais e seu regime alimentar, sobretudo, das resistências que se desenvolvem nos territórios, desde os mercados alternativos a sua relação com propostas agroecológicas.

Na seção seguinte, a partir do conceito cunhado por Blanca Rubio da Nova Divisão Internacional do Trabalho Agrícola – NDIAT [5] foram analisados os efeitos sobre a dieta alimentar no México. Na segunda seção, refletiu-se sobre as contribuições da abordagem territorial para a construção de resistências. Na terceira e quarta seção, analisou-se como gerar, a partir da dimensão territorial, mecanismos de resistência ao regime agroalimentar neoliberal, através de mercados alternativos e redes agroecológicas.

O regime alimentar corporativo

O enfoque de regimes alimentares realiza uma abordagem do papel da agricultura no desenvolvimento da economia mundial capitalista, e as relações da produção agrícola e alimentação nas lógicas políticas e econômica global[6]. Os regimes alimentares compreendem em um conjunto específico de dinâmicas, normas, instituições e regras e relações em torno das quais as expectativas de todos os atores relevantes convergem[7].

No século XXI, as dinâmicas e relações da agricultura levaram a concepção de uma nova tipologia, denotando atualmente como um regime alimentar corporativo. As características desse regime representam, principalmente, um viés neoliberal e globalizante, com uma governança enfocada na desregulação e livre mercado. No regime alimentar corporativo, as corporações transnacionais são os principais "atores do jogo", que tomam as decisões e imprimem uma pressão na dieta alimentar global focada em alimentos processados e industrializados, em uma produção agrícola focada no aumento da produtividade a partir de pacotes tecnológicos, como biotecnologia [6,7].

Esse regime alimentar corporativo representa um modelo de desenvolvimento neoliberal aplicado na América Latina que promoveu crescimento econômico, mas também um aumento da desigualdade social, pobreza, danos sistemáticos irreversíveis no ecossistema[8], ameaçando as funções vitais da natureza e a reprodução da vida, levando ao "mal desenvolvimento"[9] e gerando uma crise na qual a sobrevivência da espécie humana está ameaçada[4].

As políticas neoliberais, apoiadas pelo livre mercado, aplicadas na América Latina, provocaram a rendição da política alimentar com o desmantelamento de instituições que favoreceram o desenvolvimento rural, prejudicando os pequenos e médios produtores, camponeses e indígenas. Esse processo não foi conjuntural, mas de caráter estrutural, resultando na Divisão Agrícola Internacional do Trabalho (NDIAT). O NDIAT impôs um regime alimentar corporativo, que foi fortemente promovido em países desenvolvidos, como evidência de sua rentabilidade e competitividade no mercado. A competição alimentar se constituiu em um dos fatores de poder econômico mundial, já que o controle da produção alimentar mundial permitia aos países controlar o mercado mundial de exportação de alimentos, e com isso, fragilizar a autossuficiência alimentar de outros países[5]. Este contexto forçou países industrializados, como os Estados Unidos e a União Europeia, a se tornaram os principais centros de produção e exportação de alimentos em todo o mundo.

Rubio[5] acrescenta que uma das características do NDIAT é o fato de que países desenvolvidos têm um papel fundamental como provedores globais dos cultivos mais importantes da nova estrutura agrícola internacional. Em relação aos países subdesenvolvidos, o NDIAT os dividiu naqueles que conseguiram se inserir na nova estrutura de produção agrícola e, portanto, têm um papel definido, e aqueles que eles não conseguiram se inserir produtivamente no mercado mundial e, portanto, estão na margem de circuitos comerciais. Alguns países conseguiram inserir-se na nova estrutura produtiva, mas perderam a autossuficiência alimentar, tornaram-se importadores de alimentos registrando um déficit no mercado interno[10].

Desse modo, houve no México uma diminuição na produção de alimentos para consumo nacional e aumento para exportação. Assim, a crescente necessidade de importação de alimentos básicos, como o milho, impactou a segurança alimentar de famílias mexicanas[11]. Dado este panorama, o governo mexicano decidiu oferecer programas de bem-estar para os mais pobres e abrir as portas para produtos importados e cadeias alimentares ultraprocessadas, em vez de fortalecer o campo mexicano e a produção local de alimentos.

Esse fenômeno, que pode ser caracterizado como uma transição alimentar envolveu macro processos que impactaram nos aspectos sociais, econômicos, cultural e territorial, e que, embora tenham adquirido uma nuance particular em cada um a partir dos processos de crise e reestruturação capitalista, sempre mantêm o eixo de articulador e organizador a lógica do capital[4].

A resistência ao regime alimentar corporativo a partir da abordagem territorial

A lógica do capitalismo tornou-se o princípio organizador na maioria dos territórios. Em particular, o regime corporativo alimentar, como expressão concreta dessa lógica, promove a padronização cultural do alimento. Nesse sentido, o México enfrentou reajustes na indústria alimentar, influenciando a sobreposição de vários padrões alimentares por regiões e estratos sociais, com claras tendências de homogeneização em termos de presença de maior número de componentes industrializados na dieta [12].

Com o regime corporativo NDIAT, o México tornou-se assim um dos países com o maior número de consumidores de refrigerantes e sopas instantâneas, enquanto o consumo de frutas e legumes diminuiu 30%, e de feijão diminuiu quase 50%. Da mesma forma, o consumo de carne aumentou e a atividade física diminuiu, levando a consequências ambientais, econômicas e de saúde que isso acarreta [13,14].

É importante notar que houve um tempo em que as dietas tradicionais mexicanas eram consideradas inadequadas para o desenvolvimento biológico e causavam a desnutrição na população infantil, até que finalmente foi comprovado que as dietas nutricionais contanto que as quantidades adequadas sejam consumidas[14]. Atualmente, recomenda-se o aumento do consumo de frutas, vegetais e combinar cereais e legumes. Um exemplo nutritivo e tradicional é a combinação milenar mexicana de tortilla de milho com feijão, uma combinação completa de proteínas e diminuir o consumo de carnes vermelhas[13]. No entanto, nos setores de baixa renda, a comida é modelada em torno do "possível e acessível", que tende a ser alimentos ricos em carboidratos e gorduras (que fornecem maior saciedade), baixo teor de fibras, proteínas de alto valor biológicos e micronutrientes[15].

O regime alimentar corporativo tem impactado todas as cadeias produtivas e redes agroalimentares; no entanto, é necessário considerar que, apesar das intenções do regime de padronizar alimentos e transformar territórios rurais para aumentar seus lucros e controlar a força de trabalho, matéria-prima e energia, existem possibilidades de transgressão ou resistência que, a partir da produção, comercialização, consumo ou modos de vida próprios, apresentam mecanismos para diferenciar-se do capitalismo predatório. É por isso que o conceito de território deve conter como elemento central a questão do poder, dominação e conflito, bem como a reestruturação dos movimentos históricos desencadeados pela crise[4].

Das contradições que surgem entre a lógica deletéria do desenvolvimento do capital e resistências, se nutrem as abordagens de desenvolvimento territorial, que, em suas diferentes escalas e dimensões, visam fazer uma análise mais abrangente de uma sociedade, colocando o foco nos atores, nas relações sociais e na diversidade de interesses.

Os atores que participam da construção a partir do território nem sempre vivem neles e podem pertencer a diferentes escalas espaciais, o que acentua a diferença entre seus interesses[16]. No caso do território rural esta contradição é expressa pela convergência de três setores: Organizações supranacionais, agroindústria e movimentos sociais. Os dois primeiros, específicos do regime alimentar corporativo, expressam a origem dos conflitos territoriais, associados à apropriação de recursos naturais, gestão socioambiental e agroalimentar, e a resistência dos movimentos sociais, principalmente de camponeses e comunidades indígenas.

Um exemplo ocorre em torno de cultivos transgênicos. Os laboratórios das empresas multinacionais promovem o uso de sementes modificadas para obter maiores lucros com a privatização dos mesmos[17]. Os grandes produtores plantam em monocultivos essas sementes, a fim de aumentar a sua produtividade, independentemente da perda de biodiversidade[18]. Enquanto camponeses rejeitam este tipo de cultivo a fim de manter sua autonomia, evitar despesas excessivas que a "modernização" exige e preservar suas próprias combinações genéticas de sementes. Com outros interesses, aparecem alguns consumidores que por critérios de saúde ou uma visão crítica sobre recursos ambientais, paisagens e comunidades agrárias, rejeitam alimentos que vêm de sementes modificadas[19].

Alguns desses agricultores e consumidores se agruparam para apresentar propostas como agroecologia e mercados alternativos. Estas propostas denunciam injustiças sociais e ambientais que ocorrem no regime alimentar corporativo, e alguns grupos exigem o reconhecimento dos direitos e do conhecimento indígena a inclusão equitativa de mulheres em projetos de desenvolvimento e a propriedade coletiva do patrimônio natural[20,21]. Na prática, tanto a agroecologia quanto os mercados alternativos são reconhecidos como uma forma de resistência a um sistema que coloca o benefício econômico adiante da vida; entretanto, uma análise mais rigorosa de seu escopo ainda está pendente.

Nesse sentido, no contexto do neoliberalismo, as abordagens territoriais tiveram atenção crescente. Na América Latina, novos enfoques do desenvolvimento procuram desvincular do economicismo excessivo e visam especificidades territoriais que requerem privilegiar a esfera local, sem negligenciar a necessária ligação com o global e questionam a partir de sua base epistêmica a construção da racionalidade instrumental e da mercantilização de todas as coisas, para uma perspectiva mais relacional do território[4].

O interesse pela análise e a compreensão das territorialidades surgem, na medida em que interesses da agroindústria, movimentos sociais e organizações supranacionais estão organizados em práticas e expressões materiais e simbólicas capazes de garantir apropriação de um determinado espaço por um ator individual ou coletivo[22]. Assim, a construção de um paradigma contra a expansão do capital, em direção a um processo de desenvolvimento territorial local, ecológica, política e cultural, deve basear-se numa "perspectiva histórico-crítica, multidimensional e transversal, ligado à compreensão e explicação do território-lugar" e ao mesmo tempo em "a práxis da ação reflexiva, transformadora, dialógica, solidária e participativa, qualificando os níveis de inserção territorial, consciência de classe e lugar na vida cotidiana"[23].

Mercado e modelos contra hegemônicos

O Mercado (no singular) remete a um amplo conjunto de organizações e instituições que fazem funcionar os mercados, mas também, em economias ortodoxas, "reduzem-se a mecanismos abstratos". Os mercados (no plural) são estruturas sociais identificados através das "implicações e consequências sociais de suas operações concretas e das disputas"[24]. Dessa forma, o senso comum da concepção de mercado está atrelado à concorrência, competição e ao sistema de preços. No cotidiano, as pessoas expressam que "o mercado está difícil", "o mercado está favorável", indagando a referência ao "poder" do mercado aos preços e na relação entre oferta e demanda. Assim, embora considerada superficial e insuficiente, costumeiramente se resume o que são os mercados na "competição nas relações de oferta e demanda e o sistema de preços"[25].

Um mercado é um ponto de encontro para fins de compra e venda[26]. A existência do mercado como um espaço onde as relações sociais de intercâmbio implicam em um ato de vontade comum, em que um indivíduo se apropriará da mercadoria alheia alienando a própria. Nele, as pessoas só existem e são distinguidas algumas das outras como representantes de mercadorias e, portanto, como detentores de mercadorias [27]. Nesse sentido, a existência do mercado, expressa a presença de uma troca de produtos que, em termos de valor, são quantitativamente equivalentes e em termos de uso são qualitativamente diferentes.

O mercado capitalista, de acordo com Marx [27], é construído sobre a violenta separação do produtor direto de seus meios de produção. Esta separação implica a expropriação maciça de homens e mulheres que foram privados pela economia capitalista dos seus meios de produção e subsistência, não restando outra opção além de concorrer ao mercado para obter recursos necessários para a mera subsistência, vendendo a única coisa que lhes resta: sua força de trabalho.

O mercado estritamente capitalista implica, como mostra o NDIAT, respectiva divisão social e internacional do trabalho. É por isso que o desenvolvimento de mercado capitalista implica que, no processo de especialização produtiva se amplie socialização do processo de trabalho em escala global, mas se centraliza o processo de apropriação. Isso levou Eric Wolf [28] a apontar que o desenvolvimento mercantil e capitalista se manifesta no desenvolvimento de relações materiais, transitando simultaneamente à escala global e local. Desta forma, as relações mercantis capitalistas aparecem como leis naturais que eles decidem sobre a vida e a morte, que o ser humano possa sequer protestar.

A ruptura com as ideias metafísicas do mercado proporcionou ao mercado capitalista ser o único possível a contribuir para a perspectiva do desenvolvimento territorial, em que se consideram os mercados (plural) como uma construção social, um fenômeno sociológico que se caracteriza como um processo de interação social, mobilizando atores e agentes que têm interesse em trocar mercadorias como estratégia de desenvolvimento rural baseada em mercados alternativos, de proximidade e circuitos curtos de comercialização. Dessa forma, se opõe a noção de que o mercado (no singular) é uma convecção puramente econômica que dita as regras de operação e trocas de mercadorias. As discussões atuais do mercado, relacionadas à agricultura familiar e aos processos de desenvolvimento rural, abordam questões ambientais, socioeconômicos, a valorização do lugar, a cultura e tradição, a qualidade e segurança alimentar e mudanças no papel do Estado[29].

O estabelecimento de modelos alternativos ao mercado hegemônico depende da criação de novos paradigmas organizacionais e econômicos[30]. Para Saquet[23], práticas agroecológicas por meio de circuitos curtos promovem o desenvolvimento nos territórios camponeses porque partem de uma lógica solidária e cooperativa, fazendo da práxis uma reprodução social.

Os mercados de alimentos agroecológicos apresentam grande potencial para promover mudanças nos modelos predatórios de produção de alimentos[31]. Os circuitos curtos de comercialização de alimentos agroecológicos são vistos como ferramentas para a agricultura orgânica ser precursora de formas mais justas de agricultura, criando novos paradigmas e formas emancipatórias de desenvolvimento[32]. Embora haja dificuldade em definir com precisão os atores presentes e as fronteiras entre os chamados mercados "convencionais" e "alternativos"[33], compreende-se que os mercados convencionais são geralmente associados a cadeias globais de commodities, "controladas por empresas corporações transnacionais livres de qualquer vínculo com as localidades e até mesmo com os Estados. São mercados despersonalizados, cuja marca é a padronização de produtos, processos e pessoas".

Os mercados alternativos envolvem a relação direta entre compradores e vendedores sob a lógica de que cadeias curtas têm a capacidade de ressocializar e re-espacializar alimentos. São mercados particularistas baseados em nichos ou especificidades. Além disso, eles são vistos como "construções enraizadas em relações socioculturais particulares e que fazem a conexão com a localidade, tradição, origem, natureza ou modo de produção, sendo esses seus maiores recursos comerciais"[33].

Mercados alternativos têm o status de contra hegemônico, sendo uma alternativa modelo dominante[34], uma vez que diferem do sistema convencional porque eles estão enraizados em territórios específicos, tradições de produção e cultivos alimentares; procuram promover a inclusão socioeconômica de grupos produtores e consumidores, marginalizados ou excluídos pelo sistema agroalimentar dominante e corporativo, e objetivam ser ecologicamente corretos, promovendo e apoiando a produção tradicional, natural e ecológica, reduzindo a distância entre produtor e consumidor[6,21].

Nesse contexto, algumas iniciativas que se opõem à economia dominante ganham notoriedade através das lacunas deixadas pelo próprio sistema, usando sua estrutura para avançar como alternativa econômica justa. Entre essas iniciativas de economia, é possível citar unidades de produção familiar, cooperativas autogeridas, redes de produção comunitária, organização de espaços de comercialização autogerido, assim como os modos de produção orgânica com princípios agroecológicos[32]. Embora haja várias outras demandas a serem feitas no setor agroalimentar, é importante que tais alternativas sejam pautadas pelos princípios de justiça, solidariedade e proteção ambiental, tal como proposta de emancipação socioeconômica, corroborando uma sociedade mais justa, solidária e autônoma[30].

Assim, mercados alternativos têm importante repercussão no território, uma vez que produzem mudanças no escopo interno da unidade familiar de produção, no contexto mais amplo da organização da agricultura familiar, na diversificação econômica regional e no fortalecimento dos sistemas agroecológicos de produção[35].

Mercados alternativos, território e a aposta agroecológica

Os mercados alternativos configuram uma nova maneira de usar o território. O uso do território é determinado e construído pela sociedade "através de suas diversas técnicas no tempo e nos lugares", isto é, na medida em que a agricultura familiar cria e recria seu espaço de produção e comercialização através da venda em pequenas distâncias e diretamente ao consumidor, promove uma maneira nova e mais sustentável de usar o território[36].

A agricultura familiar é um importante agente para aproveitar propostas diferenciadas de mercados, bem como modos de produção orgânica, em vista de sua eficiência na gestão dos recursos naturais, a relação com a terra e por envolver um processo que busca autonomia produtiva, muitas vezes em ações coletivas[37]. A agroecologia ajuda na construção de autonomia dos mercados, uma vez que o processo de produção agroecológico tem premissas como a justiça e a redução da diferença entre os atores sociais envolvidos, reduzindo assim a dinâmica de dominação e dependência[38].

A agroecologia, com o passar dos anos, teve mudanças epistemológicas, com enfoques além do desenho sustentável de agroecossistema (na agroecologia "clássica") como também as redes agroalimentares, a política, as condições sociais e os conflitos que resultam do apoio a uma mudança social agroecológica em um território[39].

Na disputa de territórios rurais entre agronegócio e campesinato organizado, a agroecologia adquiriu grande importância como instrumento de luta e reconfiguração das terras em disputa[20]. Além disso, um número crescente de grupos indígenas nos países andinos e mesoamericanos adotou a agroecologia como estratégia fundamental para a gestão da agricultura em seus territórios autônomos[40]. Esses esforços estão ligados à luta para conservar a terra e preservar sua identidade (dietas alimentares fazem parte dessa identidade), por territórios materiais e intangíveis[41].

Na região semiárida do Brasil, pode-se observar um caso concreto onde a prática da agroecologia em combinação com outras condições permitiu uma configuração mais adequada do território para a população local.  Em Boborema, Brasil, uma forte rede sociotécnica vem sendo desenvolvida há mais de 20 anos inspirada no paradigma agroecológico. Esta rede é energizada por sindicatos de trabalhadores rurais e uma associação regional de agricultores agroecológicos, que recebem fundos públicos como parte da redistribuição iniciada pelo Estado, em 1980, e com o apoio de políticas governamentais, conseguiu agregar mais agricultores à prática de agroecologia e avançou na comercialização dos bens produzidos, beneficiando, em primeiro lugar, as famílias mais pobres do território, rural e urbano, com acesso a alimentos saudáveis[42].

Deve-se notar que a capacidade da rede, de envolver e mobilizar a participação da população rural e urbana do território para a reconfiguração do território em favor de seus habitantes, não seria a mesma sem o apoio estatal através de recursos econômicos e políticas públicas que fomentaram o capital social e permitiu o controle do patrimônio natural por atores locais[42].

Este caso destaca a necessidade de estudar, com uma abordagem territorial, as alternativas que representam a partir das redes agroalimentares, comunidades e unidades domésticas. O resultado deste estudo permitiu identificar o nível de autonomia dos territórios, bem como reconhecer as relações dos atores que limitam ou potencializam o desenvolvimento territorial. Em referência à agroecologia, que foi identificada por alguns autores como ciência, prática e movimento[43], a incorporação da abordagem territorial para vincular esses três campos. Da abordagem do território podem ser construídas resistências que dão origem a sociedades socialmente e ecologicamente mais justas[23].

Conclusão

Se o processo de construção territorial em nosso tempo tem como princípio organizador a lógica do capital e a colonialidade do poder, as alternativas de mercados agroecológico, desde o território, devem romper com essas duas determinações centrais.

Nesse sentido, a abordagem territorial não só permitiria um salto de experiência grupos agroecológicos, mas também para a ação coletiva local anticapitalista e anticolonial. Isto é, aconteceria à interconexão criar uma institucionalidade contra hegemônica que poderia impor políticas e, assim, construir as bases de um regime alimentar alternativo.

E por essa dinâmica característica, os mercados alternativos representam lócus de ação coletiva, onde, além de um mecanismo de comercialização e geração de renda para os agricultores, promovem a reprodução da identidade de territórios, socialização e articulação política.

Dessa forma, a agroecologia, relacionada à agricultura familiar e aos mercados alternativos, em sua lógica contra hegemônica, estaria lidando com todos os elos da cadeia do sistema agroalimentar, com possibilidades de influenciar os territórios através da configuração dos espaços rurais e áreas urbanas em favor dos requisitos alimentares, sociais, econômicos e políticos dos atores fora da lógica do capital.

Agradecimentos

O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001.

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