Relato de Experiência

O Projeto Ecolume: O paradigma da abundância na convivência com o clima semiárido no Nordeste brasileiro

The Ecolume Project: the paradigm of abundance in living with the semi-arid climate in Northeastern Brazil

http://dx.doi.org/10.32712/2446-4775.2020.941

Lacerda, Francinete Francis1*;
Lopes, Geraldo Majella Bezerra1;
Coutinho, Robério Daniel da Silva1;
Santos, Sebastião Alves dos2;
Silva, Márcia Vanusa da3;
Sabino, Heitor Branco1;
Lima, João Paulo Vianade1.
1Instituto Agronômico de Pernambuco (IPA), Departamento de Pesquisa, Av. General San Martin, 1371, Bongi, CEP 50761-000, Recife, PE, Brasil.
2Serviço de Tecnologia Alternativa (SERTA), Rodovia PE-050 km 14, Campo da Sementeira, S/N - Zona Rural, CEP 55620-000, Glória do Goitá, PE, Brasil.
3Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Avenida Prof. Moraes Rego, 1235, Cidade Universitária, CEP 50670-901, Recife, PE, Brasil.
*Correspondência:
francis.lacerda@ipa.br

Resumo

O Ecolume integra as práticas dos conceitos de geração de energia fotovoltaica com a captação de águas pluviais, a reutilização de águas residuais e a produção de alimentos orgânicos ao longo do ano. A combinação de água da chuva coletada nas superfícies dos painéis solares e a reutilização de água cinza e preta, para irrigação de pomares e viveiros de mudas nativas, orienta um novo paradigma de desenvolvimento socioeconômico no semiárido, tornando este projeto um processo de adaptação eficaz às mudanças climáticas. O semiárido do Nordeste brasileiro mostrou uma redução na precipitação total anual, na forma de secas severas recorrentes. A abundância de energia solar pode ser uma fonte de desenvolvimento socioeconômico na região, ferramenta poderosa para adaptar-se às mudanças climáticas. O tratamento e a reutilização de águas cinza e negra têm como objetivo produzir água de boa qualidade para irrigar mudas em viveiro (umbu - Spondias tuberosa) e garantir a redução da poluição. A produção de mudas nativas de umbu é para reflorestar a vegetação da Caatinga (bioma local). O projeto Ecolume qualificou mais de 700 pessoas em tecnologia de energia solar, reuso e tratamento de água cinza e preta, mudas e produção de alimentos usando o sistema aquapônico.

Palavras-chave:
Caatinga.
Ecolume.
Energia solar.
Aquaponia.
Reuso de água.

Abstract

The Ecolume integrates the concepts of photovoltaic power generation with rainwater harvesting, wastewater reuse and organic food production throughout the year. The combination of rainwater collected on solar panel surfaces and the reuse of gray and black water, for orchard irrigation and native seedling nurseries, guides to a new socioeconomic development paradigm in the semiarid making this project an effective adaptation process to climate change. The Brazilian Northeast semiarid has shown a reduction in annual total rainfall, in the form of recurrent severe droughts. The abundance of solar energy can be a source of socioeconomic development in the region fitting as powerful tool for adapting climate change. The treatment and the reuse of gray and black waters have the purpose to produce good quality water to irrigate nursery seedlings (umbu - Spondias tuberosa) and to ensure pollution reduction. The production of native umbu seedlings is to reforest the Caatinga vegetation (local biome). Ecolume has already qualified more than 700 people in solar power technology, gray and black water reuse and treatment, seedlings and food production using aquaponic system.

Keywords:
Caatinga.
Ecolume.
Solar energy.
Aquaponic system.
Water reuse.

Introdução

Visão Paradigmática

Algumas políticas públicas que visam o desenvolvimento do Nordeste se lastram basicamente na captação e aumento da disponibilidade hídrica e na distribuição de renda para subsistência. Essas ações mostram-se insuficientes em promover o crescimento socioeconômico, e têm remediado as crises que acontecem, no semiárido, a cada novo período de seca.

Uma estratégia assertiva para um futuro próspero de desenvolvimento sustentável é a promoção de uma economia socialmente justa e menos vulnerável aos efeitos das secas recorrentes, associadas à variabilidade natural do clima, bem como, às suas alterações.

À medida que a temperatura global aumenta, o vapor d'água se torna mais abundante numa proporção de 7% para cada grau Celsius de aquecimento nos trópicos. Isso tem fortes implicações para o clima, pois o vapor d'água também causa efeito estufa. O gradual aquecimento da atmosfera implica na alteração de ciclos delicados do balanço climático aos quais as civilizações se desenvolveram ao longo de milênios. Tais ciclos incluem o desenvolvimento de processos de retroalimentação positiva, como por exemplo, a alteração do albedo planetário com o derretimento das geleiras continentais e da diminuição da cobertura do gelo marinho, os quais por sua vez, com a diminuição do albedo superficial, ocasionam maior absorção da radiação solar à superfície, que retroalimenta o aumento da temperatura do ar[1].

O resultado mais visível de um planeta mais quente é um oceano também mais quente. Assim, o hemisfério norte mais aquecido tem favorecido a um posicionamento da Zona de Convergência Intertropical (principal fenômeno meteorológico indutor de chuvas do semiárido nordestino) mais ao norte da sua posição média, gerando secas recorrentes no semiárido do Nordeste do Brasil.

Os padrões climáticos atuais têm gerado extremos climáticos. Em maio de 2017, a ocorrência de chuvas intensas, combinadas com surtos de tempestades, afetou várias áreas do Agreste e Litoral de Pernambuco. Pancadas de chuva geraram inundações instantâneas em algumas bacias hidrográficas de Pernambuco e Alagoas. O fato é que uma escassez longa de chuvas vinha ocorrendo nessas áreas, juntamente com uma grande variação nos totais de chuva, ano a ano, gerando secas agrícolas e hidrológicas, por anos consecutivos. Esta alteração, observada do ciclo hidrológico, está intrinsecamente ligada às alterações dos padrões de chuva e temperatura no planeta.

Os impactos significativos das mudanças climáticas exigem cortes substanciais e sustentados das emissões de gases de efeito estufa com vistas a combater as causas do aquecimento global, mas também é essencial um novo paradigma energético e econômico que apoie o desenvolvimento de sociedades mais adaptadas ao clima. Ações estratégicas podem ser adotadas e ampliadas para o convívio com as consequências das mudanças climáticas em curso como, por exemplo, desenvolver programas de reflorestamento, envolvendo todos os biomas, da Caatinga e da Mata Atlântica, nas áreas rurais e urbanas, não exclusivamente pelo valor das florestas nativas para a estabilidade do clima e da biodiversidade, como também, pelo valor econômico que representam.

Neste estudo, é importante lembrar que a região Nordeste do Brasil guarda um enorme potencial de energia solar, inexaurível, que se incorporada à equação de desenvolvimento sustentável, econômico, ambiental, social permitirá antever um novo paradigma de desenvolvimento, baseado na transformação da energia radiante solar em eletricidade[2,3].

Recomenda-se, nesse contexto, um programa de estado, apoiado nas mudanças da legislação que regulamenta a geração e a distribuição de energia elétrica, bem como o seu financiamento. Esse novo paradigma tem o potencial de transformar o atual modelo de desenvolvimento regional, pautado na escassez - de água - e no uso predatório do seu bioma Caatinga.

Problematização

Os padrões climáticos atuais, já fora do padrão "normal", têm causado secas severas com sérios impactos na segurança hídrica. Há impactos por todos os lados, afetando a vida dos animais, das populações e do meio ambiente.

Não menos importante é o efeito antrópico que tem transformado o ambiente de forma muito rápida, introduzindo quantidades significativas de carbono fóssil nos oceanos e nos biomas, consumindo enormes volumes de água por meio de vários processos.

Esse cenário exige uma transformação radical, significativa e permanente na paisagem socioeconômica-ambiental do Nordeste semiárido. Uma ação significativa e sustentada sobre as causas do aquecimento global é o novo paradigma energético que apoia o desenvolvimento e respeita o clima. Para que tal possibilidade de mudança possa ocorrer, e a geração de energia limpa possa representar mais do que uma simples mudança da matriz energética local, é imprescindível que esta ação esteja associada a um programa de reflorestamento da Caatinga juntamente com o incentivo às práticas consorciadas de foto geração e agricultura, todas lastreadas num programa educacional consistente e abrangente.

Profunda é a transformação que percebemos no planeta terra hoje, uma realidade que reflete o que somos na atualidade. Apresentar críticas e sugestões aceitando os desafios dessa transformação é urgente. O nordestino, guerreiro por natureza, deve ser confiante e curioso e buscar uma ação que seja transformadora da realidade atual, onde é visto como vítima do clima. Assim sendo, o Nordeste semiárido do Brasil deixará o imperativo da pobreza e da miséria para o imperativo da prosperidade e da abundância.

O Ecolume

O Projeto Ecolume propôs, no semiárido pernambucano, uma solução que congrega as seguranças presentes na abordagem múltipla e integrada do Nexus (hídrica, energética e alimentar) e as correlaciona com os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da Agenda 2030 da Organização das Nações Unidas (ONU) (https://nacoesunidas.org/ pos2015/agenda2030/) e dentro dessa perspectiva, delineia seus objetivos e metas.

A produção de alimentos na Caatinga traz a associação virtuosa do aumento da produção de alimentos com o aumento da Caatinga, beneficiando e aumentando o número de pessoas envolvidas neste processo. O aumento da cobertura da vegetação nativa da Caatinga aumenta o tempo de residência da água no solo, aumentando assim a resiliência à variabilidade do ciclo hidrológico frente às mudanças climáticas. A utilização da energia solar para geração de energia elétrica fotovoltaica fornece o elemento essencial para a produção de alimentos e seu processamento para atender a mercados consumidores.

O projeto promove a geração distribuída de energia elétrica fotovoltaica[4] como um dos pilares para a geração de emprego e renda, para:

O projeto tem executado ações voltadas ao desenvolvimento sustentável em áreas agrícolas com vulnerabilidade climática e foca em alternativas agroecológicas que garantem a conservação e preservação da diversidade biológica e social local. A utilização dos recursos abundantes do semiárido, como o sol, por meio da energia fotovoltaica; o bioma Caatinga pelo seu potencial em prestar os serviços ambientais diretos e indiretos obtidos a partir dos ecossistemas, como a provisão de alimentos, água, remédios e matéria-prima, regulação climática, formação do solo, controle da poluição, de erosão e enchentes, o sequestro de carbono e os serviços estéticos, de recreação e turismo, entre outros[5]. Esses serviços ambientais são estratégicos de extrema importância principalmente diante do atual e futuro cenários de alterações climáticas no semiárido[6].

No Brasil, a proteção da vegetação estratégica e a preservação de recursos hídricos são regidas pelo Código Florestal Lei 12.651, maio de 2012[7]. O uso agroflorestal destas áreas é uma estratégia para se garantir funções econômicas harmônicas com a preservação da vegetação, e assim, garantir e aumentar a proteção e melhoria dos recursos hídricos pelo incentivo à preservação da vegetação e à sua proteção e aumento.

O desenvolvimento e produção de vídeos, oficinas, encontros, audiências, feiras de exposição, rodas de conversa nas escolas rurais e urbanas, com agricultoras e agricultores, jovens do campo, da cidade e universidades, casam os conhecimentos ancestrais com tecnologias modernas de difusão do conhecimento. Diante da atual crise climática o projeto cria estratégias de proatividade e comprometimento, como o uso de espaços sociais com potencial para formar educadores ambientais, estimular, orientar e apoiar a implantação de viveiros florestais como espaço de aprendizagem e disseminação de conhecimento e construção da cultura do plantar.

Forma e Conteúdo

O potencial fotovoltaico do Nordeste semiárido é um elemento sinérgico, catalisador de novo paradigma de desenvolvimento socioeconômico na Caatinga, uma nova perspectiva de transformação do quadro secular de dependência e pobreza do sertanejo. Nesse contexto, foi introduzido o conceito de agricultura agrovoltaica pela produção de alimentos, na Caatinga, o ano inteiro, consorciada com a produção de energia fotovoltaica distribuída e mudas de umbuzeiro, entre outras plantas nativas da Catinga. O aumento da cobertura vegetal no bioma está associado ao aumento do número de pessoas residentes no bioma.

Vales vegetados pela expansão da cobertura vegetal do bioma aumentam o tempo de residência da água no solo, ambos por aumento da recarga da água de chuva quanto pela diminuição da evaporação por sombreamento, aumentando a disponibilidade hídrica, em nível da gota d'água, para a produção de alimentos. O trinômio de desenvolvimento sustentável, água, bioma, energia, se completa com a exploração da abundante energia do sol com a transformação fotovoltaica da luz do sol.

O projeto distingue-se por incorporar, de forma sistêmica, conhecimentos ancestrais sobre os produtos da Caatinga como formas indígenas potentes de nutrição e medicamentos originários do próprio bioma. O projeto ainda prevê formas inovadoras para a potencialização de tais conhecimentos pelo aumento da disponibilidade energética local e manutenção de recursos hídricos.

A questão da renda das populações residentes do bioma é assim endereçada pela associação das produções de alimentos e de energia, sendo que esta última, por sua natureza distribuída, é expansível sobre áreas previamente degradadas, contribuindo para sua recuperação. Não somente, mas o excedente de energia fotovoltaica produzida, num arranjo apropriado, constitui uma potencial fonte de renda perene para o agricultor, livrando-o da dependência da água como insumo básico para sua renda familiar.

A participação de institutos de ensino nativos ao bioma constitui elemento fundamental de longevidade para as propostas delineadas no projeto.

Ainda mais, as mudanças climáticas globais e seus impactos regionais representam ao mesmo tempo uma grande ameaça e ao mesmo tempo uma oportunidade para a incorporação de saberes tradicionais, e capacidades de adaptação inerentes ao bioma Caatinga para a formação de políticas públicas de enfrentamento e adaptação às mudanças climáticas. Os cenários de mudanças climáticas futuras constituem um ferramental único para qualificar a amplitude das mudanças futuras do clima, as quais, para o clima presente, já mostram alterações gravíssimas de aumento da temperatura máxima e diminuição das chuvas sobre o semiárido de Pernambuco [6].

Principais objetivos

Material e Métodos

Unidade de Observação - Sistema de Aquaponia

A aquaponia pode contribuir para a produção de alimentos em áreas rurais e periurbanas, pelo desenvolvimento de sistemas fechados e integrados, garantindo o uso eficiente dos recursos hídricos com a redução dos efluentes e otimização dos nutrientes. Além disso, possibilita uma oportunidade de geração de renda e diversificação da produção no meio rural. As FIGURAS 1a e 1b ilustram este sistema. O Ecolume apresenta um conjunto de boas práticas de manejo que aprimoram a produção, de alimentos, no semiárido brasileiro durante o ano todo, com o reaproveitamento de água, aumentando o desempenho produtivo dos sistemas de aquaponia, com introdução da geração de energia elétrica e criação de galinhas de capoeiras e ovos, ampliando assim os modelos aplicáveis à realidade do semiárido. Uma das vantagens do sistema de Aquaponia Ecolume é integração da produção de proteínas animal, vegetal e produção de energia elétrica fotovoltaica com a reutilização do recurso "água" de maneira eficiente, que é essencial para locais onde esse recurso é escasso. O Sistema de Aquaponia do projeto Ecolume é composto de seis tubos PVC com 15 pontos de hortaliças em cada um, totalizando 90 pontos para cultivo de 17 espécies de hortaliças. O sistema também é composto de uma caixa d'água de 1.000 litros, tendo uma capacidade produtiva de 100 peixes. A espécie de peixe utilizada foi tilápia nilótica (Oreochromis niloticus) que é bastante resistente e está bem adaptada às condições climáticas do semiárido brasileiro. O sistema conta com o galinheiro instalado abaixo dos tubos de PVC onde são produzidos ovos e criadas galinhas caipiras.

FIGURA 1a: Sistema de Aquaponia Ecolume.
Figura 1a
FIGURA 1b: Sistema de Aquaponia Ecolume.
Figura 1b

Sistema de Reuso e Tratamento de Água

Reatores UASB têm sido muito empregados como uma solução adequada para o tratamento de esgotos sanitários em países em desenvolvimento, com destaque no Brasil, Colômbia e Índia. Nos últimos anos, em particular no nosso país, tiveram grande desenvolvimento, por conta de pesquisas realizadas em universidades, no âmbito do PROSAB – Programa de Pesquisas em Saneamento Básico. A sigla UASB, ainda que advinda da terminologia inglesa, foi consagrada pelo PROSAB e assim tem sido amplamente adotada no país. Os Reatores UASB [8] são de simples construção, econômicos, praticamente não requerem manutenção e geram pouco lodo residual. A tecnologia caracteriza-se por dois aspectos que lhe são inerentes: o reduzido tempo de detenção hidráulica, de cerca de 5 a 12 horas e o elevado tempo de detenção celular, da ordem de dezenas de dias. Ambos os aspectos permitem a obtenção de menores volumes para o reator biológico, reduzindo os custos de construção e resultam na menor geração de lodo residual, reduzindo o volume de lodo a descartar. Essas vantagens, aliadas a facilidade operacional têm levado a uma grande expansão dessa tecnologia. Os reatores UASB podem ser prismáticos ou cilíndricos, os últimos, mais aplicáveis para pequenas vazões.

Observa-se que o mercado dispõe de tecnologia nacional já desenvolvida e aprovada, comercializada em unidades pré-fabricadas e montadas no próprio local, com capacidade compatível à demanda e características do efluente a ser tratado, sem a necessidade de maiores investimentos em obras civis. O efluente de um Reator UASB é de cor marrom-amarelada, com média a alta turbidez, não devendo ser retirado do reator por canais abertos sujeitos a escoamento em cascata, uma vez que ainda contêm gás sulfídrico e outros gases produtores de odores. Já o efluente de uma unidade de pós-tratamento terá um aspecto bem clarificado e límpido, típico dos processos de tratamento secundário. Os reatores UASB não dispõem de equipamentos do tipo motor, o que constitui uma grande vantagem. No entanto, requerem que o esgoto afluente seja submetido previamente, e de forma eficaz, à remoção de sólidos grosseiros e minerais. No caso de vazões muito pequenas, em que o reator UASB seja adquirido pré-fabricado, é possível que o fornecedor já inclua o tratamento preliminar na mesma estrutura do reator UASB - a figura 2 ilustra a instalação de um Reator UASB.

Diante da necessidade de se melhorar a qualidade de vida das comunidades, no semiárido, o Ecolume implantou o reuso das águas cinza e negras tratadas para irrigação agrícola. Para isso, foi implantado um sistema de tratamento, que utiliza o "Reator UASB", como descrito acima, que recebe os efluentes, dos banheiros da Escola Serta, em Ibimirim/PE. Atualmente, o sistema instalado tem potencial para produzir 10 mil litros de água/dia para ser usado na irrigação para produção de mudas (viveiros – FIGURA 2) de plantas nativas, forrageiras e fruteiras.

FIGURA 2: Viveiro de mudas de Umbu - viveiros Abertos na Estação Experimental do Instituto Agronômico de Pernambuco, em IBIMIRIM/PE.
Figura 2

Potencialidades e produção de energia fotovoltaica distribuída

Além do notável valor contábil da geração de energia fotovoltaica em áreas degradadas, há estudos de casos do uso consorciado de painéis fotovoltaicos e produção agrícola, com mensurável benefício para a produção animal. No entanto, isso envolve o uso generalizado de culturas alimentares para a produção de biomassa, resultando numa competição por áreas plantadas de culturas para a produção de alimentos e bioenergia. Uma possível solução para este dilema está na criação de um sistema misto 'Agrivoltaico' (AV), isto é, uma combinação de painéis fotovoltaicos e produção de alimentos, aumentando o potencial de uso da terra [9]. Simulações mostraram um aumento na produtividade da terra em torno de 60-70%. Em anos em que há ocorrência de secas, as condições climáticas abaixo dos painéis fotovoltaicos promovem um ambiente favorável e mais, uma menor demanda de água pelas culturas. A eficiência do uso da água pode ser maior selecionando as culturas que promovam cobertura do solo mais rápida, o que contribui para uma maior quantidade de luz capturada e diminuição da evaporação do solo. No estudo, o sombreamento devido aos painéis fotovoltaicos resultou em uma economia de água de 14-29%, dependendo do nível de sombreamento. Esses sistemas em consórcio parecem ter maior produtividade e diminuem a concorrência pelo uso da terra quando há escolhas do tipo: produzir energia ou produção de alimentos.

No Reino Unido (www.theguardian.com/environment/), em 2014, foram cortados os subsídios para fazendas solares, sob o pretexto de que as fazendas prejudicavam a produção de alimentos. Os agricultores britânicos, por sua vez, alegaram que a instalação de painéis fotovoltaicos aumentou a produção pecuária devido ao abrigo oferecido aos animais pelos painéis solares. No sistema de rotação, entre fins agrícolas e de pastoreio o uso de PV aumenta a renda da fazenda em até três vezes, além de que as receitas provenientes dos painéis solares proporcionam um rendimento contínuo e sustentável para os agricultores. Isso evidencia a necessidade de se promover a capacitação de legisladores para que incorporem mudanças na política atual para a utilização de energia solar produzida por pessoas físicas, aumentando a sustentabilidade ambiental.

O sistema fotovoltaico instalado em uma escola no semiárido (SERTA - https://escolastransformadoras.com.br/escola/serta-servico-de-tecnologia-alternativa/) é composto por 10 painéis de cerca de 2 m² cada, organizados em 5 pares em posição retrato (painéis unidos pelo menor lado). São 10 m² de placas solares e 24 m² de área total. A estrutura de fixação dos painéis é realizada no solo. Em relação aos sistemas fotovoltaicos comuns; foram aplicadas adaptações na altura e no espaçamento entre os painéis para instalação de um sistema de aquaponia à sombra dos painéis - sistema agrovoltaico. Cada painel fotovoltaico tem 330 W de potência, o que confere ao sistema uma potência nominal de 3,3 kW e irradiação solar média de 5,8 kWh/m2.dia. A estimativa média de geração é de cerca de 15 kWh por dia, ou 450 kWh por mês (FIGURAS 3, 4 e 5). A economia financeira produzida pelo sistema, considerando a tarifa de R$ 0,78, pode chegar a R$ 350,00 mensais, mais de R$ 4.000,00 por ano. O sistema é conectado a uma das quatro unidades consumidoras ativas no campus. Os créditos gerados são prioritariamente consumidos por esta unidade. Quando a produção de energia da primeira unidade é maior que o consumo, o crédito excedente é repassado para uma segunda unidade. Quando não utilizados, os créditos gerados têm validade de 60 meses. Com um software de monitoramento remoto é possível coletar dados de geração em tempo real, além de outros parâmetros elétricos, como frequência, corrente e potência. Os dados são armazenados e podem ser utilizados em futuros estudos de eficiência energética, entre outros. Devido ao microclima criado pela estrutura de cultivo abaixo dos painéis, ocorre o efeito de arrefecimento, o que pode resultar num aumento de eficiência na geração e durabilidade dos componentes dos painéis.

FIGURA 3: Placas Fotovoltaicas - Projeto Ecolume/2019.
Figura 3
FIGURA 4: Placas Fotovoltaicas e montagem de sistema aquapônico - Ecolume/2019.
Figura 4
FIGURA 5: Produção diária/mensal (2019); sistema fotovoltaico do Projeto Ecolume.
Figura 5

Divulgação científica e popularização do conhecimento

A promoção de uma educação científica, a popularização da Ciência e Tecnologia e Inovação (C&TI) e a apropriação social do conhecimento é reconhecida inclusive como estratégica no mundo. No Brasil, por sinal, desde 2015, o governo programa a sua estratégia nacional de C&TI e visa a desenvolver/difundir conhecimentos e soluções criativas para qualidade de vida e cidadania e para a inclusão produtiva e social, com a participação da população na tomada de decisões sobre as discussões ligadas ao tema [10], a partir da assimilação deste conhecimento.

A mídia tem um papel central e estratégico nesta missão. Suas notícias construídas têm alcance massivo através dos jornais, sites, blogs e emissoras de TV e rádio por meio de várias plataformas: computadores, celulares etc. A mídia pode ajudar muito na "(...) promoção de melhoria na sociabilização do conhecimento científico de forma crítica para população"[11]. Contudo, como destaca Albagi[12], a eficiência da divulgação da C&TI depende essencialmente da tradução da linguagem técnica especializada para uma linguagem coloquial. Parece tarefa simples, mas não é. E, como destaca o autor, isto tem sido um grande desafio para a popularização da ciência.

A qualidade de vida das pessoas e o exercício de sua cidadania dependem da ciência e tecnologia, da compreensão deste conhecimento e de soluções criativas. Por isso que o Brasil, como em outros países pelo mundo, entende como sendo estratégicas as medidas em divulgação científica e popularização do conhecimento.

Dentro desse contexto, alinhado aos ODS/ONU e à Estratégia Nacional de C&TI em vigor pelo governo federal, o Ecolume, desde a sua concepção, no final de 2017, reconhece o poder da comunicação social. Com estratégias em divulgação e popularização da ciência e com apoio da mídia, tem contado com esta ferramenta indissociável em busca de seus objetivos.

Resultados e Discussões

Os resultados do sistema Ecolume podem ser vistos na TABELA 1 que mostra a produção anual do sistema agrovoltaico instalado na escola Serta. Em termos energéticos a produção foi de 4.800 Kwh de energia, aproximadamente 130 kg de peixes, 730 unidades de ovos, 816 unidades ou 336 kg/ano de hortaliças, 200 unidades de mudas de plantas nativas. Toda a produção foi realizada em uma área de apenas 24 m2 e a rentabilidade anual do sistema foi de R$ 10.362,00. O custo para implantação de um protótipo familiar com essas características e tecnologias foi de aproximadamente R$ 20.000,00.

O projeto Ecolume produziu mil mudas de umbu, em um ano e capacitou mais de 700 pessoas nas oficinas de tecnologias solar, reuso e tratamento de águas cinza e negras e técnicas de produção de mudas de umbu e alimentos no sistema de aquaponia. O projeto tem ajudado a melhorar e ampliar a capacitação dos alunos, da escola SERTA e em outros municípios do Sertão, ampliando assim os multiplicadores do conhecimento dessas tecnologias.

As mudas produzidas foram para o reflorestamento da Caatinga, na Serra do Giz, no município de Afogados da Ingazeira/PE, uma área de UC refúgio da vida silvestre, com o potencial de sequestrar carbono, no futuro. Estudos mostram que uma área de 20 hectares de reflorestamento, em média, tem o potencial de sequestro de carbono de 10.400.00 toneladas de CO2 em vinte anos [13]. Por fim, o sistema reuso instalado tem potencial para produzir 10 mil litros de água por dia e irrigar uma área de até 5 hectares.

TABELA 1: Resultados obtidos pelo Ecolume com a Unidade de Observação.
Produtos Produção Valor Unitário de Referência (R$) Rentabilidade ANUAL (R$)
Peixe Tilápia 130 kg 20,00 2.600,00
Ovos 730 U 0,50 365,00
Vegetais 816 Unidades 2,00 1.632,00
Mudas 200 Unidades 15,00 3.000,00
Energia Elétrica 4.800 kWh 0,50 2.400,00
Área de produção 24 m2 - 10.362,00

Popularização da C&TI

"Plantar água, comer Caatinga e irrigar com o sol: casos concretos da popularização da ciência" Muitas mídias repercutiram esta pauta inusitada, sobretudo, para população sertaneja. Não só rádios, mas TVs, jornais impressos e mídias pela internet (sites, blogs e redes sociais) também amplificavam esta notícia. Dava-se aí o início à implantação das estratégias do Ecolume em divulgação e popularização da C&TI sobre seu conceito de "abundância" na Caatinga, concebido de um novo paradigma onde enxergava oportunidades ao invés de vulnerabilidades no semiárido.

As ações exitosas do Ecolume, após um ano de execução, sob a ótica da popularização da ciência, construíram elementos específicos com fins de atender critérios centrais do jornalismo, como a estratégia de agendamento de pautas e a utilização de linguagem jornalística, na representação noticiosa da realidade social, conectando a vida na Caatinga e sua qualidade, com o clima, o bioma e a água, numa perspectiva de "abundância".

Os textos possuem ancoragem, contextualização e objetivação jornalísticas tendo em mente o público alvo atendido pela inovação do Ecolume. A linguagem coloquial, exigida e usual na prática do jornalismo, atende também às exigências para a qualidade da divulgação da C&TI, além de ampliar a chance de o tema ser pautado pela mídia por deixar atrativo, para o jornalista, o conhecimento científico, com chance de visibilidade.

O Ecolume iniciou a sua estratégia de divulgação e de popularização de C&TI, com visibilidade pública e política, diante da grande noticiabilidade, com o termo "plantar água", uma analogia que despertou a emoção das pessoas. A analogia ainda provoca a desconfiança em uns e a esperança em outros. Estes sentimentos possivelmente os levarão a buscar saber mais sobre o tema.

"Comer Caatinga" é outro exemplo. A analogia desperta a emoção e tem potencial de provocar a curiosidade e propõe mudanças ao atual e insustentável modelo de desenvolvimento econômico centrado na água.

"Irrigar (planta) com o sol" também tem tal potencial. É outra analogia que desperta emoção e estimula a aprendizagem sobre C&TI em busca de soluções sociais e produtivas, bem como para a qualidade de vida e o exercício de cidadania pela população envolvida.

Nesse período de execução do projeto, já foram realizados mais de 700 releases em rádios, TVs, blogs e jornais que têm abrangência não só na região Nordeste, especialmente no semiárido, mas em outras regiões do Brasil.

Conclusão

As relações socioeconômicas estão mudando à medida que a produção descentralizada de alimentos e de energias renováveis está se estabelecendo em várias partes do mundo e se tornando cada vez menos condicionada pelas condições geográficas e climáticas, como é o caso da pecuária e da agricultura tradicionais. O Ecolume é uma oportunidade que propõe melhorar a qualidade de vida do cidadão, agora e no futuro, adotando boas práticas em direção à autonomia, garantindo as seguranças hídrica, alimentar e energética com vistas ao aumento da resiliência dos ecossistemas em consonância com os ODS e inclusão da bioeconomia, na Caatinga, frente às mudanças climáticas. Os resultados do Ecolume evidenciam a possibilidade de um novo paradigma de desenvolvimento para o semiárido que leva em conta a crise climática, ambiental como o novo parâmetro da socioeconômica e geopolítica mundial. Os cenários climáticos futuros e os impactos das mudanças do clima, no Nordeste do Brasil, foram a base para atuação e contextualização dessa temática. A expansão do Ecolume pode proporcionar um novo caminho de oportunidades e potencialidades, indicando que é possível um novo modelo que promova a produção de alimentos de melhor qualidade e mais nutritivos, mais baratos e acessíveis a todos.

Agradecimentos

Os autores agradecem ao CNPq, pelo financiamento do Projeto Socioeconomia Verde no Nordeste Semiárido no Bioma Caatinga frente às mudanças climáticas – Ecolume, CNPq 441227/2017-1.

Referências

1. PBMC - Painel Brasileiro de Mudanças Climáticas. Contribuição do Grupo de Trabalho1 ao Primeiro Relatório de Avaliação Nacional do Painel Brasileiro de Mudanças Climáticas. Sumário Executivo GT1. PBMC, Rio de Janeiro, Brasil. 24 p.. 2013.

2. Nobre P. Mudanças Climáticas e desertificação: os desafios para o Estado Brasileiro. In: Desertificação e Mudanças Climáticas no Semiárido Brasileiro. Editores: Lima RCC, Cavalcante AMB, Marin AMP. Instituto Nacional do Semiárido - INSA, pp. 25-35. 2011. ISBN: 978-85-64265-02-8.

3. Lacerda FF, Nobre P, Sobral MC, Lopes GMB, Chan CS, Brito E. Long term climate trends over Nordeste Brazil and Cape Verde. J Earth Sci Clim Change. 2015.

4. Nobre P et al. International Journal of Climate Change Strategies and Management, 2019. Disponível em: [Link] e ONU. [Link].

5. Brasil. Ministério do Meio Ambiente - MMA. Pagamentos por Serviços Ambientais na Mata Atlântica: lições aprendidas e desafios. Guedes FB, Seehusen SE. Organizadoras. Brasília: MMA, 2011. 272 p. ISBN 978-85- 7738-157-9.

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