Resumo
O filósofo coreano Han[1], em oposição ao regime disciplinar que regeu a sociedade após a revolução industrial, e ainda persiste até os dias de hoje, analisou o novo regime ao qual estamos submetidos após a revolução das TICs, o regime da informação. Para ele, o regime da informação, consequência do capitalismo da informação, é a forma de dominação, na qual informações e seu processamento por algoritmos e inteligência artificial determinam efetivamente os processos sociais, econômicos e políticos.
Ressalta que na conjuntura atual, o que é decisivo para o ganho de poder é o acesso a dados utilizados para vigilância, controle e prognóstico de comportamentos psicopolíticos, degradando os seres humanos em “animais de consumo e dados”.
Desde a década de 1990, quando as primeiras tecnologias de internet foram criadas, sustentadas inicialmente pela utopia da democratização do conhecimento e informação, até os dias de hoje, muita coisa aconteceu. Foram muitas mudanças operadas nas formas de pensar, sentir e agir da sociedade atual estruturada em rede. Associado a isso veio o desenvolvimento da telefonia celular e a convergência de mídias, que gerou processos de comunicação e conexão diversos.
No campo das Ciências, mais especificamente da publicação científica, os impactos logo se fizeram sentir. Os movimentos da Ciência Aberta (CA) e do Acesso Aberto (AA) às publicações científicas desenvolveram-se nesse contexto do capitalismo da informação. Esperava-se, inicialmente, promover uma mudança radical na comunicação científica, expandindo os limites da certificação do conhecimento científico ao mesmo tempo que propunha democratizar tal conhecimento, promovento acesso da sociedade em geral aos artigos científicos, em proposição à ciência cidadã. Através do AA, esperava-se romper com a tradição de uma ciência produzida e reconhecida apenas por uma fatia de cientistas que achava ter status de “dono do conhecimento”. O AA vinha carregado de esperança dos pesquisadores que lutavam para romper com: o oligopólio das editoras, garantindo a pesquisadores tornar público conhecimentos novos em plataformas reconhecidas academicamente, as avaliações estratificadas, as hierarquias do conhecimento científico e que vislumbrava uma ciências mais democrática não apenas para quem produz, mas para quem é objeto de sua produção, a sociedade.
Após, aproximadamente, uma década de desenvolvimento do movimento do Acesso Aberto, hoje nos deparamos com novo debate. O capitalismo informacional deu um jeito de transformar o AA em um novo modelo de negócio, altamente lucrativo e mantenedor da clivagem entre aqueles que detém os recursos e aqueles que lutam para promover a troca natural e responsável do conhecimento científico, como um bem público.
É de conhecimento da maioria que colocar e manter uma revista científica exige muito trabalho, tecnologias e recursos financeiros, especialmente para fazer frente àqueles que querem manter o domínio sobre o conhecimento científico. As revistas brasileiras publicadas por instituições públicas vivem, em geral, dos recursos que suas instituições podem repassar e, também, é notório o quanto os recursos para tais instituições estão cada vez mais escassos. Por outro lado, o sistema de avaliação dos docentes e pesquisadores é determinado pelas agências financiadoras de pesquisa pela quantidade de artigos que publicam, valorizando as revistas bem indexadas, de preferência, internacionais.
Foi nesse contexto que se instituiu a prática do article processing Charges (APCs), também conhecida como tarifa ou taxa de publicação cobrada, quase sempre dos autores, para que submetam um artigo em um periódico de acesso aberto ou um periódico híbrido. Tal taxa pode ser paga: pelo autor, pela instituição do autor ou o financiador da pesquisa, atentando contra os princípios da ciência aberta.
Se o AA inicialmente trouxe, segundo Quintanilha e Trishchenko[2], a democratização e a disseminação do conhecimento, a transparência do conhecimento produzido, o aumento da visibilidade do produto científico, a maior eficiência e a redistribuição de recursos associados ao processo e à agência científicos, quebrando a lógica tradicional de fazer e divulgar ciência. Por outro, a força de mercado que descobre as brechas para gerar lucros, viu na cobrança dos APCs uma forma de manter os oligopólios editoriais e permanecer, por trás da sigla AA, com a “velha clivagem” entre o norte e o sul do planeta.
A FIOCRUZ, neste ano em que sua política de AA completa 10 anos, vem empreendendo um debate amplo sobre o contexto interno e externo do desenvolvimento do AA na instituição, com vistas à atualizações na política.
No que se refere aos periódicos científicos da Fiocruz, o Fórum de Editores debruçou-se, em sua última reunião, sobre o tema dos APCs, questionando os impactos orçamentários da prática na instituição, assim como as repercussões na governança da comunicação científica e na autonomia das instituições de ensino e pesquisa. Pretende-se levantar o debate internamente, pois por tráz das decisões é possível perceber os propósitos políticos que se estabelecem.
A Revista Fitos renasceu sob o signo do AA em 2010. Assim que foi encampada pelo Centro de Inovação em Medicamentos da Biodiversidade (CIBS- Farmanguinhos/Fiocruz), o grupo de editores decidiu embarcar na onda do AA, na medida em tal proposta estava em adequação perfeita ao modelo de pesquisa, desenvolvimento e inovação em medicamentos da biodiversidade proposto pelo CIBS. Como características desse modelo estão: elaboração e divulgação de conhecimento em rede; pesquisa colaborativa, desenvolvimento de produtos a partir de arranjos ecoprodutivos locais, valorização do conhecimento tradicional e da repartição de benefícios e a divulgação de conhecimentos através de diferentes meios tecnológicos (plataformas, redes, entre outros) como garantia de uma ciência da e para a sociedade.
O ano de 2023 foi traumático para a Revista Fitos. Até hoje sentimos os efeitos da invasão de hackers ao sistema tecnológico de Farmanguinhos e a dificuldade enfrentada para restaurar o sistema. Ainda percebemos buggs que emperram o fluxo editorial e precisamos de todo o público da revista – autores, avaliadores, editores e leitores a nos ajudar, através de informações e contato com a equipe editorial, para que recuperemos sua total credibilidade no campo da comunicação científica.
Para finalizar, trago novamente Han[1], o qual acredita que o poder no mundo atual está em como os dados são utilizados para vigilância, controle e prognóstico de comportamentos psicopolíticos. É, portanto, de extrema relevância a discussão responsável e comprometida sobre o AA e a CA, tendo como pano de fundo o contexto aqui apresentado, que levem os editores científicos a tomada de decisões conscientes e comprometidas com uma ciência cidadã.
Rosane de Albuquerque dos Santos Abreu
Editora Executiva da Revista Fitos