Resumo
“Educar é transmitir conhecimentos acumulados pela humanidade para as novas gerações”! Esta é uma percepção corriqueira, enunciada por pessoas que compreendem a educação como ensino. Entre os que a concebem como aprendizado, a ênfase é na construção do conhecimento pelo sujeito, não se limitando à transmissão de conteúdos, sendo o educar, antes de mais nada, a criação de condições para a pessoa elaborar seus conhecimentos conforme sua peculiar forma de ser.
Ensinar o que as pessoas mais velhas, os profissionais da educação ou, os hermeneutas, considerem a verdade a ser transmitida, ou propiciar aos participantes do processo educador as condições para que construam seus próprios aprendizados?
Educação como ensino e aprendizagem, como duas faces de uma mesma moeda, polos indissociáveis que na história dos sapiens propiciou às sucessivas gerações apreenderem, incorporarem o ensinado pelas anteriores e inovarem.
Ensinar/aprender comportamentos e atitudes que facilitam a sobrevivência e possibilitam as buscas mais sofisticadas da alma humana. Ensinar caminhos, respostas encontradas pelos antepassados, as verdades deles. Cada pessoa e grupo social compreende, cria e transmite suas verdades, seja por meio da cultura cotidiana e dos seus ritos de passagem, seja nas escolas ou espaços a isso dedicados.
Verdades naturalizadas como cultura. Verdades únicas que muitas vezes não oferecem respostas apropriadas aos complexos desafios da contemporaneidade. Em tempos de mudanças aceleradas é preciso propiciar diálogos em busca de respostas pactuadas aos desafios colocados para a sobrevivência da espécie. Diálogo entre conhecimentos acumulados por distintas culturas e tribos humanas e incentivo à capacidade de inovação e criatividade de todas as pessoas.
Forjar uma “nova cultura da Terra, da terra, dos corpos e dos territórios”, para enfrentar as mudanças climáticas, a onipresença doentia das telas de realidade virtual, a erosão da diversidade biológica, a contaminação da água, do ar e dos alimentos, as violências diversas, a insegurança da vida nas cidades e o sentimento de futuro roubado.
Uma nova cultura que potencialize o enfrentamento de epidemias contemporâneas, como a ansiedade, a depressão e tantas outras doenças psicossomáticas. Enfim, a cultura ou as culturas das sociedades humanas contemporâneas, não têm se demonstrado preparadas para a formação de pessoas capazes de enfrentar os enormes desafios emergentes. Os sapiens hominídeos terão capacidade para realizar uma profunda revolução cultural, por meio da educação?
Sempre me incomodei com pessoas que enunciam suas crenças e convicções como verdade única. Acredito que elas, as verdades únicas, quando enunciadas e praticadas pelos que as forjaram, podem ter sua marca de autenticidade e serem a cultura de um determinado grupo, mas, quando se tornam obviedades em busca de hegemonia, repetidas sem análise crítica e reproduzidas como fé cega, servem à domesticação e são fontes de acriticidade, autoritarismo, totalitarismos e outros desdobramentos como guerras, massacres e formas de violência diversas que já se viu ao longo da história e, infelizmente, continua-se a presenciar.
Pode-se encontrar esses comportamentos em exemplos cotidianos e doentios como o das torcidas esportivas, em que a adesão a um time leva pessoas a quererem eliminar fisicamente quem gosta de outro ou, no machismo, racismo, homofobia e especismo que, na cabeça do agressor, justifica a eliminação de outro ser que não é, ou não pensa, acredita e deseja, como ele.
Crenças cegas atingem danos ainda maiores nos campos da política, da religião e da ciência, arenas que a princípio seriam propícias ao diálogo e ao cultivo de valores como solidariedade, fraternidade, compaixão, amor e paz - campos férteis para a vida em comunidades de buscas compartilhadas por respostas para inquietações e enigmas que sempre acompanharam a humanidade.
A busca e a descoberta de uma verdade poderiam ser compreendidas como uma entre outras possibilidades de caminhadas e descobertas. O buscar e o encontrar explicação para dúvidas e inquietações existenciais (quem sou eu? O que estou fazendo aqui? Qual é o sentido da minha existência? Qual é ou quais são meus propósitos ao longo desta curta vida na Terra? Como posso melhor contribuir para a felicidade minha e de outras pessoas) pode motivar o caminhar e o evoluir de cada pessoa e de grupos sociais, sem que suas respostas precisem ser assumidas como verdades únicas para toda a humanidade.
Essas perguntas do parágrafo anterior e outras semelhantes acompanham os seres humanos, ao longo de toda a sua existência. Hannah Arendt em A Condição Humana faz uma didática reflexão sobre a busca pela “imortalidade” ou pela “eternidade” a pautar a vida de pessoas, quando superada a luta cotidiana pela “sobrevivência”.
Elas buscam sentidos existenciais para além da morte, uns por meio da grande obra que deixarão nesta Terra, outros pelos caminhos que lhes permitam acreditar que irão conquistar um lugar no Paraíso, nos Campos Elísios, no Céu, no Nirvana ou em outro local que as crenças apontem como o destino de suas buscas.
Respostas encontradas e transmitidas, passam muitas vezes a ser ritualizadas e dogmatizadas como verdade única. Como enfrentar a tensão paradoxal entre o anseio por uma verdade universal e a compreensão racional sobre a diversidade de verdades e suas emergências parciais e fragmentadas?
Imagine uma luz imensa e intensa, sem fonte externa, sem fios, composta de uma imensidão de pixels/pessoas (minúsculos pontos de luz que são a própria luz), como se fosse uma enorme tela ou esfera. Cada ponto é a constituição e a manifestação dessa luz, uma parte infinitesimal dela. Alguns acreditam ser a sua luz o todo e negam as demais compreensões e verdades dos demais pontos que constituem o conjunto.
Pixels constituem essa enorme teia de luz, da qual conheço uma parte, pois estou dentro dela e não consigo ver o todo. Procuro compreender o todo somando-me às outras compreensões. A visualização do todo por aproximações sucessivas não pode prescindir do acúmulo das visões parciais. Algumas somam-se às demais. Outras ficam fora do campo imediato de visão e diálogo, mas podem oportunamente contribuir para a compreensão do todo.
Nesta busca de compreensão do todo que motiva o educar ambientalista, por muitos anos fiz uma pergunta aos estudantes com os quais trabalhei: Educação Ambiental (EA) se assemelha mais a um quebra-cabeças, uma brincadeira de encaixes, tipo lego, ou a massinhas multicoloridas?
Manifestava, ao final das reflexões dos estudantes, minha preferência pela brincadeira com massinhas coloridas. Não me agradava a verdade única do criador do quebra-cabeças, ou das alternativas pré-definidas das combinações possíveis no jogo de encaixes. Eles podem diminuir a criatividade, a iniciativa em busca por novas artes, estéticas e aprendizados, exigências para processos educadores comprometidos com a problemática socioambiental.
Depois de um tempo, também me questionava se a repetida mistura das massinhas tornaria a brincadeira sem cores, ou, com uma cor única, não mais motivando aprendizados diversos que a EA deveria propiciar.
O mesmo questionamento fiz na banca de defesa de uma bonita tese que advogava a antropofagia do movimento modernista do século passado no Brasil como um importante caminho para a EA. Nos alimentarmos e transmutarmos com os conhecimentos dos outros, sem nos eliminarmos como alteridade, era a busca enunciada. A dúvida que expressei era a de, nesse movimento antropofágico, nos tornarmos homogêneos, iguais, monocromáticos como as massinhas que se misturam. Monoculturais como os sapiens que incorporaram ou eliminaram os demais hominídeos ou, os romanos que, o mesmo, fizeram com as demais culturas que conquistaram e dominaram.
Desafio paradoxal de reconhecer a outra pessoa, aprender e modificar-se com ela e seguir com as próprias pernas, que já são também pernas dela, mas mantém cores, tonalidades e textura próprias e passos apropriados aos peculiares caminhos a serem percorridos.
Sempre se coloca presente a busca por uma educação que enfrente o desafio de enunciar uma verdade sem limitar o enunciado de outras verdades e sem abafar a busca das verdades pelas outras pessoas. Educação que ensina, mas, que acima de tudo, propicia aprendizados idiossincráticos.
Educação que incentiva iniciativa e criatividade, autonomia e autogestão e supera o falso dilema “regras x indisciplina” enunciando “é proibido proibir!” como uma forma de dizer, “pelo menos uma regra será necessária”. Regras que definam limites, mas abram espaços ao seu questionamento e redefinição. Educação que apresenta objetivos, metas e método, referenciados em valores (do tipo: participação, diálogo, solidariedade, cooperação), mas os reconhece também como contextualizados e datados historicamente e passíveis de serem questionados.
Objetivos e valores, metas e método, normas e regras que podem ser vistas como limitadoras de mudanças e transformações. Por exemplo, é visível o desgaste das formas instituídas de fazer política e tomar decisões sobre a vida em comum nas sociedades contemporâneas. É visível a necessidade de transformações profundas em nossa forma de ser e estar em sociedades neste Planeta e nos Estados-Nação, a forma hegemônica de organização dos humanos na modernidade. Se o desejo e a necessidade de modificar as formas instituídas de fazer política, passa por dentro das instituições que se quer superar, como fazê-lo? Será que os representantes eleitos, que recebem a incumbência de decidir pelas mudanças, vão querer alterar os limites, as regras, que lhes deram poder?
Ou seria melhor explodir o legislativo, o executivo e o judiciário e os representantes ali empossados? Seria uma solução mais efetiva? Algumas pessoas tentaram realizá-la em 08/01/2023 no Brasil. Se tivessem sido bem-sucedidas, hoje teríamos uma forma melhor para tomar decisões sobre a vida em sociedade? Quem teria o poder de decidir? Todos se identificariam com os novos mandatários e as formas de tomada de decisão sobre a vida em sociedade?
A revolução francesa e tantas outras, são bons exemplos no campo da política, a nos alertar sobre a necessidade de transformações para a superação de todas as formas de marginalização e opressão e sobre a importância de se trilhar caminhos menos dolorosos e violentos para o bem viver de toda a humanidade e de toda a diversidade de vida nesta Terra.
Transformações sociais que nos dias atuais precisam ser mais profundas do que todas as demais que a humanidade já enfrentou. Vivemos em guerra contra nós próprios, contra o modo de vida que se tornou hegemônico e que, visivelmente e cientificamente, se demonstra inviável.
É impossível o acesso ao “kit civilização”, como se configura hoje, para toda a humanidade. É necessário romper o ciclo interminável do desejo consumista, sob pena de afundarmos em eventos climáticos extremos e na competição fratricida por bens naturais escassos.
Repensar e questionar as necessidades materiais simbólicas. Eleger sentidos existenciais que nos reaproximem da busca por respostas e sentidos encontrados no viver simplesmente, nos saberes ancestrais e nas cosmovisões de povos e comunidades que foram silenciados e que talvez possam oferecer outras possibilidades de encontrar a verdade apropriada, constituída a partir do diálogo com as verdades encontradas pelos outros.
Os saberes das diversas religiões, de distintos campos da ciência e de diferentes proposições políticas podem ser mobilizados. Os saberes dos seres da natureza também estão aí disponíveis, muitas vezes por meio de diálogos estabelecidos por nossos antepassados com eles. Os saberes dos nossos vizinhos e os dos nossos corpos precisam ser ouvidos.
Somos pequenos pontos, pixels, de uma imensa luz. Cada um de nós pode fazê-la brilhar ainda mais e iluminar caminhos a serem trilhados nestes tempos turbulentos que estamos a vivenciar.
A eterna busca pela verdade, por meio da diversidade de caminhos apropriados e, o mais recente desafio de se encontrar respostas para a continuidade da vida na Terra, individualmente, em grupos e como coletivos ampliados, pode ser o melhor farol a direcionar a transição ecológica e educadora para sociedades sustentáveis.
Este número especial da revista Fitos é mais uma contribuição neste sentido. Constituída por artigos de autorias diversas, expressa em seu conjunto um compromisso com uma educação ambiental crítica, na sua diversidade de referenciais teóricos, metodológicos, epistêmicos e ontológicos. Essa diversidade só não é maior devido às limitações de tempo e espaço para convidar mais autoras e autores, possivelmente cada um e cada uma das leitoras e dos leitores deste número, para aqui estarem e trazerem seu testemunho de que muitos são os caminhos para se fazer Educação Crítica, comprometida com a causa ambiental.
Os ideais e as práticas das iniciativas de educação em saúde, segurança e soberania alimentar, educação ambiental, socioambiental, florestal, do campo, climática ou tantas outras, animados pelo conservacionismo ou pelo pragmatismo, por uma análise histórica e contextualizada das diversas formas de degradação socioambiental, fundamentados na ecologia política, ou pelas práticas contemplativas fundamentadas na ecologia profunda, podem ser críticos, emancipatórios e transformadores.
Por outro lado, podem ser apenas aborrecedores, alienados e distanciadores do compromisso com o conhecer em profundidade, que seja potencializador do agir transformador em direção à melhoria das condições socioambientais e existenciais para todas as pessoas e demais seres com os quais compartilhamos esta Terra.
Todas as iniciativas educacionais aqui expostas, são uma pequena amostra da diversidade de iniciativas na sociedade brasileira. São potenciais contribuições para o enfrentamento dos desafios socioambientais, climáticos e tantos outros. Para tanto, precisam se livrar do engodo da disciplinarização e fragmentação, das mudanças intermináveis de denominações que buscam superar a impotência de transformar criando novas modas e nomes (educação para o desenvolvimento sustentável, para os objetivos do milênio, climática, conservacionista, crítica, pragmática, holística, dentre outras). Fugir também dos oportunismos eleitorais e da disputa por serem a verdade única.
Compreenderem-se como um pixel, em busca de ampliar o brilho pleno, do todo e de cada ser humano. Mais um ponto a fortalecer a energia da vida em suas inúmeras e distintas manifestações. A verdade em toda a sua diversidade.
Os artigos, as comunicações e a revisão deste número especial da Revista Fitos são um retrato de diversificados fazeres e pensares de uma persistente educação, nomeada ou não como ambiental, realizada por distintos atores sociais no Brasil, tendo no compromisso político emancipatório e no fazer reflexivo, na práxis, o ponto em comum de sua perspectiva crítica e voltada à construção de sociedades sustentáveis. São eles:
- O papel da formação universitária para o (a) extensionista rural, sob a perspectiva da lei de ATER: os cursos de Ciências Agrárias, Gestão Ambiental e Administração da ESALQ (USP). Escrito por Luciana Maria de Lima Leme; Ademir de Lucas; Gabriela Maria Leme Trivellato; Gabriel Adrián Sarriés; Gustavo Nazato Furlan;
- Bases epistemológicas do conhecimento em rede: abordagem adequada à Inovação em Medicamentos da Biodiversidade. Escrito por Rosane de Albuquerque dos Santos Abreu;
- A importância da Educação Ambiental como requisito para efetivação da proteção dos corpos de água: conscientização de gestores públicos acerca da necessidade de regulamentação de políticas educacionais em Camaçari, Bahia. Escrito por Aline Alves Bandeira e Maria Cecília de Paula Silva;
- As memórias socioambientais da etnia Terena e a relação com a educação ambiental. Escrito por Elisangela Castedo Maria do Nascimento; Heitor Queiroz de Medeiros;
- O Mundo não é. O mundo está sendo. Escrito por Michèle Sato; Irene Carniatto; Taiane Aparecida Ribeiro Nepomoceno; Jakeline Modesta Almeida Fachin;
- Avaliação do conhecimento e percepção de estudantes de farmácia sobre a fitoterapia em uma universidade pública, Brasil. Escrito por Paula Leite; Luciana Cristina Correia; Layla Meireles Camargos; Rachel Oliveira Castilho;
- Compartilhando saberes sobre plantas medicinais em escolas da rede pública. Escrito por Márcio Paim Mariot; Síntia Zitzke Fischer; Elisabeth Regina Tempel Stumpf.
Boa leitura!
Verão de 2024