Resumo
Em 21 de setembro de 2021, o secretário-geral da ONU, António Guterres alertou os líderes mundiais durante a abertura da 76ª Assembleia Geral das Nações Unidas, afirmando que o mundo está se movendo na direção errada, estando os direitos humanos e a ciência sob ataque.
A relação direta entre a natureza e a sobrevivência humana até hoje não é visível para a maioria das pessoas, e por conta desta “cegueira” estamos em risco. A saúde humana que geralmente não vinha sendo considerada por formuladores de políticas ou mesmo pelo público em geral nas discussões ambientais envolvendo a perda de biodiversidade, ganha um novo momento. Sabemos que o mundo conta com quase dois milhões de espécies identificadas de um total estimado de 15 milhões, mas que a extinção natural foi acelerada pela ação humana, especialmente no século passado, a partir da industrialização, principalmente após o estabelecimento das novas ordens econômicas mundiais que sucederam a Segunda Guerra Mundial. Cientistas afirmam que, devido à elevação das taxas de extinção, estamos vivenciando seu sexto grande evento, após o último, talvez causado pela colisão de um asteroide, há sessentas e cinco milhões de anos atrás. Após a criação da Convenção da Diversidade Biológica em 1992 a definição de diversidade biológica, ou biodiversidade, compreende toda a variedade da vida no planeta, o que inclui a variedade genética, de espécies e ecossistêmica. Os serviços ecossistêmicos que merecem ser vistos como serviços para manutenção da vida, abrangem o provisionamento de alimentos, combustível, medicamentos, purificação do ar, da água, solos, aspectos culturais associados às demandas estéticas, espirituais, intelectuais e suporte para todos os serviços ecossistêmicos, como polinização, reciclagem de nutrientes, produção de biomassa, fotossíntese etc. A perda da biodiversidade implica na perda dos ecossistemas e representa, portanto, uma ameaça à vida. Esta perda é promovida por diversas atividades que destroem o habitat, tais como: o desmatamento, a pesca de arrasto, represamento e dragagem de córregos, rios e lagos, drenagem e a degradação de pântanos, estuários e manguezais, agropecuária extensiva, introdução de espécies não nativas, despejo excessivo de esgoto contendo nitratos e fosfatos, poluentes orgânicos, produtos farmacêuticos de uso humano e veterinário tóxicos, chuva ácida, metais pesados, herbicidas e pesticidas e plásticos. Outras ameaças são resultantes do esgotamento da camada de ozônio, das guerras, da caça excessiva e da poluição.
Entretanto, a principal ameaça aos ecossistemas e à própria vida humana na Terra é hoje, a crise climática, reconhecida como emergência climática. Se o debate sobre as relações saúde-meio ambiente tem se avolumado nos anos recentes, especialmente no que diz respeito à poluição, o conhecimento sobre a relação saúde-biodiversidade relacionado às doenças emergentes e reemergentes ainda é muito incipiente. Como também são as políticas públicas com foco na inovação a partir da biodiversidade, uma vez que, reconheçam o fato que mais de 50% dos medicamentos consumidos no mundo atual tem sua origem na biodiversidade. Que em países desenvolvidos este número chega a 80%. Que as biomoléculas e substâncias ainda constituem os melhores modelos para o desenvolvimento de produtos com valor medicinal.
A Ciência e os modelos de desenvolvimento
É possível afirmar que o mundo contemporâneo contou com dois grandes modelos hegemônicos de desenvolvimento. O período iniciado nos anos de 1940, final da Segunda Guerra Mundial, o qual marcou a vitória do capitalismo, constituindo uma nova ordem econômica monetária mundial, a crença no mercado livre em um mundo com a paz assegurada. Em um segundo período, quatro décadas depois, a Globalização percebida nos anos de 1980 e apontada como responsável pela aceleração das mudanças que vivemos, pode ser caracterizado como uma universalização vinda da expansão das comunidades de mercado. Uma nova ordem mundial é compreendida onde o Estado tem seu protagonismo questionado, emergindo como um poder entre outros, a despeito de não se revelar apenas como uma cadeia de transmissão dos imperativos do mercado internacional. A expansão dos mercados exige um crescimento contínuo e ilimitado. Ao longo desses dois períodos, a ciência foi associada ao desenvolvimento, determinando sua trajetória, sendo que os primeiros quadros conceituais utilizados na elaboração de políticas científicas vieram da Academia. Os demais tiveram origem nos think tanks, em organizações do governo e, ainda, por organizações supranacionais como a Organização de Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). É válido afirmar que as políticas científicas, em última análise, visam garantir uma contínua expansão de mercados, condição para o desenvolvimento econômico, desenvolvimento este assumido como crescimento. Um crescimento eterno, movido pela tecnologia e inovação. Hoje, os arcabouços conceituais são mesclados e utilizados, constituindo uma rede de conceitos inter-relacionados e retroalimentados, já que em nenhum momento houve uma quebra de paradigma, ou seja, o crescimento contínuo e o regime de acumulação capitalista. Um novo paradigma começa a ser delineado a partir do momento em que as questões ambientais afloram no cenário político mundial.
As questões ambientais só entrariam na cena política mundial cerca de três décadas após as conferências de Bretton Woods ocorridas nos anos de 1940, ao final da Segunda Guerra Mundial, durante a Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente Humano realizada em Estocolmo em 1972. Neste mesmo ano, o relatório do Clube de Roma apontava para os limites do crescimento. Em 1987 é publicado o documento “Nosso Futuro Comum”, o relatório coordenado pela primeira ministra da Noruega, denominado “Relatório Brundtland para a Comissão Mundial sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento”, disseminando a ideia de desenvolvimento sustentável que vinha sendo elaborada desde a década anterior. O documento expôs a relação entre a pobreza, o consumismo e as graves crises ambientais, trazendo para a luz do debate conceitos ainda novos, na época como aquecimento global, chuvas ácidas, camada de ozônio, perda da biodiversidade e desastres ecológicos promovidos por empresas. Vinte anos após o marco histórico de Estocolmo o Rio de Janeiro recebeu em 1992, a Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, conhecida como ECO-92, quando foi introduzida a ideia de desenvolvimento sustentável como modelo de crescimento econômico mais adequado ao equilíbrio ecológico. A Convenção da Diversidade Biológica foi criada, estabelecendo a soberania dos países sobre a sua biodiversidade, assim como a Convenção sobre Mudanças Climáticas. Mais vinte anos se passaram até um novo evento impactado pelo relatório do IPCC apontando os riscos e consequências da crise climática foi organizado novamente no Rio de Janeiro em 2012. Com o nome Rio + 20, o evento debateu a urgência da mudança do modelo de desenvolvimento considerando com um novo padrão de produção e consumo adequado aos seus objetivos, visando o futuro que queremos. Seu documento político destacou medidas objetivas para a adoção do desenvolvimento sustentável, um processo de elaboração dos objetivos do desenvolvimento sustentável (ODS), assim como a elaboração das diretrizes para uma econômica verde. De 25 a 27 de setembro de 2015, os chefes de Estado e de Governo, reunidos na sede das Nações Unidas, em Nova York, deliberam sobre os novos “Objetivos de Desenvolvimento Sustentável global”, o que ficou conhecido como Agenda 2030, um plano de ação para erradicar a pobreza, proteger o planeta, visando garantir a prosperidade e a paz para todos. Com o lema de “Não deixar ninguém para trás”, 17 Objetivos do Desenvolvimento Sustentável e 169 metas são integrados e indivisíveis nas dimensões econômica, social e ambiental do desenvolvimento sustentável.
Nova Era
Os modelos econômicos hegemônicos organizados ao final da Segunda Guerra Mundial e durante a Globalização constituindo ordens econômicas mundiais, claramente não dão conta do desenvolvimento sustentável. A complexidade coloca suas possibilidades no horizonte da incerteza, da diversidade, do homem em um mundo globalizado, de culturas e interesses tão díspares, no qual é necessária a interconexão das ciências biológicas, físicas e humanas. Em meio à pandemia de Covid-19, verifica-se a emergência de uma nova ordem mundial em um cenário de pós-globalização e agora não mais de crise, mas sim de emergência climática. O início de um novo paradigma ecológico para o mundo começou com o conflito de interesses do próprio mercado, onde começou a sua negação. Um discurso quase desesperado descreve esta transição. O Secretário Geral da ONU soou o alarme:
Estou aqui para soar o alarme: o mundo precisa acordar. Estamos à beira de um abismo – e nos movendo na direção errada. Nosso mundo nunca foi tão ameaçado. Ou tão dividido. Enfrentamos a maior escalada de crises em nossas vidas. A pandemia de Covid-19 ampliou as desigualdades gritantes. A crise climática está atingindo o planeta (...). Uma onda de desconfiança e desinformação está polarizando as pessoas e paralisando as sociedades. E os direitos humanos estão sob ataque, a ciência está sob ataque. (...) precisamos fortalecer a governança global, precisamos nos concentrar no futuro, precisamos renovar o contrato social, precisamos garantir uma ONU adequada para uma Nova Era.
A elaboração de políticas de ciência, tecnologia e inovação se vê obrigada a ampliar o seu escopo para além da vertente neoclássica da economia, considerando vertentes da economia heterodoxa para pensar nas mudanças nos padrões de produção e consumo, requeridas na emergência do novo paradigma verde ou ecológico, uma Nova Era. Uma Economia Verde ainda está longe de ser um modelo hegemônico. Nesta trajetória de meio século, os conflitos tanto da saúde quanto do meio ambiente, com o mercado, permanecem os mesmos, afetando, em última análise a respectiva formulação e implantação de políticas públicas. Fala-se em Bioeconomia, mas já não se fala em Ecoinovação. Menos ainda em Economia Evolucionária e Economia Ecológica. Enquanto isto o Brasil permanece sem políticas que contemplem sua autonomia estratégica em insumos farmacêuticos e menos ainda a utilização do potencial da biodiversidade brasileira, para atingir tal objetivo.
Compartilho a opinião de que a análise do conceito de inovação em medicamentos da biodiversidade à luz da Economia do Aprendizado Verde e da Economia Ecológica possa contribuir, nos dias atuais, com novos parâmetros para a formulação de políticas brasileiras que possibilitem a efetiva transformação do potencial de sua biodiversidade em inovações e, ao mesmo tempo, proteger, recuperar e promover o uso sustentável dos ecossistemas, promover o acesso adequado aos recursos genéticos e garantir uma repartição justa e equitativa dos benefícios derivados da utilização dos recursos genéticos.
A Revista Fitos convida todos aqueles que desejem contribuir para este debate tão importante e atual, abrindo os caminhos para um novo programa científico de inovação em medicamentos da biodiversidade à luz do novo paradigma ecológico.